Jornal Estado de Minas

Como Minas Gerais pode ajudar a recontar as histórias do Museu Nacional

Vários dos espécimes expostos na PUC são cópias perfeitas do Museu Nacional - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press
 

Perdas e esperança na ciência, na cultura e na pesquisa, em um momento que comove o mundo e deixa em aberto os caminhos do Museu Nacional, consumido pelo fogo no Rio de Janeiro. Minas pode ajudar na recomposição do riquíssimo equipamento cultural destruído na capital fluminense durante incêndio entre a noite de domingo e a madrugada de segunda-feira. Mas lamenta a perda de um acervo valioso, composto, entre muitas peças, pelos milhares de vestígios arqueológicos retirados da gruta Lapa Vermelha IV, em Pedro Leopoldo, na Grande BH, e levados para a instituição, na década de 1970. Nesse sítio da região metropolitana da capital mineira foi também encontrado o crânio de Luzia, considerada a primeira brasileira, peça sobre a qual ainda não se tem notícia concreta após o desastre.



Segundo o arqueólogo André Prous, professor aposentado do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais, o acervo recuperado em Minas e mandado ao Museu Nacional incluía fragmentos de cerâmica, ossos e rochas. “Tenho toda a documentação e os escritos sobre isso”, disse Prous. As peças forma levadas para o Rio pela missão franco-brasileira chefiada pela arqueóloga Annette Laming Emperaire (1917-1977), que fez escavações entre 1974 e 1975 na região cárstica de Lagoa Santa. Em 1975, Annette encontrou o fóssil humano mais antigo com datação no Brasil (11,4 mil anos), o qual foi estudado em 1998 pelo antropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo (USP). Foi ele o responsável por estudos que contaram uma nova história do povoamento do continente, e por batizar Luzia – numa alusão a Lucy, um fóssil de australopitecos de 3,2 milhões de anos descoberto no Deserto de Afar, na Etiópia, considerado um dos mais antigos hominídeos de que se tem notícia.

Outra perda, que tende a se transformar em um mistério insolúvel, refere-se ao acervo de milhares de anos que ajudaria a contar a pré-história de Belo Horizonte – bem antes dos tempos de Curral del-Rey, que deixou de existir para dar lugar à capital inaugurada em 1897.
No fim da década de 1930, foram enviados ao Museu Nacional, conforme registros fotográficos, vestígios cerâmicos (pedaços de potes de variados tamanhos e rodas de fuso) e líticos (machados, soquetes e bigornas de pedra) provenientes de antigas aldeias indígenas existentes principalmente nas regiões onde hoje fica o Horto Florestal, no Bairro Santa Inês, e do Córrego do Cardoso, no atual Bairro Santa Efigênia, na Região Leste. “Certamente, esse material está perdido”, lamenta o geólogo e professor Antônio Gilberto Costa, diretor do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG.

COOPERAÇÃO Com a tragédia consumada no Rio de Janeiro e uma parte ainda não descrita do acervo perdido no Museu Nacional, os cientistas, apesar de lamentar a destruição, têm a possibilidade de trabalhar em um sistema de cooperação, fundamental para reerguer o equipamento das cinzas. O Museu de Ciências Naturais da PUC Minas, em Belo Horizonte, por exemplo, está pronto a auxiliar o Museu Nacional a repor parte do acervo paleontológico (fósseis) que, conforme estimativas iniciais, arruinou não só o prédio de 200 anos como também 90% do acervo em exposição no imóvel histórico. Segundo o coordenador do equipamento mineiro, Bonifácio José Teixeira, as réplicas de exemplares da megafauna expostas na unidade do câmpus Coração Eucarístico, na Região Noroeste da capital, foram feitas em resina, sobre originais exibidos no museu fluminense.

"Poderemos ajudar o Museu Nacional, inclusive fazendo cópias aqui mesmo, pois tempos experiência nesse campo" - Bonifácio José Teixeira, coordenador do Museu de História Natural da PUC Minas - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press

"Temos peças como uma preguiça-gigante que foi encontrada na Bahia: é a cópia exata do bicho inteiro" - Cástor Cartelle, curador da coleção de Paleontologia do Museu de Ciências Naturais da PUC Minas - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press“Agora, poderemos ajudar o Museu Nacional, inclusive fazendo cópias aqui mesmo, pois tempos experiência nesse campo. Todas as nossas peças em exibição ao público foram feitas no museu da PUC”, disse Bonifácio José, ao lado do professor Cástor Cartelle, curador da coleção de paleontologia e referência internacional no estudo de fósseis. Na tarde de ontem, os dois mostraram peças que podem fazer parte do intercâmbio científico: crânio do Tiranossauro rex, pterossauro (réptil voador), esqueleto completo do toxodonte ou toxodon (rinoceronte), mandíbula de mastodonte e mais dois dentes incisivos,  tigre-dente-de-sabre e uma preguiça-gigante. “Essa preguiça foi encontrada na Bahia: é a cópia exata do bicho inteiro”, contou o professor Cartelle.

Mesmo diante da atitude solidariedade entre cientistas de instituições de renome, fica difícil não falar sobre a destruição do Museu Nacional, que abrigava um acervo composto de parcela considerável da história da humanidade.
Cartelle não esconde a indignação, sugerindo até mesmo deixar o prédio como está, como “testemunha do descaso, do desleixo e do abandono do bem nacional”. Para Bonifácio, os incêndios são ou um “azar da natureza ou coroamento de uma série de erros e negligências”, que levam à deterioração da educação, da ciência e da cultura. “A sociedade precisa ficar unida e se apropriar de seus bens para protegê-los da melhor forma”, afirma.

CRIANÇAS Com 10 coleções científicas e pesquisadores qualificados, o Museu de Ciências Naturais da PUC Minas, criado em 1993 e há 10 anos em um prédio específico para sua finalidade, recebe mais de 100 mil visitantes por ano – apenas em 2017, foram 103 mil. Diante das relíquias e de suas reconstituições, os estudantes, principalmente as crianças, não perdem tempo nem as explicações dos monitores. Na companhia da professora Ana Paula da Matta, os alunos da Escola Municipal Antônio Tereza dos Santos, de Betim, na Grande BH, ficaram um longo tempo admirando a reconstituição do crânio de Luzia, encontrado em 1974. Perto dali, há também uma versão para que os deficientes visuais possam conhecê-la com as pontas dos dedos.

“Fiquei muito triste com a destruição do Museu Nacional. Já conhecia a história da Luzia, mas é bom ver tudo aqui de perto. Fico emocionada”, disse Maria Júlia Medina, de 12 anos.
Perto dela, os colegas Júlia Lopes, Luíza Vitória, Breno Eduardo, Alejandro Mateus e Stephany Alves estavam atentos aos detalhes e às informações. Ao fim da visita, contemplaram o pterossauro (réptil voador), que domina um dos andares do Museu de Ciências Naturais da PUC Minas.

 

.