Uma batalha que divide opiniões e preocupa pais e mães em todo o país chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), mas nem mesmo o pronunciamento da mais alta corte da Justiça no país encerrou a polêmica e unificou a data de corte para entrada de crianças na educação infantil e no ensino fundamental no país. Com muitas idas e vinda nos últimos oito anos, o assunto que parecia resolvido – relativo à data limite para que sejam admitidos na pré-escola e na educação básica meninos e meninas que completam 4 ou 6 anos – volta à tona depois de entrar na pauta do STF. Desta vez, a controvérsia extrapolou a apreensão das famílias, temerosas de que seus filhos sejam obrigados a repetir um ano para se adequar às regras: chegou à direção de estabelecimentos de ensino, que chegaram a anunciar equivocadamente mudança de normas.
O desconhecimento da legislação, o embaraço com termos técnicos e a desinformação alimentada por boatos em redes sociais criou um caos em torno do tema. Em Belo Horizonte, já há instituições informando sobre supostas mudanças na legislação que, no caso de Minas Gerais, não sofre alteração. Educadores alertam: em território mineiro, independentemente da rede de ensino, a data limite de aniversário para candidatos a entrar na educação infantil e no ensino fundamental permanece em 30 de junho. Mesmo se houver mudanças no cenário, crianças que já estejam matriculadas não sofrerão qualquer impacto, garante o Conselho Nacional de Educação (CNE).
Pela legislação mineira, crianças que completam 4 anos ou 6 anos até 30 de junho entram no ensino infantil (1º período) ou no fundamental (1º ano) no ano corrente. Sendo assim, aqueles que fazem aniversário a partir de 1º de julho devem se matricular no maternal e a escola só se torna obrigatória no ano seguinte. Já quem faz 6 anos a partir dessa data tem vaga garantida, mas também na educação infantil, e só vai para o nível fundamental no ano seguinte.
Mesmo assim, em grupos de WhatsApp de pais e em escolas infantis e até em grandes redes de ensino, o assunto da vez é “a nova lei definida pelo Supremo Tribunal Federal em 1º de agosto”. A confusão de deve a decisão do Plenário do STF, que julgou constitucional, por 6 votos a 5, a deliberação do Conselho Nacional de Educação que fixou em 31 de março a data limite para que estejam completas as idades mínimas de 4 e 6 anos para ingresso na escola.
QUESTÃO DE COMPETÊNCIA A decisão da Corte (veja arte) foi tomada em resposta a duas ações que tratavam do tema. Uma delas foi ajuizada em 2013, pela Procuradoria-Geral da República, e contestava as resoluções 6/2010 e 1/2010, do CNE, que definiram a data de corte de 31 de março para 4 anos e 6 anos. A outra ação, de 2007, foi ajuizada pelo governo do Mato Grosso do Sul, e pedia a declaração de constitucionalidade dos artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, com a interpretação de que o ingresso no ensino fundamental está limitado a crianças com 6 anos de idade completos no início do ano letivo.
“O que o STF fez foi julgar se era da competência ou não do CNE fixar a data de corte para ingresso em todo o Brasil. Tem que seguir o que o CNE está propondo? Ele tem competência para isso? Concluiu-se que o conselho tem competência e pode fixar a resolução, que surgiu para nortear a questão no país, mas não tem caráter de lei”, afirma o diretor-executivo do Colégio Arnaldo, Geraldo Júnio.
Ele destaca que em momento algum se questionou no Plenário do Supremo outras legislações existentes – estaduais, municipais ou pareceres de conselhos estaduais e municipais de educação. “Tomou-se uma decisão vinculante caso alguém questione a competência do CNE. Sim, o Conselho Nacional a tem. Mas isso não derruba as demais legislações. Até que o acórdão seja publicado e se faça a leitura detalhada, a legislação mineira está vigente”, completa. Pela Lei Estadual 20.817/2013, deverá entrar no ensino fundamental em Minas Gerais a criança que completa 6 anos até 30 de junho do ano em que ocorrer a matrícula, mesma data para a educação infantil e crianças de 4 anos.
