Começou em Minas Gerais uma corrida contra o tempo e uma avalanche de adesões ao processo nas cortes do Reino Unido, que aciona a mineradora BHP Billiton PLC, uma das controladoras da Samarco, ao lado da Vale, para indenizar atingidos pelo rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, há quase três anos. São cerca de 4 mil só em Governador Valadares. Um dos motivos para essa aposta tão rápida nos tribunais europeus é a constatação de que milhares de ações impetradas no Juizado Especial daquela comarca podem voltar à estaca zero, com decisão da corte do Tribunal de Justiça, que fixou tese jurídica sustentando que os juizados especiais não são competentes para processar e julgar ações que discutam a qualidade da água, questionada após a contaminação do Rio Doce em Valadares.
A maior parte dos atingidos em Governador Valadares, o maior município da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, com 280 mil habitantes, luta por indenizações por ter seu fornecimento de água interrompido por uma semana. As torneiras secaram depois que a onda de lama e rejeitos de minério de ferro invadiu o Rio Doce, onde era feita a captação de água municipal. Pelo Programa de Indenização Mediada (PIM) promovido pela Fundação Renova, os atingidos locais teriam direito a uma reparação no valor de R$ 1 mil. “O oferecido é muito pouco pelo sofrimento por que as pessoas passaram, esperando água chegar em caminhões que eram saqueados na entrada da cidade”, afirmou Elias Souto, acrescentando que a opção à Justiça estrangeira acaba sendo vista como a chance de uma reparação mais justa para todos.
A ação internacional foi antecipada pelo Estado de Minas em sua edição de sábado. A busca pela Justiça internacional é agravada pela preocupação com a ameaça de prescrição de milhares de processos nacionais, o que pode ocorrer em 5 de novembro, quando a tragédia completa três anos. O escritório anglo-americano SPG Law pretende entrar até º de novembro com a ação contra a BHP Billiton PLC, braço britânico da controladora da Samarco. O grupo, que tem várias ações bilionárias contra multinacionais que causaram danos a populações não contempladas pela Justiça em seus países de origem, lançou um website para que as vítimas da barragem possam ser orientadas e cadastradas. Pretende, ainda, abrir escritórios de apoio no Brasil, em locais como Mariana e Valadares, onde consultores brasileiros auxiliarão os advogados dos atingidos que queiram ingressar no processo no Reino Unido. Somente com a intermediação de advogados brasileiros os atingidos poderão ser representados pelo SPG Law no exterior.
Em Mariana, a reportagem do EM participou de uma das reuniões do escritório internacional com interessados e representantes dos atingidos. No encontro, os sócios do escritório, o norte-americano Glenn Phillips e o britânico Tom Goodhead, estimaram que os custos do processo devem girar em torno de US$ 20 milhões (cerca de R$ 80 milhões), somando-se trâmites e contratação de especialistas em diversas áreas, mas podem render mais de 5 bilhões de libras (aproximadamente R$ 26 bilhões) em indenizações. Os atingidos não teriam de pagar para aderir à ação. Em caso de vitória ou de acordo, os advogados nacionais e internacionais dividiriam 30% do valor auferido – ou cerca de R$ 8 bilhões, considerando as previsões do escritório britânico.
Uma das estratégias dos advogados do Reino Unido seria o de adiantar cerca de 10% das indenizações estimadas para pessoas em dificuldades. “Fazemos isso para que as pessoas continuem tendo comida no prato, paguem suas contas, tenham gasolina para seus carros e não fiquem dependendo das migalhas que as empresas jogam em troca de acordos desvantajosos”, disse Phillips. Com isso, o escritório ganha poder de barganha. “Assim que passamos esses recursos, paramos de conversar com eles (BHP Billiton). Daí, dizemos: quer negociar? Só com 5 bilhões de libras sobre a mesa, ou vamos a julgamento”, afirma Phillips, que não descarta a empresa aceitar um acordo para que o processo não prossiga, diante do possível impacto com a queda de suas ações, além de outras repercussões prejudiciais como negócios internacionais e até ações de seus próprios acionistas. Todos os valores pagos serão depositados diretamente nas contas dos atingidos e o processo britânico não interfere nos brasileiros.
A Barragem do Fundão, parte do Complexo Minerário de Germano, pertencente à Samarco, se rompeu em 5 de novembro de 2015, despejando cerca de 35 milhões de metros cúbicos de lama e de rejeitos de minério de ferro no Córrego Santarém, rios Gualaxo do Norte, do Carmo e Doce, em uma onda de sujeira que chegou até o litoral brasileiro. Morreram 19 pessoas no desastre, sendo que ainda não se encontrou o corpo de Edmirson José Pessoa, de 48 anos, que trabalhava para a Samarco havia 19 anos. Cerca de 500 mil pessoas foram atingidas.
