Mariana – As panelas fumegantes se espremiam no fogão a lenha, bem no centro do avarandado. O cheiro da lenha queimando acentuava o ar de cozinha da roça para os clientes que lotavam as oito mesas compridas de madeira no restaurante. “No ano de 2015, declarei R$ 62 mil de faturamento. Durante a semana, atendia às empresas. No fim de semana eram turistas, motoqueiros, ciclistas e jipeiros da Estrada Real. Depois do rompimento da Barragem do Fundão, fui a quase zero. No último ano, só faturei R$ 3,6 mil.” O relato é de Silvana Aparecida de Souza Coelho, a “Vana”, de 39 anos, dona do estabelecimento que já foi o mais movimentado de Camargos, mas hoje passa os dias vazio. Esse povoado de 47 habitantes, pertencente a Mariana, teve sua rotina radicalmente mudada depois do rompimento da represa de rejeitos da Samarco, em novembro de 2015. O pior é que pessoas como Vana podem simplesmente ficar sem direito a qualquer reparação. Legalmente, o direito a indenizações dos atingidos que não ingressaram na ação coletiva, encabeçada pelo Ministério Público, ou não constituíram advogados prescreve no próximo 5 de novembro.
Às vésperas de completarem-se três anos que o rompimento da barragem da Samarco provocou o pior desastre socioambiental da história do país, ações de indenização e reparação ainda são debatidas na Justiça, mas pessoas como Vana não são sequer reconhecidas como atingidas. Ela conta que nunca recebeu nada da Samarco ou da Fundação Renova, criada pela mineradora e suas controladoras – as gigantes Vale e BHP Billiton – para lidar com as consequências da tragédia. De acordo com alerta da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e do Ministério Público, o mesmo ocorre também com muita gente que ainda precisa ser cadastrada. Pessoas ao longo dos 600 quilômetros devastados pelo tsunami de 35 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos de minério de ferro que vazou da represa. Difícil falar em números, exatamente pela falta de cadastro oficial dessa população.
A própria dona do restaurante, apesar de ter sua vida transformada em um drama, não se enxergava como atingida. “Não tenho advogado. Não me cadastrei (na ação coletiva). Morei 22 anos em Bento Rodrigues. Minha mãe, de 66 anos, minha avó, de 86, e mais de 70% dos meus parentes viviam lá. Quando a barragem desceu, entrei em pânico. Achei que todo mundo tinha morrido e fiquei agradecida quando fui tendo notícias deles. Vendo tanta gente escapar de morrer, não me sentia atingida como eles”, conta. Na tragédia, 19 pessoas morreram. Até hoje não foi encontrado o corpo de Edmirson José Pessoa, de 48, que trabalhava para a Samarco havia 19 anos quando ocorreu o desastre.
Apesar de não estarem no caminho do vagalhão de lama, as vidas de Vana e de outras 13 pessoas que vivem com ela e dependiam do restaurante para sobreviver foram profundamente impactadas. O principal atrativo para seu estabelecimento era a conexão turística pela Estrada Real até Bento Rodrigues, um trajeto de sete quilômetros. Quando a avalanche de lama e rejeitos desceu pelo Rio Gualaxo do Norte, destruiu a ponte que ligava um povoado ao outro.
SONHO SEPULTADO Nos dias seguintes, placas alertando para o risco de rompimento de barragens e indicando rotas de fuga em caso de emergência, ao longo dos 16 quilômetros da única estrada de Camargos até a MG-129, cuidaram de sepultar de vez o interesse turístico pela localidade. “As empresas que eu atendia durante a semana foram embora quando a Samarco parou de funcionar. Hoje, meus congeladores só ficam vazios. Antes, cozinhava o dia inteiro. Agora, passam três dias sem aparecer um cliente. Meu desespero foi tanto que tentei trabalhar de faxineira, em Mariana, mas tive um problema no braço”, disse.
No povoado, boa parte dos comerciantes foi embora, assim como moradores. “Tem amigos e vizinhos que não vejo há dois anos. Aqui, o ônibus vinha de Bento e ficamos muitos anos sem ele. Tudo a gente precisava de Bento. Para compras, por exemplo. Terminaram a ponte (destruída na tragédia) neste ano. Agora, estou juntando meus documentos e vou levar para a Cáritas (assistência que relaciona os atingidos pelo desastre), para que façam meu cadastro. Não posso ficar com esse prejuízo. Mas, meu sonho, mesmo, era que a Nova Bento fosse construída e tudo voltasse a ser como antes”, disse.
O promotor de Justiça de Mariana, Guilherme de Sá Meneghin, reforça que todos os que se julguem atingidos de alguma forma devem procurar as assistências, como a Cáritas, em Mariana, para que integrem ações coletivas de reparação de danos. “É importante as pessoas se cadastrarem na ação coletiva ou terem um advogado, pois há uma insegurança jurídica no caso da prescrição. A rigor, em três anos ocorre essa prescrição. Mas há entendimentos que podem ampliar a discussão. Existe um entendimento de que não há prescrição enquanto tramitar a ação coletiva, mas não é consolidado. Outros dizem que o ajuizamento da ação coletiva interrompe o prazo de prescrição das ações individuais”, afirma. A ação coletiva de Mariana foi iniciada em 10 de dezembro de 2015.