Estado com a maior malha viária do país, Minas Gerais figura com frequência entre aqueles com maiores estatísticas de mortalidade nas estradas. É igualmente notória a violência de desastres em que veículos se chocam de frente em rodovias de pistas simples, sem barreiras físicas entre as mãos de direção, o que multiplica a quantidade de vítimas. Mas um número oculto nas estatísticas dos milhares de acidentes nas pistas duplicadas – aquelas divididas por obstáculos e por isso aparentemente mais seguras – revela uma realidade ainda mais cruel: estradas mineiras são letais em qualquer circunstância, e matam ainda mais por quilômetro quando são mais bem estruturadas, com fluxos de trânsito duplicados e separados.
É o que revela levantamento exclusivo, feito com base em cruzamento de dados apurados pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) a pedido do Estado de Minas. Os números mostram que a letalidade por quilômetro nas rodovias federais mineiras é maior em trechos duplicados, com barreira física para dividir fluxos opostos, do que nas estradas que não contam com essa estrutura e onde os motoristas ainda estão à mercê das violentas batidas de frente. Dados consolidados dos últimos dois anos revelam que o índice de mortes em cada um dos 1.208 quilômetros de pistas duplicadas no estado foi de 0,175 óbito em 2016, saltando para 0,183 no ano passado. Já nos trechos de pista simples, que somam 4.564 quilômetros, a taxa de letalidade a cada mil metros de pista ficou em 0,134 em 2016, subindo para 0,141 em 2017 (veja arte na página 14).
Os índices foram obtidos comparando as mortes por trecho com a quantidade de quilômetros de cada segmento – duplicado ou não. Em 2016, das 826 mortes nas estradas federais de Minas policiadas pela PRF, 614 ocorreram nos 4.564 quilômetros de pistas simples das BRs mineiras. As outras 212 mortes ocorreram nos 1.208 quilômetros de pistas duplas. No ano passado, foram 869 mortes no total, sendo 647 na mesma extensão de pistas simples e 222 nas rodovias duplicadas. Os números referentes a 2018 não estão consolidados, nem foram divididos por tipo de estrada, mas já se sabe que ao todo pelo menos 304 pessoas perderam a vida até junho nas rodovias mineiras, em uma dessas circunstâncias.
Para especialistas, motoristas, parentes de pessoas que morreram nas tragédias rodoviárias e para a própria PRF, a conclusão é simples: a duplicação é extremamente necessária para melhorar as condições de circulação e para eliminar as batidas que produzem maior número absoluto de vítimas em menos acidentes, porém, esse tipo de obra só tem resultado efetivo para reduzir a mortalidade nas vias se vier acompanhada de controle rigoroso de velocidade. Em Minas, esse controle é falho, seja por falta de radares ou por equipamentos de controle inoperantes por causa da burocracia ou pela descontinuidade dos contratos que regulam seu funcionamento.
Para constatar o perigo expresso pela alta velocidade, especialmente nas pistas duplicadas, bastam alguns minutos no acostamento em algum desses trechos observando caminhões, carros, motos e ônibus rasgando o asfalto acima dos limites permitidos. Para traduzir essa situação em números, o EM acompanhou na última semana uma das operações do Grupo de Fiscalização de Trânsito da Delegacia Metropolitana da PRF, usando um dos 28 radares móveis da corporação em Minas. Durante três horas, em dois pontos diferentes da BR-262, na Grande BH, 130 motoristas foram autuados acima dos limites permitidos – de 100 km/h para carros pequenos e 90 Km/h para veículos pesados, no km 365, em Juatuba, e de 80 km/h para todos os veículos no Km 376, em Florestal.
No primeiro ponto, o radar operado pelo agente da PRF Gledson Ferreira da Silva flagrou um veículo a 150km/h. No início do ano, o radar, naquela oportunidade operado pelo policial Marcelo Oliveira, flagrou uma BMW a 220km/h no mesmo ponto da BR-262, em Florestal. “Em uma rodovia duplicada não existe o mesmo risco de colisão frontal, mas há saídas de pista, capotagens, colisões com objeto fixo, entre outros. E quanto maior a velocidade, maior a gravidade do acidente”, destaca Gledson.
