O ano de 2018 será lembrado, no futuro, como aquele em que o país perdeu parte da sua memória em meio aos escombros do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Mas os brasileiros de agora têm como registro e lição para não esquecer os 50 anos de outro incêndio devastador para a educação e a cultura, que pôs fim a um dos primeiros colégios de Minas: o Caraça, cujas terras ficam entre Catas Altas e Santa Bárbara, na Região Central. Numa madrugada fria de 1968, o fogo destruiu quase por completo a escola e o seminário. Cerca de 15 mil livros, alguns deles raros, se transformaram em cinzas. Não houve vítimas.
As investigações mostraram que a origem das labaredas estava num fogareiro elétrico com 500ml de cola de couro de boi usada na recuperação dos livros. A substância transbordou e o fogo se propagou no primeiro andar, num ambiente propício, já que o interior era todo de madeira. No escuro, um ex-aluno que estava na enfermaria, dormindo – a porta desse serviço era em frente à encadernação – acordou assustado sentindo o forte cheiro de queimado e deu o alerta. A partir daí, os seminaristas, nos dormitórios do terceiro andar, foram retirados. Não houve feridos e se encerrou ali um capítulo na história da instituição.
O tempo passou e o Santuário do Caraça, chamado de “Porta do Céu” se tornou, junto da religiosidade que o marca, um grande centro turístico, ambiental e cultural de Minas – administrado pela Província Brasileira da Congregação da Missão, recebe milhares de visitantes do mundo inteiro. E quem estudou lá tem vivas as memórias de uma época. Nos próximos dias 28 e 29, como ocorre anualmente, um grupo de ex-alunos vai se reencontrar no local, viajando de trem, para falar dos tempos de estudante e da tragédia que atingiu o antigo colégio em 28 de maio de 1968. “Não podemos nos esquecer, até para que não ocorra mais em lugar nenhum. Ficou um sentimento de tristeza e preocupação com o patrimônio”, diz o presidente da Associação dos Ex-alunos dos Lazaristas e Amigos do Caraça (Aealac), Mariano Pereira Lopes, de 74 anos, que estudou no Caraça entre 1957 e 1962.
PERDAS Na edição de 29/5/1968, o assunto foi destaque no Estado de Minas: “O Colégio Caraça foi quase completamente destruído, ontem, por um incêndio que durou oito horas e deu prejuízos de quase dois bilhões de cruzeiros antigos. O fogo começou às 3 horas da madrugada e foi debelado com o concurso de 100 homens do Corpo de Bombeiros. Somente a coleção de livros da biblioteca do educandário, destruída pelas chamas, estava avaliada em mais de um bilhão de cruzeiros antigos. Outros danos foram provocados pela destruição dos laboratórios, dormitórios e salas de aula. Apenas a ala de residência dos padres, o refeitório e a igreja não foram atingidos”.
E mais: “O Corpo de Bombeiros utilizou seis viaturas de pequeno e grande portes para conter o incêndio. Não houve feridos, apesar de alunos e padres se encontrarem dormindo à hora em que se iniciou o sinistro. O grito de um aluno foi o sinal de alarme. No mesmo instante, padres e estudantes começaram a abandonar o interior do colégio, atirando roupas, livros, sapatos e dinheiro pelas janelas dos dormitórios, no terceiro andar. Era a corrida contra a morte. As escadas que conduzem ao térreo foram envolvidas pelas chamas e muitos alunos encontraram dificuldades para transpô-las. O fogo consumiu quase tudo, desde obras dos grandes escritores modernos até preciosidades literárias das línguas francesa, italiana e latina. Somente uma coleção em latim, uma das únicas ainda existentes no mundo, tinha seu valor calculado em mais de vinte milhões de cruzeiros antigos”.
