Entre os mais misteriosos e antigos componentes do acervo afetado por um incêndio no início do mês, no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, os corpos mumificados tinham um apelo especial para visitantes e pesquisadores. Entre os 700 indivíduos da coleção, havia desde exemplares egípcios com mais de 2 mil anos até animais embalsamados. O que pouca gente sabe é que em meio a essas exemplares milenares e a fósseis como o crânio de Luzia, uma das mais antigas habitantes das Américas (11,4 mil anos), figuravam três múmias de valor inestimável para a história de Minas Gerais e do Brasil: são corpos de uma mulher de 1,48 metro de altura e idade entre 24 e 26 anos, que morreu há mais de 600 anos. Ao seu lado, um recém-nascido e um bebê de pouco mais de 1 ano. Todos vieram das cavernas dos mares-de-morros da Zona da Mata, e eram representantes de populações indígenas anteriores à conquista europeia do Brasil. Informações de que se dispõe até o momento indicam que pouco ou nada se salvou do recinto onde essa parte do acervo estava exposta.
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De acordo com ele, esse é o segundo baque que o município sente em relação ao seu patrimônio, uma vez que a fazenda do século 18, onde ficam as cavernas, foi destruída por um incêndio em 2001. “A gente fazia excursões para as cavernas com as crianças; quem podia ia ao Museu Nacional para ver as múmias. Agora, estamos discutindo a formação de um pequeno museu onde poderemos expôr fotografias e até encomendar uma réplica de cera da nossa múmia. Não podemos deixar essa história morrer”, disse Barreiros.
No interior da caverna, as múmias foram encontradas sobre pedras, enroladas em cestas, redes, folhas e fibras. Junto a elas foram deixados objetos representativos de sua cultura, como bolsas trançadas em fibras, rede de dormir, uma corda grossa e uma cruz de fios, colocada sobre a cabeça da mulher. “Pela análise dos objetos e do local onde o grupo foi encontrado, acredita-se que pertenciam ao ramo dos Botocudos, mais especificamente às etnias maxacali, kamakan ou makuni”, indica a descrição do acervo no Museu Nacional.
NOBREZA O local da descoberta das múmias fica no terreno da Fazenda Fortaleza de Santana, numa das três cavernas da Serra da Babilônia. A propriedade, de acordo com o trabalho do doutor em arqueologia da Universidade de São Paulo (USP) Ângelo Alves Corrêa, era uma das grandes produtoras de café da região, poder que permitia aos proprietários acesso à própria corte imperial, sendo a matriarca a baronesa Maria José de Santana.
O registro mais antigo das cavernas, de acordo com o trabalho da USP, data de 1865, quando foram encontradas por caçadores em busca de abrigo. Mas os primeiros vestígios arqueológicos e restos mortais foram descobertos apenas em 1871. “Estes só vieram a ser identificados com a visita de Manuel Basílio de Furtado. Movido por sua experiência anterior, esse naturalista local promoveu uma inspeção nas cavernas, encontrando vestígios humanos, concluindo na época tratar-se de cemitério indígena”, descreve Corrêa. Foi por meio de Furtado, que era correspondente do Museu Nacional, que ocorreram as primeiras escavações visando à retirada de esqueletos, corpos mumificados e seus acompanhamentos funerários.
EXPEDIÇÃO O achado motivou uma expedição do Museu Nacional, em 1875, constituída pelo seu diretor à época, Ladislau de Mello Netto, pelo naturalista e diretor da Comissão Geológica do Império, Charles Frederick Hartt, entre outros cientistas. Hartt montou uma linha de 20 escravos para remover toneladas de terra em dois dias e conseguiu recuperar os exemplares que depois foram expostos no Rio. “Essa equipe foi muito importante para a sistematização dos dados sobre o achado e a conservação das informações, por meio de uma rica publicação. As atividades neste sítio arqueológico contaram com importantes personalidades inseridas nos primórdios da arqueologia em nosso país. Para alguns autores, 1870-1910 é o período que marca início da arqueologia nacional”, afirma Ângelo Alves Corrêa, da USP.
Na década de 1980, as múmias mineiras foram submetidas a exames radiológicos, morfológicos e parasitológicos, além de ter sido realizada datação absoluta por carbono 14 no Centre des Faíbles Radioactivités de Gif sur Yvette (França), que chegou ao resultado de uma idade de aproximadamente 680 anos – indicando, portanto, serem de povos pré-colombianos. Foram analisados também os restos de tecelagem e cordaria. Os estudos apontam para uma técnica de tecelagem atualmente empregada pelo grupo indígena maxakali, mas não exclui a possibilidade de os vestígios terem sido produzidos por grupos kamakãn ou makuni. “Ficou claro ainda que o processo de mumificação de todos os corpos examinados foi natural, provavelmente por desidratação dos tecidos devido ao microclima do interior da caverna”.
Arquivos digitalizados por pesquisador podem ajudar
Se Minas perdeu com a tragédia no museu do Rio de Janeiro parte da história de alguns de seus ancestrais, estudos desenvolvidos no estado podem ajudar a recontar um pouco da história das múmias provavelmente destruídas no incêndio – a mais importante coleção da América Latina. Mestrando de história na UFMG, o estudante André Onofre Limírio Chaves conheceu bem as peças do Egito Antigo integrantes do acervo, para fazer a dissertação O colecionismo de antiguidades egípcias no Brasil Imperial.
“Estive no museu para fazer pesquisas nas salas de Memória e Arquivo. Por sorte, tenho toda a documentação digitalizada, e, assim, poderei entregá-la à direção do museu como contribuição”, disse André, de 25 anos. Destacando o bicentenário da instituição cultural, celebrados este ano, André conta que, ao ser fundado por dom João VI (1767-1826), o museu recebeu primeiramente o nome de Real, passando em 1822 para Nacional Imperial e, finalmente, com a Proclamação da República (1889) para Nacional. “A coleção de múmias era a mais importante da América Latina e chegou ao Brasil em 1826. A perda é muito grande”, afirmou.
Contribuições como essa podem ajudar na reconstrução do Museu Nacional. Como mostrou o Estado de Minas, o Museu de Ciências Naturais da PUC Minas, em Belo Horizonte, também está pronto a auxiliar na recomposição de parte do acervo paleontológico (fósseis de animais) que se perdeu. Segundo o coordenador da instituição, Bonifácio José Teixeira, as réplicas de exemplares da megafauna exposta na unidade do câmpus Coração Eucarístico, na Região Noroeste da capital, foram feitas, em resina, sobre os originais exibidos no museu do Rio. O acervo mineiro possibilita cópias de peças como um crânio de Tiranossaurus rex, de um pterossauro (réptil voador), do esqueleto completo do toxodonte ou toxodon (rinoceronte), da mandíbula de um mastodonte e mais dois dentes incisivos, de um tigre-dente-de-sabre e de uma preguiça-gigante. (GW)