Entenda o caso
» A lama
Parte dos rejeitos de minério de ferro despejados com o rompimento da Barragem do Fundão chegaram a Governador Valadares em 9 de novembro, apenas cinco dias após a ruptura. Cerca de 280 mil pessoas tiveram seu abastecimento proveniente do Rio Doce suspensos por uma semana. Trens com carregamentos de água e caminhões com água potável precisaram ser distribuídos emergencialmente
» Água mineral
A população de GV foi abastecida com carregamentos de água mineral de 11 de novembro de 2015 a 22 de janeiro de 2016. Foram 74 milhões de litros de água potável e mais de 30 milhões de litros de água mineral. No início, os carregamentos chegaram a ser saqueados em bairros mais violentos. Longas filas se formavam nos pontos de distribuição, mesmo quando a mineradora informou que as técnicas de purificação das águas do Rio Doce já garantiam a sua qualidade, desde 15 de novembro de 2015
» Ações na Justiça
Já no fim de 2015, os atingidos começaram a ingressar com ações no Juizado especial de Governador Valadares para pedir indenização pelos danos sofridos pela suspensão do abastecimento e todo o caos provocado pela passagem da lama, além de questionar a qualidade da água fornecida
» Acordos
A Fundação Renova instituiu o Programa de Indenizações Mediadas em toda a bacia. No caso de Valadares, previa uma indenização de R$ 1 mil para os atingidos, acrescida de 10% para os vulneráveis
» Suspensão
Em 2017, a Justiça suspendeu dezenas de milhares de processos que tramitavam no Juizado Especial de Governador Valadares para que fosse julgada a competência sobre o processo – se o próprio Juizado ou a Justiça comum
» Sentença unificada
Em pedido proposto de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), feito pela Samarco para unificar decisões em casos que discutem a qualidade da água no Juizado Especial, a corte do Tribunal de Justiça admitiu, no fim de maio, o IRDR. Foi fixada tese jurídica de que juizados especiais não são competentes para processar e julgar essas ações, devido à necessidade de estudos técnicos que comprovem as alegações dos reclamantes. O desfecho do processo ainda está pendente o julgamento do mérito, quando se estabelecerá a decisão para todos os processos com pedidos iguais
Barra Longa: de exemplo a denúncias de abandono
Em meio ao risco de prescrição do prazo legal para os atingidos pela tragédia da Samarco acionarem a Justiça, fixado no dia 5 de novembro, e a intermediação do escritório de advocacia anglo-americano SPG Law, em busca de indenizações mais justas em processo contra a gigante BHP Billiton, os moradores do município de Barra Longa, na Zona da Mata, decidiram fechar as principais vias de acesso à cidade em protesto contra a Fundação Renova. Moradores de uma das cidades cuja recuperação já chegou a ser apresentada como exemplo pela entidade criada para lidar com os efeitos do desastre, eles cobram, entre outras pautas, o aluguel de casas para famílias que moram em situação de risco e a valorização dos garimpeiros, peixeiros e famílias prejudicadas pelo desastre. Nesta semana, cerca de 70 pessoas fecharam estradas e impediram que veículos da Renova chegassem ao escritório da fundação na cidade. Eles protestam sob liderança do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
“Estamos cansados de intermináveis reuniões que não levam a nada. Já são quase três anos assim. Queremos o senhor Roberto Waack (presidente da Fundação Renova) aqui, olho no olho, para apresentarmos nossas demandas. Ele tem que dar um jeito na empresa que está administrando e atender à pauta dos atingidos”, reivindica Maria das Graças, uma das militantes do MAB que integram o grupo. De acordo com a entidade, a fundação criada para reparar os danos do desastre prometeu uma agenda de Waack na cidade, o que ainda não ocorreu.
A preocupação maior por parte dos moradores diz respeito às famílias que vivem em situação de risco após o rompimento da Barragem de Fundão. Segundo o MAB, houve uma primeira reunião, na qual a Renova se comprometeu a alugar casas para essas famílias. Contudo, “o processo segue lento”, conforme o movimento. Em nota, a Renova salientou que “as 30 famílias da cidade que se encontram em situação de risco estão recebendo suporte. Vinte e uma delas já fecharam negociação de novas casas, com previsão de mudança na próxima semana. Três dessas famílias já se mudaram para outros imóveis”. A última reunião entre as partes, em agosto, fixou o período de 45 dias para resolver o problema, segundo a Renova.
Ainda de acordo com a entidade representante dos atingidos, uma reunião está marcada para hoje, em Vitória, onde será discutida a reivindicação dos atingidos de Barra Longa. “Queremos que as coisas que a gente perdeu sejam reformadas. A empresa não está nem aí para nós. É muita casa trincada por aqui e eles calçaram minha rua com rejeitos. Tenho uma cunhada que perdeu tudo. O objetivo deles é cansar o povo e ver se nós desistimos. Mas isso nem passa pela nossa cabeça”, protestou a militante Maria das Graças.
Em seu posicionamento, a Renova ressaltou ainda ter concluído diversas obras em Barra Longa, entre elas a reconstrução de nove casas, a manutenção de 51 imóveis e as reformas de 121 moradias e propriedades rurais, 26 pontos de comércio e uma escola e 116 quintais e lotes. Segundo a organização, foram destinados R$ 7,7 milhões ao pagamento de 116 indenizações, alcançando 316 pessoas, e desembolsados mais de R$ 6 milhões a 260 titulares assistidos pelo programa de Auxílio Financeiro Emergencial. No total, os recursos destinados chegam a R$ 32,5 milhões, conforme a fundação.
PREFEITURA Apesar da preocupação dos moradores, a Prefeitura de Barra Longa não confirma que haja famílias vivendo em risco na cidade, nem que elas estariam nessas condições devido à tragédia ambiental. “Essas informações são contraditórias. Para nós, a partir da Defesa Civil, não é possível garantir que haja famílias morando em áreas de risco, devido ao rompimento da barragem”, afirmou Caetano Etrusco, coordenador de governo de Barra Longa.
Ainda assim, Etrusco reforça a posição do Movimento dos Atingidos por Barragens quanto à lentidão da Renova. “Muitas das coisas que deveriam estar em andamento estão muito atrasadas. O movimento tem conseguido progresso com a Renova. O pleito deles, por meio da paralisação, é em prol de uma reunião com a presidência, o que também é interesse do município. Primeiro, para o município, são os atingidos. Depois vem o restauro do patrimônio histórico, que também é muito importante”, ressalta. (Gabriel Ronan)