A história colonial de Minas não para de surpreender, de se abrir a novas descobertas e permitir, aos estudiosos, mergulhos profundos em documentos que trazem à luz personagens de relevância, embora muitas vezes apagados pelo tempo ou à sombra de seus contemporâneos. Com paixão pela pesquisa, pelos estilos barroco e rococó, a professora doutora Patrícia Urias se dedicou durante quatro anos à vida, à obra e ao legado do português Francisco de Lima Cerqueira (1728-1808), mestre de obras, louvado (perito) e arquiteto, que trabalhou em igrejas de Ouro Preto e Congonhas, na Região Central, São João del-Rei, no Campo das Vertentes, e Campanha, no Sul do estado. Diferentemente dos célebres artistas da época, a exemplo de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), Lima Cerqueira era um empreiteiro, responsável por arrematar os serviços e empregar escultores, entalhadores, pintores e outros profissionais que fizeram a grandeza das Gerais do século 18.
Em 2018, quando os brasileiros lembram os 280 anos de nascimento de Aleijadinho, é importante destacar os 290 anos de Lima Cerqueira, de amplo currículo como gerente do canteiro de obras da Igreja de São Francisco de Assis, da Ordem Terceira de São Francisco, em São João del-Rei, e mestre canteiro. “Chama a atenção na trajetória dele a conquista de espaço no meio profissional de forma paciente, usando estratégias que lhe proporcionaram as experiências necessárias para acessar os grandes centros. Foi um empreendedor, versátil, que deu rica contribuição a nossa arquitetura. Sem ele, muitos artistas não teriam trabalho”, diz a professora, natural de Caeté, na Grande BH, com a certeza de que ter nascido numa cidade de passado colonial, a antiga Vila Nova da Rainha, foi decisivo para escolher a carreira e se interessar pela arte setecentista.
As pesquisas resultaram num calhamaço de mais de 400 páginas que Patrícia pretende lançar como livro, após defender, na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a tese de doutorado Francisco de Lima Cerqueira: A atuação do mestre português em Minas Gerais entre os anos de 1754 e 1808 – antes, Lima Cerqueira foi um dos mestres pesquisados na dissertação de mestrado na mesma universidade. Além da investigação em documentos do Arquivo Público Mineiro (APM), em Belo Horizonte, em livros de ordens terceiras, então as grandes contratantes de serviços (igrejas, capelas etc.), bibliotecas e outras instituições, Patrícia visitou a terra natal de Lima Cerqueira, a Aldeia Grande, no Norte de Portugal. “Ele veio para Minas devido à oferta de trabalho aqui e também porque a fome assolava a região dele, o Minho, com escassez principalmente de milho”, explica Patrícia, que teve como orientador o professor doutor André Guilherme Dornelles Dangelo.
PONTES DO TEMPO No início, em Minas, o português atuou como pedreiro, depois mestre canteiro (especialista em pedra de cantaria) até se tornar empreendedor ou empreiteiro. “Onde tinha obra, ele ia atrás”, enfatiza a professora. Dono de uma oficina itinerante e procurador-geral da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, Lima Cerqueira arregimentava mão de obra qualificada. Para a Igreja de São Francisco, em São João del-Rei, expoente do rococó, levou profissionais competentes e pouco conhecidos hoje, com os entalhadores em madeira Manoel João Pereira, Luis Pinheiro e Antônio Martins e o pedreiro canteiro Aniceto de Souza Lopes, que deu continuidade aos projetos do empreendedor.
“Tinha uma enorme capacidade de formar parcerias, algo imprescindível naquele universo. Era um homem à frente do tempo, de visão. Naquela época, quem não agia assim, não sobrevivia. E o artista era obrigado a ter o que se chamava ‘fábrica’, nada menos do que estrutura física para levar o empreendimento adiante. Isso incluía os fiadores e gente com experiência para trabalhar”, relata a professora. Na Igreja de São Francisco de Assis, em São João del-Rei, o empreiteiro foi o responsável pelo risco das torres e também pelo adro que circunda o templo, um ponto importante defendido na tese.
