Um flertou com oportunidades de novas vivências, mas voltou ao mundo do crime e foi assassinado em um acerto de contas com o tráfico. O outro deixou para trás a inocência da infância e as peladas nas ruas do bairro com os amigos para também entrar no universo das drogas e ter a vida interrompida abruptamente. As histórias são contadas por dois educadores de Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, que viram, nos últimos tempos, jovens de seus relacionamentos pessoais ou profissionais terem a vida ceifada pela violência.
Fruto de um roteiro em comum, se tornaram estatística e engrossaram o índice de mortes violentas de adolescentes, em disparada nos últimos anos no país. Esse quadro de desajuste social atinge quase três quartos das cidades mineiras com mais de 100 mil habitantes, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Em Minas, Betim é onde mais se matam integrantes desse grupo da população. São 7,95 para cada grupo de 1 mil habitantes – mais que o dobro da taxa de BH. O levantamento mostra ainda que o problema deixou de ser exclusivo da capital e seu entorno para avançar pelo estado. Entre os cinco municípios com a maior taxa de vítimas de homicídio entre 12 e 18 anos, três estão no interior (veja gráficos). E estima-se que, se nada for feito, 43 mil adolescentes sejam assassinados nas maiores cidades do Brasil até 2021.
A análise geral do IHA revela que, para cada 1 mil adolescentes no país, 3,65 correm o risco de ser assassinados antes de completar o 19º aniversário. Minas é o 15º estado com pior IHA: aqui, 3,2 adolescentes são assassinados por grupo de 1 mil. O primeiro nesse ranking é o Ceará (8,71). O levantamento é resultado de parceria entre o Unicef, o Ministério dos Direitos Humanos, o Observatório de Favelas e o Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-Uerj).
Das 31 cidades mineiras analisadas pelo relatório, 23 têm índice superior a 1. Betim, líder no ranking mineiro, tem posição incômoda também quando comparada a outras cidades do país: é a 22ª na lista nacional e a sétima da Região Sudeste, atrás de Serra (ES), com 12,71; Cabo Frio (RJ), com 10,35; Vila Velha (ES), com 10,28; e, também do interior do Rio de Janeiro, Itaguaí (9,02), São João de Meriti (8,14) e Macaé (8,09).
A educadora Cleide Moura, de 41 anos, perdeu um ex-aluno de 18 no período em que ele se afastou das oficinas do projeto do qual participava. “Soubemos que ele estava envolvido em coisas erradas, em que ocorre acerto de contas”, diz. E não foi o único, embora tenha sido o mais próximo ou, talvez, o caso mais marcante. Pessoas que moravam perto de Cleide também morreram em circunstâncias semelhantes. “Dá uma sensação de derrota. Vínhamos fazendo um trabalho de resgate com alguém, que por um tempo ficou sem ir ao lugar onde ele tinha amparo e, justamente nessa hora, isso ocorre. É como se perdêssemos para aquele que tirou a vida dele”, relata.
Para ela, por trás desse quadro está uma falsa facilidade que é oferecida pelo “outro lado” a esses meninos e meninas. “Para a pessoa que está desorientada, esse caminho parece mais atrativo. É onde ele pode usar roupas chiques, ter um pouco de dinheiro e ostentar. Mas tudo é cobrado. E se o jovem não tem estrutura para manter esse padrão, paga caro. É como se ele fosse comprado e, depois, descartado”, resume a educadora.
OPORTUNIDADES Instrutor de audiovisual, Cleidemar Duarte, de 27, também viu um amigo de infância perder a vida. “Ele cresceu junto conosco, teve acesso a muitas oportunidades que tive, jogávamos bola juntos, mas numa determinada idade acabou se envolvendo com o tráfico. Infelizmente, esse caminho das drogas só leva a três rumos: a pessoa vai para a cadeia, para o caixão ou para a cadeira de rodas”, relata. O colega dele foi vítima de um acerto de contas. Não se sabe se por dívidas.
Para o educador, a história do menino que cresceu a seu lado segue sendo uma incógnita. “Fico sem entender como alguém pode ir por esse caminho, mesmo tendo tantas chances. Um fato é certo: a família, quando está desestruturada, interfere na evolução desse jovem. Para quem não tem base familiar boa, com certeza o caminho será mais difícil e as oportunidades serão por meio dos amigos, alguns bons e outros nem tão bons assim”, diz. Duarte ressalta que é fundamental a família incentivar cada jovem a estudar e a se profissionalizar. “Em cada regional de Betim há pelo menos uma organização social que faz um trabalho muito bom, instituições que tentam lutar contra esse problema – que se torna realidade, às vezes, por resistência do próprio jovem, outras, por falta de apoio da família.”