O diretor do Caraça, padre Lauro Palú, que estudou lá entre 1953 e 1956, acredita que o bem mais precioso que se perdeu com o incêndio foi “o ambiente que havia, a meninada estar no meio do mato, vivendo intensamente feliz uma vida de estudos, oração, amadurecimento, descobrimento do mundo. Hoje não conseguiríamos de novo aquela riqueza de afetos, aquele conjunto de coisas cerimoniosas que nos levavam da infância, pela adolescência, a uma juventude aberta, a uma vida adulta cheia de saúde, de cultura, de desafios que vencíamos com naturalidade, com a simplicidade de quem sentia que estava preparado para a vida e suas tarefas”.
HISTÓRIA Chamado de Colégio Imperial, o Caraça, por onde passaram mais de 10 mil alunos, abriu como escola em 1820 e só fechou as portas para os alunos seminaristas em 1968. Quatro anos depois, embora sem deixar de ser uma casa religiosa, se transformou em pousada.
Além do conjunto histórico, onde sobressai a igreja em estilo neogótico, há a parte ambiental. Integrante da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço, o Caraça está na categoria de Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), com 19 mil hectares. Na região, há muitas variedades de orquídeas e vivem centenas de espécies de pássaros e de dezenas de mamíferos, universo reconhecido pelos naturalistas que visitaram a região, no século 19, entre eles o francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853).
Conhecer o Caraça é também entrar num livro de história do Brasil. As páginas dos primórdios citam a carta-patente, datada de 24 de abril de 1766, na qual o fundador do local, o português Carlos Mendonça Távora, conhecido como Irmão Lourenço de Nossa Senhora – não há registro da data de nascimento, apenas de sua morte, em 1819 – recebe autorização do comissário geral da Terra Santa nos reinos de Portugal e suas conquistas, Frei Manoel de São Carlos, para pedir esmolas e arrecadar dinheiro para a Ordem de São Francisco.
De acordo com as pesquisas, o Irmão Lourenço, tido e havido como um homem misterioso, pois sua identidade nunca foi esclarecida, chegou à região em 1763. Pertencente à família dos Távoras, nobre, ele teria escapado ao extermínio comandado pelo Marquês de Pombal, em Portugal, depois de um atentado ao rei dom José I. O certo é que, 11 anos depois, ele inaugurou uma pequena capela em estilo barroco, da qual restam dois altares, restaurados, nas laterais da igreja que se vê hoje – datada de 1883, a substituta é considerada a primeira neogótica do Brasil.
As terras do Caraça chegaram às mãos de dom João VI, que ficou no Brasil de 1808 a 1821, mediante testamento. Ao morrer, em 1819, Irmão Lourenço, que está enterrado dentro da igreja, sob o altar de Santo Antônio, legou a igreja e toda a área ao rei, desejando que ali fosse construída uma escola e que mantivesse o cunho religioso. Um ano depois, o monarca doou o conjunto à Congregação da Missão dos Padres Lazaristas, dando início à fase denominada Caraça português.
Eternização on-line
Um site criado na internet busca unir a população numa corrente para que o Museu Nacional do Brasil continue vivo, pelo menos em uma versão on-line. A página EternoMuseuNacional.com convida todos que algum dia visitaram o local a postar as próprias fotos e vídeos do acervo em seus perfis no Instagram, usando a hashtag #EternoMuseuNacional. O conteúdo será direcionado automaticamente para o site, onde os usuários poderão visualizar todo o material. Aos poucos, o site pretende acrescentar informações descritivas para cada peça postada.
Tesouro da natureza
Tombado desde 1955 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Caraça fabrica vinhos, tem biblioteca com25mil livros, entre eles o
Incunábulo, de 1489, e outro com anotações feitas a bico de pena por dom Pedro II, mantém as velhas catacumbas e se orgulha da tradicional visita noturna ao adrodo lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), sempre prontopara devorar pedaços de frango postos numa bandeja pelos padres vicentinos. A presença do lobo, sem dúvida, é atrativo para gente de todas as idades, principalmente para as crianças.