A relação de Lima Cerqueira com Aleijadinho, 10 anos mais novo, merece um destaque. Os dois trabalharam juntos na Igreja do Carmo, em Ouro Preto, a na São Francisco de São João del-Rei, atuando o português sempre como o empreiteiro e louvado. Mas foi nessa última que teria ocorrido “uma certa divergência”, registrada no fim da década de 1920, pelo grupo de modernistas – o escritor paulista Mário de Andrade (1893-1945) à frente –, em visita a Ouro Preto. Eles apuraram que Lima Cerqueira modificara o projeto original do templo, “o que, à luz de documentos da época e da literatura sobre o período, era considerado algo perfeitamente normal”, explica Patrícia.
“A visita dos modernistas a Minas, a partir da qual o nome de Aleijadinho foi enaltecido como a expressão maior da arte colonial brasileira, apagou a história e importância de outros artistas e empreendedores”, afirma a professora. Ela lembra que, por ser mulato, Aleijadinho podia apenas subempreitar obras, daí Lima Cerqueira arrematar os serviços e contratar o mineiro de Ouro Preto para executá-los. Mestre em fazer parcerias, Lima Cerqueira atuou, em Ouro Preto, antiga Vila Rica, com o mestre de obras José Pereira dos Santos, na Nossa Senhora do Rosário, Domingos Moreira de Oliveira, na Igreja São Francisco de Assis, e João Alves Viana, na Igreja Nossa Senhora do Carmo.
DESTAQUES Na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Ouro Preto, Lima Cerqueira arrematou, em 1771, serviços como o pórtico principal e lavabo da sacristia, ambos em pedra-sabão, e os arcos do coro. Ainda em Vila Rica, ele mostrou sua arte num chafariz no Bairro Cabeças, datado de 1763. Já em Campanha, antiga Vila de Campanha da Princesa da Beira, contratou as obras da Igreja de Santo Antônio.
Quem visita São João del-Rei e se encanta com as pontes sobre o Córrego do Lenheiro, cortando a cidade, pode ficar sabendo que tais estruturas foram objeto de empreitada de Lima Cerqueira. Para Patrícia Urias, é fundamental o estudo dos profissionais que trabalharam em Minas no século 18. “Eram pessoas de muito talento, mostrando que a região das minas consistia num ambiente composto por profissionais e artistas competentes e havia gente interessada em valorizá-los e assegurar o trabalho.”
Em 2018, quando os brasileiros lembram os 280 anos de nascimento de Aleijadinho, é importante destacar os 290 anos de Lima Cerqueira, de amplo currículo como gerente do canteiro de obras da Igreja de São Francisco de Assis, da Ordem Terceira de São Francisco, em São João del-Rei, e mestre canteiro. “Chama a atenção na trajetória dele a conquista de espaço no meio profissional de forma paciente, usando estratégias que lhe proporcionaram as experiências necessárias para acessar os grandes centros. Foi um empreendedor, versátil, que deu rica contribuição a nossa arquitetura. Sem ele, muitos artistas não teriam trabalho”, diz a professora, natural de Caeté, na Grande BH, com a certeza de que ter nascido numa cidade de passado colonial, a antiga Vila Nova da Rainha, foi decisivo para escolher a carreira e se interessar pela arte setecentista.
As pesquisas resultaram num calhamaço de mais de 400 páginas que Patrícia pretende lançar como livro, após defender, na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a tese de doutorado Francisco de Lima Cerqueira: A atuação do mestre português em Minas Gerais entre os anos de 1754 e 1808 – antes, Lima Cerqueira foi um dos mestres pesquisados na dissertação de mestrado na mesma universidade. Além da investigação em documentos do Arquivo Público Mineiro (APM), em Belo Horizonte, em livros de ordens terceiras, então as grandes contratantes de serviços (igrejas, capelas etc.), bibliotecas e outras instituições, Patrícia visitou a terra natal de Lima Cerqueira, a Aldeia Grande, no Norte de Portugal. “Ele veio para Minas devido à oferta de trabalho aqui e também porque a fome assolava a região dele, o Minho, com escassez principalmente de milho”, explica Patrícia, que teve como orientador o professor doutor André Guilherme Dornelles Dangelo.