Bom exemplo
Uma das entidades de apoio à juventude em Betim, cidade que tem a maior taxa de assassinatos de jovens entre as grandes de Minas, segundo o Unicef, é o Instituto Ramacrisna, organização da sociedade civil que há 59 anos atua no município. O atendimento é feito a crianças a partir de 6 anos e abrange as mais diversas áreas, da música à robótica e cursos profissionalizantes e de qualificação profissional, sempre tendo como base e foco a educação. Atualmente, há 563 crianças sendo atendidas, 600 jovens aprendizes e 500 alunos nos cursos profissionalizantes. A solução para pôr fim à ameaça da violência é o trabalho preventivo, afirma a vice-presidenta da instituição, Solange Bottaro. “A probabilidade de sucesso com o menino que já está na rua usando droga e cometendo crime é muito pequena. A criança de 12 ou 13 anos na rua, sozinha, provavelmente será usada pelos traficantes, porque não tem estrutura familiar. Acaba perdendo toda a sua resiliência, porque o entorno que a envolve é corrompido. É difícil o jovem resistir a isso. E muitas vezes a própria família incentiva, por causa do dinheiro que virá.”
A interiorização da violência
Quase metade das cidades mineiras consideradas violentas para adolescentes por estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estão no interior do estado. De acordo com levantamento que analisou a quantidade de assassinatos entre crianças e jovens de 12 a 18 anos nos municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, o problema avança para além dos limites da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Das 31 cidades mineiras verificadas pelo relatório, 15 estão nessa situação. “A Grande BH revelou tendência crescente nos primeiros anos da série, e depois manteve certa estabilidade, enquanto a do Vale do Aço sofreu um aumento a partir de 2009”, constata a publicação Homicídios na Adolescência no Brasil, que calcula o Índice de Homicídios na Adolescência (IHA).
Mas, apesar de o estudo considerar cidades acima de 100 mil habitantes, a escalada da violência envolvendo adolescentes também é percebida em cidades menores e, como consequência, a redução das mortes se tornou um dos desafios nos pequenos municípios. “Quando se pensava em homicídios de adolescentes, inicialmente imaginávamos que só ocorriam nas grandes capitais. Nos últimos 10 anos, no entanto, a mortalidade vem crescendo muito pelo interior”, afirma a consultora do escritório do Unicef para os estados de Minas Gerais, Bahia e Sergipe, Ana Carla Pinho Carlos.
Segundo ela, foi observado um surto do avanço da violência em adolescentes na faixa de 12 a 18 anos no interior mineiro, principalmente em cidades com menos de 20 mil habitantes, deixando cidades menores mais vulneráveis. Ana Carla aponta como uma das principais causas da violência a evasão escolar. “Uma das principais causas é criança fora da escola. Tudo está relacionado a isso.”
Ela também cita o tráfico como fator responsável pelo aumento dos homicídios na adolescência. “O alto índice de drogas nos municípios tem relação direta com a violência. Há ainda uma série de outros fatores, que são analisados e usados para dialogar com as administrações municipais, para que consigamos reduzir os índices, com muita participação popular e comunitária”, destaca.
Ilustrando a percepção anunciada pela consultora do Unicef, na semana passada um duplo homicídio chocou os moradores de Congonhas, na Região Central de Minas, cidade pacata com pouco mais de 50 mil habitantes. Na madrugada da última quarta-feira, dois adolescentes de 15 anos morreram e três ficaram feridos depois que criminosos encapuzados invadiram a casa onde estavam, no Bairro Alvorada, e dispararam vários tiros. Os garotos assassinados foram encontrados pela Polícia Militar. Outros três foram achados nas imediações do imóvel, baleados em pernas e nádegas, e foram socorridos. Em depoimento, informaram que estavam dentro da casa quando homens bateram na porta e gritaram dizendo ser da polícia. Com medo, não abriram. Pouco depois, o lugar foi arrombado e invadido.
