Recreio – Veio gente de todo lado e de todo jeito para ver a partida do trem. O senhor na charrete, o jovem na moto, o adolescente na bicicleta... A mãe segurando a criança pela mão, o senhor de cabelos brancos se apoiando na bengala e o fazendeiro numa caminhonete reluzente, estalando de nova. Ao longo do primeiro trecho, famílias capricharam nas fotos, certas de que o 19 de maio de 2018 virava dia histórico na pacata Recreio, de 12 mil habitantes, na Zona da Mata, a 360 quilômetros de Belo Horizonte. Não teve foguete, mas sons tradicionais numa estação ferroviária: às 8h50, soou o apito, seguido do sino da locomotiva, fazendo o coração de muitos bater acelerado de emoção. Estava pronto para partir, um minuto depois, o Trem Turístico Rio-Minas, na primeira viagem teste até Cataguases, em trajeto de 60 quilômetros. Aí, sim, na chegada à noite, teve foguetório, aplausos em clima de festa e, claro, mais apitos.
“No dia em que ele voltar a circular, serei a primeira a comprar a passagem. Fui praticamente criada nesta estação, conheço cada pedaço dela”, disse, com brilho nos olhos, a moradora de Recreio Maria das Graças Lau Silva, de 63 anos, cujo pai, Geraldo Lau, foi funcionário nos áureos tempos da ferrovia. Satisfeita, ela chegou a “ensaiar” uma entrada no vagão dos passageiros, mas apenas para a foto, já que o acesso era restrito ao pessoal técnico.
A previsão é de que Rio-Minas, primeiro trem turístico interestadual do país, comece a circular, em parte do trecho, no segundo semestre, sempre nos fins de semana, com partidas de Cataguases (MG) e Três Rios (RJ), estação de baldeação na mineira Além Paraíba e oito municípios no roteiro. Na versão para passageiros, serão 15 vagões, com capacidade para 870 pessoas, restaurante, lanchonete, um específico para eventos e acessibilidade para deficientes. A velocidade deverá atingir 30km/h e transporte turístico ocupa o antigo ramal ferroviário Leopoldina. Um próximo teste, rumo a Três Rios, será feito em breve.
"Queremos atrair todos os passageiros, não só das regiões mineira e fluminense, mas de todo o Brasil. Será uma viagem prazerosa. Temos certeza de que essa resgate terá impacto positivo na economia dos municípios"
Paulo Henrique do Nascimento, presidente da Ong Amigos do Trem
PASSAGEIROS Satisfeito com o resultado da viagem-teste, Paulo Henrique, mineiro de Juiz de Fora, ficou de olho em todos os detalhes, tanto no interior da composição como no que vinha pela frente. “Nosso objetivo é verificar o trecho, antes usado para transporte de carga, e fazer um relatório técnico a ser encaminhado à Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) para os necessários ajustes. Quando o trem entrar em operação, a responsabilidade será inteiramente nossa”, disse Paulo Henrique, que praticamente se mudou para a oficina de manutenção, na Praça dos Ferroviários, onde locomotiva e vagões receberam os serviços para circular com segurança e conforto. Na mira, durante o percurso, estavam possíveis obstáculos, verificação do distanciamento das plataformas na estação e outros aspectos fundamentais para o funcionamento do serviço.
Criada em 2001 para resgatar o transporte ferroviário, a ONG Amigos do Trem deu a largada decisiva para pôr o projeto nos trilhos em 2015. O investimento totalmente privado atingiu R$ 1 milhão, contando com o apoio da FCA, que cedeu o trecho ferroviário, do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), com a oferta de duas locomotivas e equipamentos, e Sebrae/Rio, responsável por um plano de negócios para a região. Já os vagões, fabricados na Romênia, agora pintados de azul e com plotagem dos patrocinadores, foram adquirido da Vale, no valor de R$ 603 mil, pelo grupo de supermercados Bramil, de Três Rios, que fez a doação para a ONG. “Tivemos o acompanhamento do Ministério Público Federal, por meio do procurador da República Fernando de Almeida Martins”, ressalta Paulo Henrique.
O presidente da ONG afirma que o projeto não tem caráter saudosista. “Queremos atrair todo tipo de público, não só das regiões mineira e fluminense, mas de todo o Brasil. Será uma viagem prazerosa, com paisagens muito bonitas da Zona da Mata. Temos certeza de que esse resgate terá impacto positivo na economia dos municípios, gerando emprego e renda, bem como fortalecimento da cultura e do comércio”, disse, lembrando que no entorno da ferrovia vivem cerca de 900 mil pessoas. Olhando a movimentação na loja de material de construção onde trabalha, bem na frente da praça, Roberto da Costa Machado, de 48, aplaudiu a iniciativa, que considera bem-vinda: “Nosso município vive da pecuária leiteira, e o trem vai ser bom, poderá trazer movimento em vários setores”.
Deslizando os dedos pela pintura azul, o aposentado Sérgio Almeida Fernandes, conhecido popularmente como Psilone, de 68, parecia voltar a outras épocas. Filho de maquinista, ele diz que foi criado dentro das máquinas e vagões que passavam pela região. “Acho que será muito bom para a cidade. No meu tempo, o trem transportava muitos passageiros. Quando foi desativado para transporte de passageiros, na década de 1970, deixou saudade. As pessoas vão ver muitas paisagens bonitas ao longo da estrada. Por isso, este é um dia histórico”, definiu. O casal Luciano da Silva, comerciante, e Denise Siqueira, servidora pública, morador de Volta Redonda (RJ) também fez questão de comparecer. “Nunca andei de trem. Na Europa, as pessoas viajam para todo lado, com tranquilidade. Se tivéssemos, aqui no Brasil, seria ótimo para o turismo deslanchar”, disse Denise.