O acórdão, o documento mais esperado do momento, segundo especialistas, é a única chance de que haja mudanças em Minas, pois o texto pode conter orientação que assuma força de lei. O prazo de publicação é de até 60 dias após o julgamento. “Embora não seja essa a função, em alguns momentos os acórdãos do STF têm surpreendido, fazendo com que o Supremo assuma papel legislador. Quando a área legislativa não deixa claro o que fazer, o tribunal cria regras”, diz Geraldo Júnio, do Colégio Arnaldo. Mas o diretor acredita ser pouco provável que isso ocorra nessa situação. “A LDB deixa claro que educação básica é de competência de estados e municípios”, conclui.
Alunos não serão prejudicados
Crianças já matriculadas em escolas não devem sofrer impactos do debate sobre a data de corte para ingresso no ensino infantil ou fundamental, mesmo que haja mudanças futuras. Em Minas Gerais, além de os estudantes estarem apoiados por legislação estadual, se valem ainda de determinação do próprio Conselho Nacional de Educação (CNE), segundo o qual eventuais novas regras valerão apenas para estudantes prestes a ingressar na escola. Por isso, calma e prudência se tornaram as palavras-chave para instituições de ensino e famílias. Pelo menos na visão das entidades que regem a educação. Do lado público, o estado aguarda a publicação do acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF). Do lado das instituições privadas, a orientação do Sindicato das Escolas Particulares (Sinep/MG) é também não mudar nada, incluindo os editais de matrícula para 2019, até a divulgação do documento do Supremo.
O Conselho Nacional promete para mês que vem formalizar seu entendimento acerca da data de corte para a escolarização e aprovar um parecer orientativo para escolas e sistemas de ensino sobre a idade correta para as matrículas das crianças. O CNE informa que vai reafirmar os dispositivos das resoluções de 2010 e expedir orientações sobre o ajustamento de conduta das escolas e sistemas que vêm praticando matrículas considerando corte etário diferente de 31 de março.
“Nesse novo parecer, o CNE também vai reafirmar as orientações que vem dando nos últimos anos, no sentido de que as crianças que já estejam frequentando alguma etapa da educação infantil ou o primeiro ano no ensino fundamental não sejam prejudicadas, e que continuem sem interrupção ou retenção no seu percurso educativo, mesmo que façam aniversário depois de 31 de março”, informou o Conselho Nacional, em nota. “Já as crianças que ingressarão na educação infantil ou no primeiro ano do ensino fundamental sem terem frequentado escola anteriormente deverão seguir a data de 31 de março”, conclui.
A informação já está sendo repassada às escolas por meio de ofício enviado pela Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep) a estabelecimentos de todo o país. Nele, o presidente da entidade, Ademar Batista Pereira, esclarece os termos da decissão do STF, no início do mês, que causou o desentendimento e a polêmica. O objetivo é encerrar situações como as que vêm ocorrendo em alguns estabelecimentos. A mãe de um aluno de um colégio particular na Região Leste de Belo Horizonte, que prefere não se identificar, conta que pais de crianças que fazem aniversário entre 1º de abril e 30 de junho (portanto entre a data indicada pelo CNE e a estabelecida pelo estado) e estão amparados pela legislação estadual foram avisados formalmente pela direção sobre as mudanças. “Disseram que seguiriam a ‘lei nova’, de 31 de março. E que os meninos teriam que se adequar já a partir do ano que vem”, relata.
A orientação do Sinep/MG é outra. “O STF julgou ato declaratório, não deu normas. Voltar a normas antigas significa mexer em projetos pedagógicos, sendo que há leis específicas de conselhos estaduais e municipais. Acredito que não vão normatizar, pois esse é o maior transtorno que pode existir”, afirma a presidente do Sinep, Zuleica Reis. Em todo o país, pelo menos 40 mil instituições de ensino privadas teriam impacto com eventuais mudanças. Em Minas, são 3,7 mil escolas, de 418 municípios.
Sindicato orienta a manter regra
O Sindicato das Escolas Particulares de Minas Gerais (Sinep/MG) começou a enviar na semana passada às escolas credenciadas ofício com orientações sobre a data de corte, nos mesmos moldes do documento feito pela Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep). Em conclusões preliminares com base no julgamento e nas informações repassadas pelo Conselho Nacional de Educação, o presidente da entidade nacional, Ademar Pereira, orienta que, nos estados e municípios que têm norma regulando a idade de ingresso, seja respeitada essa regra para fins de matrícula para o ano que vem, “não só pela hierarquia formal entre normas (lei local em confronto com resolução do CNE, que não tem força legal), ou pela maior especificidade da norma estadual e municipal frente à norma geral”. “Toda lei se presume constitucional até que seja invalidada por pronunciamento específico, o que não ocorreu no caso”, adverte.