PONTES DO TEMPO No início, em Minas, o português atuou como pedreiro, depois mestre canteiro (especialista em pedra de cantaria) até se tornar empreendedor ou empreiteiro. “Onde tinha obra, ele ia atrás”, enfatiza a professora. Dono de uma oficina itinerante e procurador-geral da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, Lima Cerqueira arregimentava mão de obra qualificada. Para a Igreja de São Francisco, em São João del-Rei, expoente do rococó, levou profissionais competentes e pouco conhecidos hoje, com os entalhadores em madeira Manoel João Pereira, Luis Pinheiro e Antônio Martins e o pedreiro canteiro Aniceto de Souza Lopes, que deu continuidade aos projetos do empreendedor.
“Tinha uma enorme capacidade de formar parcerias, algo imprescindível naquele universo. Era um homem à frente do tempo, de visão. Naquela época, quem não agia assim, não sobrevivia. E o artista era obrigado a ter o que se chamava ‘fábrica’, nada menos do que estrutura física para levar o empreendimento adiante. Isso incluía os fiadores e gente com experiência para trabalhar”, relata a professora. Na Igreja de São Francisco de Assis, em São João del-Rei, o empreiteiro foi o responsável pelo risco das torres e também pelo adro que circunda o templo, um ponto importante defendido na tese.
A relação de Lima Cerqueira com Aleijadinho, 10 anos mais novo, merece um destaque. Os dois trabalharam juntos na Igreja do Carmo, em Ouro Preto, a na São Francisco de São João del-Rei, atuando o português sempre como o empreiteiro e louvado. Mas foi nessa última que teria ocorrido “uma certa divergência”, registrada no fim da década de 1920, pelo grupo de modernistas – o escritor paulista Mário de Andrade (1893-1945) à frente –, em visita a Ouro Preto. Eles apuraram que Lima Cerqueira modificara o projeto original do templo, “o que, à luz de documentos da época e da literatura sobre o período, era considerado algo perfeitamente normal”, explica Patrícia.
“A visita dos modernistas a Minas, a partir da qual o nome de Aleijadinho foi enaltecido como a expressão maior da arte colonial brasileira, apagou a história e importância de outros artistas e empreendedores”, afirma a professora. Ela lembra que, por ser mulato, Aleijadinho podia apenas subempreitar obras, daí Lima Cerqueira arrematar os serviços e contratar o mineiro de Ouro Preto para executá-los. Mestre em fazer parcerias, Lima Cerqueira atuou, em Ouro Preto, antiga Vila Rica, com o mestre de obras José Pereira dos Santos, na Nossa Senhora do Rosário, Domingos Moreira de Oliveira, na Igreja São Francisco de Assis, e João Alves Viana, na Igreja Nossa Senhora do Carmo.
DESTAQUES Na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Ouro Preto, Lima Cerqueira arrematou, em 1771, serviços como o pórtico principal e lavabo da sacristia, ambos em pedra-sabão, e os arcos do coro. Ainda em Vila Rica, ele mostrou sua arte num chafariz no Bairro Cabeças, datado de 1763. Já em Campanha, antiga Vila de Campanha da Princesa da Beira, contratou as obras da Igreja de Santo Antônio.
Quem visita São João del-Rei e se encanta com as pontes sobre o Córrego do Lenheiro, cortando a cidade, pode ficar sabendo que tais estruturas foram objeto de empreitada de Lima Cerqueira. Para Patrícia Urias, é fundamental o estudo dos profissionais que trabalharam em Minas no século 18. “Eram pessoas de muito talento, mostrando que a região das minas consistia num ambiente composto por profissionais e artistas competentes e havia gente interessada em valorizá-los e assegurar o trabalho.”