Jornal Estado de Minas

Mineira com história de superação dará palestra em Nova York

Convite para a palestra da mineira, que terá transmissão em português e inglês pela internet - Foto: Brado NYC/DivulgaçãoNesta sexta-feira, professores doutores da Universidade da Cidade de Nova York (Cuny, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, em vez de assistirem aos jogos da Copa do Mundo da Rússia – competição que não é disputada pela Seleção dos EUA –, voltarão sua atenção a uma brasileira que saiu do Norte de Minas para se tornar exemplo internacional de superação. A palestrante não tem diploma acadêmico, mas é uma doutora na arte de “ir à luta” e romper barreiras. Nascida em Manga, às margens do Rio São Francisco, no Norte de Minas, Alline Parreira, de 27 anos, vai narrar a sua história de luta para os professores da instituição americana. 


Negra e pobre, a mineira passou por duas famílias adotivas. Logo cedo, aprendeu a lutar contra o racismo e o preconceito, além de superar os obstáculos da vida. Ela conta que, para sobreviver, já catou latinhas, vendeu cigarros e vela em porta de cemitério, e, por fim, passou em um concurso para gari, que acabou sendo anulado. Com 18 anos, deixou a quente Manga e morou em Brasília (DF) e em outras cidades brasileiras. Também já viveu uma experiência na África.

Há dois anos, decidiu mudar-se para Nova York, onde trabalha como faxineira.
Nesta sexta-feira, vai falar sobre sua trajetória para os integrantes da academia, em palestra/documentário que terá transmissão pela internet, às 19h (horário de Brasília). O evento é uma iniciativa do Coletivo Brado NYC, grupo que se define como “comitê de resistência contra a derrubada democrática”.

As dificuldades, Alline afirma que encarou já na infância. “Desde muito cedo fazia troca de alimentos com o povo de Manga. Com 8 anos, vendia vela na porta do cemitério da cidade”, relembrou a emigrante, em entrevista ao Estado de Minas. Ainda na cidade natal, revela que chegou a catar latinhas para sobreviver.

Ao atingir a maioridade, conta, fez um concurso público para gari na Prefeitura de Juvenília (a 80 quilômetros de sua terra natal, também no Norte de Minas). Foi aprovada em primeiro lugar, mas no dia de tomar posse ficou sabendo que o concurso tinha sido contestado na Justiça. 


Naquele momento, ela decidiu deixa a região para tentar a sorte em Brasília, onde trabalhou como faxineira, babá e também como auxiliar de serviços gerais em um quartel da Polícia Militar (PM), após aprovação em processo seletivo.

Depois, passou a morar em Paraty, litoral Sul do Rio de Janeiro, onde trabalhou como garçonete, e continuou a encarar a dureza. “De dia, vendia doces. Depois do trabalho, quando o bar fechava, vendia cigarros”, relata. 



AMPLIANDO O HORIZONTE
Em 2014, ela ganhou uma bolsa em um programa de intercâmbio do governo brasileiro e passou um período em Moçambique, na África, onde colaborou com um projeto de alfabetização de 100 crianças. “(A experiência) mudou meu rumo e ampliou meus horizontes, com o conhecimento prático de uma mulher negra viajando sozinha”, descreve.

Apesar de não ter diploma superior, isso não significa que nunca teve contato com as universidades. Alline conta que passou em vestibulares em duas universidades brasileiras renomadas. A primeira foi a de Brasília (Unb), onde foi aprovada pelo sistema de cotas para o curso de gestão de agronegócios, mas acabou não se interessando e não chegou a fazer a matrícula.

Depois, foi aprovada para o curso de licenciatura em geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
“Eu só assisti a um dia de aula”, lembra. Mas, nesse caso, existia o pleno interesse de Alline em fazer o curso. O motivo da desistência foi a sua própria condição de vida. “Estava lutando pela minha sobrevivência. Tive que escolher entre estudar ou sobreviver. Preferi sobreviver”, acentua.

Diferenças gigantescas

A emigrante mineira Alline Pereira explica que trabalha como faxineira em Nova York, nos Estados Unidos, por opção: “Foi uma escolha que fiz para este momento. O serviço de faxina aqui é muito mais valorizado. Faxineira ganha tanto quanto um médico”, disse. “Acordo às 7h, pego trem, volto para casa às 17h. Tenho disposição para ler, escrever e viver uma vida social.

No Brasil, as faxineiras acordam às 5h para ir ao trabalho, pegam ônibus e chegam em casa às 19h. Chegam cansadas e o seu salário está muito distante do salário de um médico”, compara. “Fazer faxina é uma intelectualidade. Quando entro numa casa há toda uma ordem e sequência para realizar o serviço. Aqui não é igual ao regime do Brasil, que ainda é escravocrata. Aqui, uma faxineira ganha o mesmo salário que a classe média”, reitera.

As dificuldades ao longo da vida não a impediram em nada de ser uma mulher culta e adepta das leituras. “A vida foi a minha universidade: eu, sem curso superior, sem nada, adquiri todas essas informações. Aprendo e pesquiso muito. Minha construção identitária é baseada no que aprendi lendo os autores acadêmicos Angela Davis e Frantz Fanon”, relembra.
“Com Angela Davis, em Mulheres, raça e classe, identifiquei que em todo esse processo da construção de minha identidade, gênero, raça e classe sempre caminharam juntos. Sou mulher negra e pobre. Com Frantz Fanon, no livro Peles negras, máscaras brancas, de uma forma muito radical, eu me descolonizei, modifiquei totalmente o meu ser, me libertei”, relata Alline, que também pretende lançar um livro sobre a sua experiência de vida.

Ela afirma que pretende, durante a palestra na Cuny, focalizar a sua luta como ativista contra o preconceito em defesa dos direitos das mulheres. “Vou enfatizar meu ativismo, no sentido amplo, como enfrentei sistemas interligados de opressão, que instrumentos utilizei (incluindo ideias, conceitos e teorias), com quem articulei e lutou comigo. Que pessoas, comunidades, instituições me deram – ou negaram– oportunidades e como minha luta se integrou ou integra às outras lutas para transformação social. E, talvez mais importante, mostrar como aprendi a “ler o mundo”, como dizia Paulo Freire (educador brasileiro).”

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