COMBATE A consultora Ana Carla lembra que o Unicef desenvolve ações que visam ao combate da violência contra crianças e adolescentes. “Trabalhamos com conjuntos de resultados sistêmicos e muitos deles estão diretamente ligados à violência, como serviços integrados de atendimento a vítimas ou testemunhas de violência nessas cidades”, diz. Ela ressalta ainda que o Fundo das Nações Unidas também trabalha com a implantação de medidas socioeducativas para adolescentes em conflito com a lei. “Propomos aos municípios que ofertem de forma qualificada as medidas socioeducativas. Mesmo que não tenham em nível municipal, que sejam oferecidas em nível regional”, disse. “Também propomos ações multissetoriais de proteção do direito dos adolescentes à vida”, ressaltou a especialista, citando como o exemplo o trabalho de fortalecimento dos programas municipais de prevenção contra a violência, conforme a realidade local.
Palavra de especialista
Jane Patrícia Haddad, psicopedagoga e mestre em educação
Ameaça em todas as classes sociais
“Precisamos refletir sobre o que esses dados estão dizendo, porque a violência e esses assassinatos de adolescentes atingem todas as classes sociais, não sendo um problema apenas das periferias das cidades. Seja rico ou seja pobre, esses meninos estão em fase de transição, sem experiência de vida, sem direcionamento. Como chegar lá sem ter que matar, derrubar o outro, sem traficar? Não é questão de ter ou não, mas de sentido de vida. É falta do equilíbrio: um tem de menos outro tem demais e, em qualquer situação, independentemente da classe social, não tem responsabilidade sobre aquilo. Temos dois extremos que vivem o mesmo: a falta de perspectiva. O próprio cenário político desenha um descrédito, independentemente do poder econômico. O jovem, mesmo o de poder aquisitivo alto, está sendo privado de algo em termos de sentido de vida, do que tem a conquistar. ”
Jovem é morto a facada na Grande BH
A morte de um adolescente de 17 anos, identificado como Alexsander Júnior Coutinho de Oliveira, aumentou as estatísticas de violência contra essa parcela da população na Grande BH. O rapaz foi assassinado com uma facada no pescoço na madrugada de ontem, no Bairro Eldorado, em Contagem. Embora o envolvimento com a criminalidade seja a uma das maiores causas de assassinato entre essa parcela da população, nesse caso o homicídio aparentemente teve motivação passional. A suspeita da agressão, que teria ocorrido após discussão, seria a namorada do adolescente, uma jovem de 20 inicialmente identificada como Naiara.
Brasil tem 43 mil vítimas em potencial
Se nada for feito para conter a violência que avança entre os jovens, ao fim dos próximos três anos a tendência é de que 43 mil adolescentes sejam assassinados no nos municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, alerta o Unicef. Em 2005, o primeiro ano da pesquisa que estabelece o Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), a taxa nacional foi de 2,75. Foi observada pequena queda nos anos de 2006 e 2007. A partir de 2012, a alta foi constante. “Essa tendência é preocupante, uma vez que a violência letal contra adolescentes tem aumentado”, diz o trabalho do braço da ONU para a infância, que, embora tenha os últimos dados disponíveis relativos a 2014, somente foi concluído no fim do ano passado.
A representante do Unicef no Brasil, Florence Bauer, afirmou, na ocasião do lançamento do estudo, que “a falta de oportunidades tem determinado cruelmente a vida de muitos adolescentes”. E que, enquanto o Brasil nas últimas décadas conseguiu reduzir a mortalidade infantil significativamente, o número de homicídios entre adolescentes cresceu de maneira alarmante.
As mortes de crianças de até 1 ano recuaram de 95.938, em 1990, para 37.501, em 2015. No mesmo período, a quantidade de brasileiros de 10 a 19 anos assassinados aumentou de 4.754 para 10.290, segundo o Datasus. “É primordial que o país valorize melhor a segunda década de vida e dê à adolescência a importância que ela merece”, ressaltou.
O risco relativo por faixa etária revelou uma tendência consistente de aumento das taxas de homicídio de adolescentes em comparação com quase todas as outras faixas. “Em outras palavras, a violência contra os adolescentes está se agravando em termos absolutos e também em termos relativos, quando comparada com os outros grupos de idade”, constata o Unicef. Desde 2012, o número dos brasileiros entre 12 e 18 anos morrendo por agressão é proporcionalmente mais alto do que do resto da população brasileira (31,6 para cada 100 mil adolescentes em 2014, contra 29,7 para cada 100 mil pessoas na população em geral).