TREM TURÍSTICO RIO-MINAS
» Previsão de início das operações
Segundo semestre de 2018, sempre nos fins de semana
» Partidas
Cataguases (MG) e Três Rios (RJ), incluindo oito municípios
» Roteiro das estações
1) Cataguases, Leopoldina, Recreio, Volta Grande e Além Paraíba (estação de baldeação)
2) Três Rios, Chiador, Sapucaia e Além Paraíba (estação de baldeação)
Obs: A previsão de partida de Cataguases será às 9h, e de Três Rios, às 10h, com encontro em Além Paraíba (MG), onde os passageiros trocam de trem para seguir viagem a seus destinos
» Extensão do trecho
168 quilômetros
» Composição (total)
15 vagões
» Velocidade do trem
25km/h a 30km/h
» Passageiros
870
» Duração da viagem
De Cataguases a Três Rios: 3 horas e 40 minutos (cinco estações)
De Três Rios a Cataguases: 2 horas (três estações)
Um amor alimentado por várias gerações
Mineiro não perde trem, diz o ditado – e por isso mesmo, a equipe do Estado de Minas chegou à oficina de manutenção de Recreio antes da 6h de sábado. Estava frio, uma cerração rondava a cidade, mas ficou apenas na ameaça. Logo veio o Sol e começou a movimentação da equipe técnica. Impossível não notar que são verdadeiros apaixonados pelo transporte ferroviário e sua história, dos bem jovens aos mais experientes. Há quatro meses em Recreio, o pernambucano Carlos Araújo Pimentel, de 42 anos, traz na pele esse amor, tanto que tatuou no pulso a logomarca da extinta RFFSA (Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima). Manobrador (trabalhador responsável por manobras ferroviárias), ele trabalhou na Transnordestina e, após conhecer a ONG Amigos do Trem, há dois anos, resolver unir forças. “Meu avó era ferroviário, trago essa história no sangue. Tenho certeza de que moradores e visitantes vão gostar”, contou. Carlos está no projeto Ferrovia-Escola, parceria da Amigos do Trem com o Centro de Estudos e Pesquisas Ferroviárias (Cepecer) para formação de mão de obra qualificada.
O maquinista Vanderson Brites Silva, de 33, que trabalha na empresa MRS há 14 anos e, no sábado, atuou como voluntário, teve como auxiliar a irmã Vanessa Aparecida Brites, de 35, que fez o curso de operadora ferroviária no Senai e vai trabalhar como maquinista no trecho Três Rios-Cataguases. Vanderson ligou a máquina às 8h23, e logo veio “uma vontade danada” de embarcar. Tão logo Paulo Henrique deu a autorização, após rezar o Pai Nosso de mãos dadas com o grupo, os repórteres entraram no clima, na companhia dos integrantes da ONG Cynthia Nascimento Leite, das áreas de comunicação e assistência social, Juliana Alvim, auxiliar administrativo, e do estagiário Otávio Maciel do Bem, de 22, formado em mecânica industrial. “É a primeira vez que viajo de trem, mas também tenho história na família, pois meu padrinho foi maquinista. Não é que esta iniciativa tenha tudo para dar certo: já deu certo”, afirmou o jovem, com confiança. Da equipe embarcada fez parte também o mecânico Tarcísio Tiradentes dos Santos.
Das janelas das casas, no alto dos morros, correndo ao lado dos muros – em todo canto havia crianças e adultos de celular a postos, registrando a passagem do trem. “Olha o trem!”, berravam meninos e meninas em bandos, como se fossem passarinhos. Depois de deixar o perímetro urbano de Recreio em direção a Cataguases, descortinavam-se planos abertos de capineiras, laranjais carregados, descampados verdes, rios, córregos, alguns bem limpos, árvores solitárias como se fossem esculturas e a espetacular Curva da Ferradura, nesse formato, na passagem de nível na rodovia entre Recreio e Leopoldina. “Na viagem, os passageiros poderão ver a represa de Furnas, fazendas centenárias e as próprias estações, que são um patrimônio histórico”, conta Paulo Henrique do Nascimento, presidente da ONG Amigos do Trem. Ele informa que a reforma das estações, sinalização, pintura de faixas e adequação para atender as normas da Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) estará a cargo das prefeituras do trecho.
Estima-se que com o início das operações do Trem Rio-Minas sejam gerados cerca de 500 empregos diretos e indiretos. O presidente da Amigos do Trem destaca os entendimentos com empresas de turismo para a criação de futuros pacotes de viagens. A médio prazo, existe a possibilidade de ser incorporado um novo ramal, com as estações dos distritos do município de Palma, também na Zona da Mata. Sobre o ineditismo turístico da iniciativa em escala interestadual, Paulo Henrique esclarece que o trem da Vale, que faz o trajeto BH-Vitória-ES, não se enquadra nessa categoria, por ser regular de passageiros, e outros, a exemplo da linha Curitiba-Morretes, trafegam apenas 70 quilômetros dentro do território paranaense.