O caminho percorrido pelas mãos em cada peça tem a ver com a mensagem passada pelo artista. Em foco, São Francisco de Assis, o primeiro santo católico. Um acervo precioso, originário de 15 museus da Itália e de um museu de Nova Iorque, nos Estados Unidos, está reunido em Belo Horizonte e mostra o padroeiro do país europeu retratado em diversas fases – do homem simples e frágil, quase maltrapilho, ao santo de rosto belo e imponente. Na exposição São Francisco na arte de mestres italianos, pinturas seculares ganharam volume para quem precisa enxergar a arte de forma diferente. Com recursos da tecnologia, três das obras em exposição na Casa Fiat de Cultura, um dos museus do Circuito Liberdade, na Praça da Liberdade, Região Centro-Sul de Belo Horizonte, foram recriadas no formato de peças em 3D para deficientes visuais poderem, por meio da experiência tátil, também apreciar essas joias da cultura mundial. O evento integra a programação da 12ª Primavera dos Museus, que vai até domingo, em todo o Brasil.
Do segundo núcleo, Os estigmas, o quadro São Francisco recebe os estigmas (1570 – Renascimento), de Tiziano Vecellio, ganhou versão em 3D. Nela, um jogo de perspectiva, que é um dos grandes cânones do Renascimento, constrói a ilusão de profundidade. Para passar essa impressão, o número de camadas dessa peça é maior que as das outras, sendo possível perceber os diversos planos em que os personagens da tela de Tiziano – Cristo, São Francisco e o comendador da obra em oração – se encontram.
Do terceiro e último núcleo, Conversas sagradas, a tela escolhida foi São Francisco de Assis, santo Antônio de Pádua e são Boaventura de Bagnoregio (século 17 – Barroco), de Andrea Lilli. Nele, há o jogo de volumetria e contraste entre claro e escuro, dois aspectos que foram cânones do barroco e que conferem dramaticidade às cenas. Na peça, isso é apresentado a partir da diferença de profundidade, onde a sombra e as imagens em planos mais distantes estão nas camadas inferiores.
FOCO O trabalho é iniciativa do Núcleo de Acessibilidade do Programa Educativo da Casa Fiat de Cultura e produção do Centro de Design da Fiat. As peças 3D foram pensadas inicialmente para pessoas com deficiência visual – cegas e com baixa visão –, mas podem ser usadas também por pessoas sem qualquer problema como forma de aprofundar o conhecimento sobre os quadros da mostra. “Falar de pintura e arte visual com uma pessoa que enxerga pouco ou não enxerga é um diálogo possível”, afirma a coordenadora do núcleo, Clarita Gonzaga. “Temos obras de mais de 500 anos que dialogam muito mais com o presente do que podemos imaginar. É só nos abrirmos”, avisa.
Do dia a dia pautado pela construção de modelos de futuros carros à recriação de pinturas seculares num modelo totalmente tecnológico, voltado para deficientes. Esse foi o desafio da equipe de 20 integrantes do Centro de Design da Fiat. O primeiro desafio, conforme explica o supervisor do departamento, Celso Morassi, foi transformar a tela plana de um quadro secular em três dimensões para um público da atualidade. “O designer faz o desenho manual, há o profissional que dá volume e o transforma em 3D e, por fim, aquele que executa, ou seja, constrói o modelo para tatear”, afirma. A partir da foto da obra posta no computador, um programa construiu os contornos principais. A eles, foram dados os volumes, com espécie de degraus entre um desenho e outro. A fresna (uma máquina de corte) se encarregou de talhar as peças e o modelador, de lixar manualmente para tirar o áspero da resina. Cada peça demorou, em média, 25 horas para ficar pronta, fora os dois dias da parte virtual.
VISITA BEM ESPECIAL Integrantes do Lar das Cegas fizeram ontem uma visita guiada e conheceram as peças em primeira mão. Em cada sala, informações precisas, como o tamanho do espaço, cor das paredes e quais os quadros estavam no local davam a ideia da mostra. As cordas de sisal que compõem a linha do tempo e uma cortina puderam ser tocadas e sentidas. As peças táteis impressionaram. “O contato com a memória é um direito fundamental. Mecanismos alternativos para qualquer pessoa ter acesso é muito importante. A experiência de tocar nas peças é muito gratificante”, afirma o professor de história Flávio Oliveira, deficiente visual. “É a possibilidade de compreensão do mundo imagístico, que fica perdido. E de conhecer a linguagem das artes plásticas e o repertório de um mundo preparado, hoje, para ser visto.”
Também deficiente visual, Izaulina Alecrim dos Santos, de 53 anos, gostou de sentir as formas. “Passando a mão, podemos conhecer os quadros”, disse. Também participou da visita Siman Silva de Jesus, de 46: “Senti a beleza dos quadros. Recomendo a experiência. É muito interessante”. As visitas guiadas podem ser feitas com a equipe de mediação da Casa Fiat ou por meio do audioguia. No caso de deficientes auditivos, pode ser feita com auxílio de profissionais que falam a língua brasileira de sinais (Libras). As peças em 3D estão disponíveis no quarto andar.
O presidente da Casa Fiat de Cultura, José Eduardo de Lima Pereira, ressaltou que acessibilidade é uma tradição desde a primeira exposição montada no espaço, há 12 anos. “Este ano, caprichamos ainda mais. A 12ª Primavera dos museus, uma iniciativa coletiva, buscou o tema educação. E nós, que temos a inclusão como premissa, aproveitamos para tratar de educação voltada para deficientes auditivos e visuais”, disse. Segundo ele, é um desafio e tanto: “Não tenho a ilusão de poder fornecer a visão perfeita para o deficiente, mas será bastante razoável, algo que ele não teria nunca, não fosse a oportunidade tátil”.
Serviço
Primavera dos Museus
A Primavera dos Museus é um evento anual. O tema deste ano, “Celebrando a educação em museus”, é um incentivo à reflexão sobre o papel das instituições culturais na formação do público e à criação de ações educativas.
Exposição São Francisco na arte de mestres italianos
A mostra reúne 20 obras pintadas entre os séculos 15 e 18, de mestres como Tiziano Vecellio, Perugino, Orazio Gentileschi, Guido Reni, Guercino e os Carracci. Elas fazem parte de importantes coleções italianas e estão pela primeira vez ao Brasil. O acervo fica na Casa Fiat de Cultura até 21 de outubro. Com curadoria dos especialistas em história da arte italiana, Giovanni Morello e Stefano Papetti.