O inspetor Fábio Jardim, do Núcleo de Comunicação da PRF, diz que a mudança de perfil em uma rodovia precisa vir acompanhada de controle de velocidade e de infraestrutura adequada. “Com a melhoria da rodovia, alguns problemas são resolvidos, como a separação entre veículos transitando em sentidos contrários e traçados menos sinuosos, mas outros acabam surgindo, como o grande incremento da velocidade e o aumento dos riscos representados pela monotonia e pelo sono ao volante, que geram acidentes tão graves quanto aqueles que ocorrem em pistas simples”, afirma.
IMPACTO
O diretor da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), Dirceu Rodrigues Alves Júnior, explica que a energia cinética gerada pelo movimento dos veículos é a mesma tanto em uma colisão frontal de dois veículos a 60km/h cada quanto em uma batida de um veículo a 120 km/h em um objeto fixo. “A energia cinética produzida pelo aumento da velocidade é intensa. Quanto mais velocidade, mais energia cinética, e qualquer colisão, seja num objeto fixo ou num veículo que vai à frente ou no sentido contrário, a colisão é gravíssima. Quanto mais velocidade, mais chance de óbito no local do acidente”, alerta o médico.
O excesso de velocidade é exatamente uma das possibilidades para o acidente que tirou a vida do jovem Evandro Antônio Maia, de 26 anos, em dezembro de 2015, após uma capotagem na Rodovia Fernão Dias, trecho duplicado da BR-381 entre Minas e São Paulo. O carro em que ele estava, dirigido pelo amigo Roberto Marcos Guilherme, se descontrolou em uma curva em Igarapé, na Região Metropolitana de BH, e capotou. Os dois, que voltavam de uma festa em Itatiaiuçu, na Grande BH, morreram no local. “Com a capotagem, o carro foi parar do outro lado da pista e ficou muito danificado, o que leva a crer que estivesse em alta velocidade. Se algo tivesse sido feito antes para fiscalizar o limite permitido, meu filho poderia estar aqui comigo agora”, diz a mãe de Evandro, Maximiliana Maria da Silva, de 48.
Um desafio de mão dupla
O sociólogo e consultor em segurança no trânsito Eduardo Biavati avalia que, quando uma rodovia é duplicada, seu padrão de limite de velocidade também se altera. A estrutura melhora, com mais largura de faixas e presença de acostamento. “É uma via que permite velocidade média superior às rodovias de pistas simples. Quando se duplica uma estrada, isso não quer dizer que o risco acabou, por se ter eliminado um fator decisivo para a colisão frontal. A duplicação em si de uma estrada não é passe de mágica e não há experiência no mundo que mostre que as pessoas abaixaram a velocidade sem controle eletrônico”, adverte.
Já o mestre em engenharia de transportes pelo Instituto Militar de Engenharia do Rio de Janeiro Paulo Rogério Monteiro, embora reconheça a ameaça do excesso de velocidade nas rodovias duplicadas, chama a atenção para a necessidade de intervenção nas estradas de pistas simples, pelo fato de elas concentrarem os desastres mais violentos, com maior número de vítimas por acidente. Para ele, é de extrema importância considerar as ações necessárias para resolver o problema das rodovias não duplicadas, que ainda representam quase 80% da malha viária de Minas.
Risco por todo o país
O levantamento feito pela Polícia Rodoviária Federal a pedido da reportagem do EM para o cenário de Minas Gerais mostra uma realidade que se repete nacionalmente, de acordo com dados da pesquisa Acidentes Rodoviários e Infraestrutura, da Confederação Nacional dos Transportes (CNT). Nas pistas duplicadas, os números de 2017 registram 18.987 acidentes nas rodovias federais de todo o país, com 1.243 mortes nos 6.489km de extensão, o que significa uma letalidade de 0,191 morte por quilômetro. Já nas pistas simples, onde existe possibilidade de colisão frontal, foram 24.782 acidentes, com 3.497 mortes em 35.230km de extensão, média de 0,099 morte a cada quilômetro.