“A Anna Laura estava em um período de vida muito feliz. Recém-formada, trabalhando na área de que gostava. Hoje minha grande expectativa é ter alguma intervenção para que ninguém passe pelo que estamos passando. É uma dor que só quem sofreu pode imaginar”, diz o funcionário público Evandro Fagundes dos Santos, de 55 anos, que compartilha o mesmo sentimento da engenheira civil e ambiental Leticia Robbe Basilio, de 28. “O que mais sentimos é que fomos travadas no meio de uma vivência que poderia ter sido muito maior e melhor. A gente é jovem e sente que a vida do meu pai foi interrompida e ele tinha muito mais pra viver com a gente”, diz ela.
As famílias de Evandro e Leticia não se conhecem, mas o destino trágico de seus entes queridos no mesmo trecho da BR-040 os faz cobrar melhorias sonhadas não só por eles, mas por milhares de outros motoristas. São condutores que viram a concessão de rodovias em Minas Gerais como a possibilidade tirar do papel as obras de duplicação capazes de eliminar o fantasma da colisão frontal, tipo de acidente mais letal nas rodovias federais de Minas Gerais. Porém, a cobrança de pedágio em rodovias como as BRs 040, 262 e 153 há mais de quatro anos ainda não significou a tão sonhada duplicação.
Se por um lado a ampliação da capacidade e a colocação de barreiras físicas para separar os fluxos opostos não garantem uma redução drástica nos desastres com mortes nas rodovias, principalmente devido à falta de um controle rigoroso de velocidade, conforme o Estado de Minas mostrou em sua edição de ontem, por outro ela é a principal medida para eliminar a chance de tragédias como as 756 batidas que no ano passado mataram 289 pessoas nas BRs mineiras de responsabilidade da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Isso significa que, em termos de colisão frontal, a cada 2,6 acidentes uma pessoa morreu em 2017. Se essa mesma conta for feita contando todas as ocorrências, foram 11.953 acidentes e 580 óbitos, o que significa uma morte a cada 20 batidas.
Uma das rodovias em que a população aguarda desde abril de 2014 por uma solução é BR-040, seja no trecho entre Belo Horizonte e Juiz de Fora (Zona da Mata) seja no que vai para Curvelo (Região Central) e Brasília. No primeiro, as histórias de Evandro e Leticia se unem. Em fevereiro de 2016, Leticia perdeu o pai, o engenheiro Pedro Augusto Cainelli Basilio, que tinha 55 anos, após uma batida na porta do Iate Clube Lagoa dos Ingleses. Ele atravessava a rodovia de carro para entrar no clube quando foi atingido pelo veículo que vinha no sentido BH da rodovia. Já Evandro perdeu a filha Anna Laura de Castro Fagundes, de 26, em fevereiro deste ano. Anna, que era engenheira química e trabalhava em uma cervejaria do Bairro Jardim Canadá, em Nova Lima, seguia de carro entre a entrada do condomínio Retiro do Chalé e o trabalho, quando, segundo a PRF, seu veículo derrapou e atingiu de frente outro carro onde seguiam pai e filho, um jovem de 21, que também morreu na batida.
Junto com a esposa, Lilian Soares de Castro Fagundes, de 55, Evandro busca forças para viver sem a presença da filha, que tinha uma vida pela frente. O casal, que tem casa no Retiro do Chalé, ajudava a jovem a montar uma microcervejaria artesanal própria, que seria inaugurada uma semana depois do acidente. Hoje, a produção de cerveja para os amigos está mantida, uma forma que os dois encontraram de manter a memória de Anna viva. “Quero colocar vida no lugar que a gente sonhou e preparou para ela”, diz Evandro. “Se algo já tivesse sido feito naquela estrada, quantas vidas poderiam ter sido preservadas?”, questiona Lilian. Ela destaca que três acidentes da última semana nas imediações do retiro, sendo dois bem próximos ao condomínio, reacenderam o medo que circula pelas mensagens de WhatsApp nos grupos de condôminos. Seis pessoas morreram em três batidas, sendo que em uma delas, um pouco mais distante, em Itabirito, um bebê foi resgatado das ferragens com vida (leia depoimento no fim da página). “Quando tem acidente, o condomínio inteiro já fica esperando quem vai ser dessa vez”, acrescenta Lilian. “Eu gostaria de ter uma forma de sensibilizar quem pode fazer algo, porque as pessoas apenas podem imaginar a dor de quem perde um ente querido.A dimensão do sofrimento só tem quem realmente passa por isso”, finaliza Evandro.