O mesmo se aplica a lugares que tenham norma própria expedida por seus conselhos estaduais e municipais. Já estados e municípios que não têm lei formal ou norma editada por conselhos devem observar a orientação do CNE, “respeitada a razoabilidade de uma regra de transição em cada instituição de ensino, em que se resguarde o direito dos alunos que já estejam matriculados e nivelados, para que não sofram retenção desnecessária”, segundo nota da Fenep.
Entre os 26 estados da Federação e o Distrito Federal, praticamente metade segue a regra de 31 de março. Pelo menos 13 secretarias estaduais de Educação acompanham a normativa do CNE ou têm resoluções de seus conselhos estaduais que repetem a orientação nacional. Oito adotam como data de corte 30 de junho (caso de Minas) ou 31 de dezembro (nessa última situação, a criança pode completar 6 anos em qualquer mês do ano em que ingressar no nível fundamental). São estados que têm legislação própria ou obedecem a decisão judicial. Consultados pelo Estado de Minas sobre o assunto, os governos do Acre, Amapá, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte e Alagoas não deram retorno.
Secretaria adota tom de cautela
A Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais informou, por meio de nota, que não foi comunicada formalmente sobre o teor da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a data de corte para ingresso na escola infantil e que também aguarda a publicação do acórdão, ao qual ainda não teve acesso. “Ainda não há diretrizes oficialmente firmadas pelo STF para que haja um posicionamento sobre o assunto. A secretaria adianta que, se for verificada inconsistência entre a lei estadual e a decisão do Supremo, tomará as medidas necessárias no sentido de adequar nossa legislação às diretrizes fixadas pela Corte”, diz o texto. Algo que, se necessário, não ocorrerá da noite para o dia, uma vez que a lei estadual deverá ser revogada e uma nova discutida na Assembleia Legislativa. “Retornar um ano no percurso escolar de um aluno é muito complexo para se fazer numa canetada”, diz o diretor-executivo do Colégio Arnaldo, Geraldo Júnio. Por isso, mais que orientação, ele diz que o momento é de calma entre as famílias e as escolas.
A terapeuta Fernanda Vida, de 33 anos, sentiu na pele a polêmica da data de corte para entrada na escola, duas vezes seguidas. Os três filhos dela são do mês de abril e, por isso, Fernanda enfrentou transtorno algumas vezes. A primeira delas foi com os filhos Lucas, hoje com 9 anos, e Beatriz, de 8. Seis meses depois de entrarem no maternal 3 e 2, respectivamente, em uma escola particular, a diretora avisou que as duas crianças, que faziam aniversário em 8 e 26 de abril, teriam de repetir o ano, para se adequar à data então estipulada pelo CNE em 31 de março. “Esperei a acabar o ano e mudei os dois de escola. Eles repetiram, mas nem se deram conta.”
Mas, dois anos depois, com Lucas no 1º período e Beatriz no maternal 3, veio a lei estadual, redefinindo a data de corte para 30 de junho, e a notícia de que as crianças poderiam “pular” um ano. “Havia ainda um prazo de adequação e quem quisesse pôr os filhos na série seguinte poderia. Eles tinham acabado de repetir, por isso, optei por não avançar. Quando foram para o ensino fundamental, vivi o medo de a escola não aceitar, por causa da idade”, conta.
O terceiro filho, Pedro, nascido em 2012, entrou no maternal 1 seguindo a resolução do CNE, mas, em 2014, último ano de adequação da lei estadual, ele foi obrigado a ir para o maternal 3, para ficar em conformidade com a legislação mineira. Fernanda até tentou que o filho continuasse na regra de 31 de março, mas as escolas não aceitaram. “Na época que os dois primeiros voltaram, fiquei muito angustiada, pensando no que eles sentiriam e na perda dos amigos. Mas adiantar a criança na escola bate muito na imaturidade, porque pula etapa e isso faz diferença. Esse vaivém é terrível, pois as famílias ficam sem saber o que fazer, as escolas começam a emitir nota e a marcar reunião e as informações ficam truncadas.”