O casal espera por intervenções urgentes entre o trevo de acesso à BR-356 e o pedágio de Itabirito, que, segundo marido e mulher, teve o perigo potencializado nos últimos anos devido ao aumento do fluxo. Assim como eles, a engenheira Leticia Robbe Basilio também quer intervenções capazes de evitar tragédias. Na semana da morte do pai em frente ao Iate Clube Lagoa dos Ingleses, o acesso ao local com o atravessamento da pista foi retirado e agora é necessário retornar na entrada do Retiro do Chalé. “O problema é que os responsáveis sempre esperam a fatalidade para fazer alguma coisa”, diz ela. Pedro Augusto Cainelli Basilio velejava na Lagoa dos Ingleses com frequência. Ele era um apaixonado pelo esporte, segundo a filha, prática em que ela e as duas irmãs acompanhavam o pai e agora ficou de lado. “A graça era velejar com ele. Meu pai era uma pessoa cheia de vida. Meu melhor amigo, conselheiro e um cara que por onde passava fazia amigos e deixava marcas de alegria”, completa.
Concessionárias apontam barreiras
A duplicação da BR-040 esbarra na obtenção das licenças ambientais para realizar as obras, de acordo com a Via 040, concessionária responsável pela rodovia. A empresa sustenta que duplicou os 73 quilômetros para os quais tinha as licenças, o que corresponde a mais de 10% da meta inicial. “Nos últimos quatro anos, a Via 040 registrou redução de 35,3% nos acidentes com mortes na BR-040, se comparado aos quatro anos anteriores à gestão da concessionária, que se iniciou em 2014. A concessionária afirma que faz contínuos investimentos em manutenção, equipamentos, melhoria do pavimento, conservação e sinalização, principalmente em pontos que demandam mais atenção dos motoristas. Ao longo desse período, foram feitos investimentos em melhoria do asfalto e instaladas 19 mil novas placas de sinalização”, informou.
Apesar de a BR-040 ter sempre duas faixas em cada sentido entre Belo Horizonte e Juiz de Fora, ela não possui uma barreira física para dividir os fluxos opostos e por isso não é considerada duplicada. Além disso também não tem acostamento, outro fator de risco.
A gerente-geral do Retiro do Chalé, Lucimar Pereira Evangelista, conta que já participou de reuniões com a Via 040 e com a ANTT onde ouviu dos representantes da concessionária que a falta de licenças ambientais trava as obras. “A população que mora ou transita por essa região quer as obras de duplicação e também um radar próximo da entrada do retiro”, defende.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) enviou nota dizendo que todo o trecho da BR-040 correspondente à concessão da Via 040 já possui licença para as obras de duplicação, válida até 6 de abril de 2022. Porém, o órgão reconhece que existem segmentos em Minas bloqueados para as obras em razão da falta de estudos sobre cavernas naturais da região. Também há bloqueios por conta da reprovação, pelo Ibama, de projetos de intervenção em cursos d’água.
Já a Triunfo Concebra, que tem a obrigação de duplicar os trechos que ainda são de pistas simples das BRs 262 e 153 sustenta que não há previsão de intervenções. “A não liberação do financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) sem juros subsidiados inviabiliza a continuidade das obras”, diz a empresa em nota. A Triunfo afirma que a aquisição de financiamento no mercado financeiro não é factível. A ANTT informou que já multou a Triunfo Concebra por descumprimento de metas de duplicação. A agência afirma também que propôs o desconto de reequilíbrio da tarifa de pedágio tanto para a Concebra quanto para a Via 040, mas não esclareceu se essa punição significou a redução do valor pago pelos motoristas nas cabines.
Resgate de bebê das ferragens com vida
"A carreta tombou em cima do carro e o acesso era muito difícil , mas quando visualizamos o bebê, começamos a cortar colunas e o teto para chegar a ele. Pensei no meu filho, de 3 meses, e fiquei tentando conversar com a criança para que ela permanecesse acordada. Quando o médico da Via 040 pegou o bebê, viu que não tinha lesões. Em quatro anos e meio servindo o Corpo de Bombeiros foi a ocorrência que mais me emocionou".
Frederico Campos Resende, de 30 anos, soldado do Corpo de Bombeiros que participou do resgate de um bebê de 10 meses depois de batida na BR-040 que matou os pais da criança e o condutor de outro carro envolvido no acidente