Jornal Estado de Minas

Após 10 anos de proibição, grupo desce os 273 metros da Cachoeira do Tabuleiro



As águas frias do Ribeirão do Campo correm encaixadas nas falhas rochosas da Serra do Intendente, em Conceição do Mato Dentro, até serem engolidas por uma das mais impressionantes gargantas do Brasil. As águas praticamente se vaporizam ao saltar num abismo de 273 metros de altura para essa boca de pedras que se abre em mais de 203 mil metros quadrados (m2). Assim se forma a Cachoeira do Tabuleiro, a maior de Minas Gerais e a terceira mais alta do Brasil. Para se ter ideia de sua magnitude, praticamente caberiam os edifícios Minas e Gerais (232 mil m2), da Cidade Administrativa Presidente Tancredo Neves, nessa garganta, sendo que ainda sobraria altura para mais 77 andares nas edificações, que atualmente contam com 14. Grandiosidade para dar vertigem nos mais corajosos e que inibe muitos de se aproximar da cabeceira da formação. Mas 10 anos depois de o Parque Municipal Natural do Tabuleiro (PMNT) ter proibido a descida por cordas pela queda máxima de Minas Gerais, 14 canionistas e atletas reabriram essa via radical e produzem um mapeamento que vai orientar os próximos desafios no local, com a missão de, para isso, não se abrir um orifício sequer nas rochas do Tabuleiro.

De acordo com os aventureiros, não foi nada fácil concluir essa façanha dependurado numa corda, ao gosto dos ventos e dos jorros da água gelada, que minavam a resistência ao ponto de a hipotermia (queda nociva da temperatura interna do corpo) ser uma preocupação constante. Sem falar na necessidade de concentração para instalar as sequências de cordas nas rochas apenas com amarrações e ancoragens, sem nenhum cravo perfurando as pedras, preservadas por lei. “Foi a realização de um sonho, para mim, e o estabelecimento de um recorde pessoal para muitos participantes.
Foi um desafio maior do que prevíamos. Descer a Cachoeira do Tabuleiro exigiu muita técnica, preparação de equipes de resgate, uma estrutura complexa e muita preparação física”, disse Gabriel Finelli, da LigaRapel, uma escola de técnicas verticais, que tem cursos gratuitos e pagos.

Finelli foi o idealizador do Projeto Gratidão Tabuleiro, planejado para divulgar o Parque Municipal Natural do Tabuleiro e a sua contemplação por meio de técnicas verticais de descenso, chamando a atenção para as riquezas naturais do local e para a modalidade do canionismo. De acordo com ele, a proibição de  descer pela cachoeira se deu devido a muitos acidentes terem ocorrido, resultando em necessidade de resgates do Corpo de Bombeiros e em muitas pessoas feridas, sobretudo com fraturas. “Foi necessária muita luta, muito convencimento e um projeto sério, que visa não agredir a natureza e trazer uma segurança real para os praticantes”, afirma Gabriel, que salienta: “É uma descida que só deve ser feita por quem domina as técnicas e está em forma. Uma pessoa que vier fazer um rapel simples aqui pode facilmente acabar morto num acidente”, disse.

- Foto: Arte Paulinho Miranda sobre foto da internet

O grupo teve apoio da Liga Desportiva do Estado de Minas Gerais e da Federação Paulista de Canionismo. Agora, esperam atrair mais turistas para o parque ao divulgar um documentário e os registros fotográficos por meio das redes sociais do grupo. O próximo objetivo desse projeto, agora, é uma queda misteriosa na região de Morro do Pilar.
“Nós descobrimos esse local e estamos nos preparando para ser os primeiros a descê-lo. Serão 240 metros de queda, mas a data exata ainda não está fechada. Por isso, não podemos revelar qual o nome dessa formação”, disse Finelli.

A diferença de ver a Cachoeira do Tabuleiro de uma forma tão próxima, de acordo com os participantes, é ter uma integração maior com a formação natural. “Você percebe os detalhes com muito mais perfeição. Descobre que tem muita vida por lá, como animais fazendo seus ninhos e a beleza de muitas plantas nos patamares. E isso a mais de 200 metros de altura. A água estava bem gelada, o vento alterava o curso da queda e com isso a gente tomava vários banhos.”



Descida exigiu técnica e segurança


A reconquista da Cachoeira do Tabuleiro começou na manhã do dia 14. Os aventureiros chegaram cedo ao parque trazendo cerca de uma tonelada de equipamentos, como cordas (cerca de mil metros), mosquetões, capacetes, cadeirinhas, freios e mantimentos, entre outros.
As trilhas se enveredam por aproximadamente cinco quilômetros da parte baixa da trilha até o alto da queda d’água. Boa parte desse deslocamento precisou ser vencido com a carga de equipamentos distribuída no lombo de uma tropa de burros e sob a ameaça de um tempo fechado que poderia comprometer todo o projeto. “O grande volume e também o peso dos equipamentos são o que torna esse desafio ainda maior. Isso e a tensão, porque a atividade precisa de ter uma janela de tempo bom. Se o fluxo da água do rio aumentar demais, a atividade teria de ser abortada”, conta o idealizador desse projeto, o canionista Gabriel Finelli, chamando a atenção para o fato de a cachoeira ser conhecida pela alta incidência de trombas d’água, uma preocupação de segurança expressa inclusive no termo de compromisso de ingresso no parque.

Nos últimos 400 metros, os participantes precisaram abandonar as bestas de carga para entrar no cânion do Ribeirão do Campo com toda a carga distribuída nos ombros. “Foi necessário muito esforço e técnica. Imagine que era uma tonelada de equipamentos sendo trazidos por pessoas que precisavam de vencer trechos de desescalada e outros muito apertados para transpor entre as rochas”, conta Finelli. Depois de deixar os equipamentos próximos à cabeceira da queda d’água, os aventureiros pousaram na propriedade de um dos sertanejos que vive no parque, o senhor Chico Niquinho.



No dia seguinte, um dos momentos mais tensos e técnicos foi o início da montagem dos equipamentos. “Tivemos de identificar os pontos naturais para ancoragem dos equipamentos. Definimos seis pontos, que foram mapeados e depois vão constituir um guia para que outras pessoas possam seguir.
Foram 10 horas de trabalhos dependurados a mais de 20 metros de altura, tendo de localizar as rochas e preparar as cordas. Todos nós terminamos essa etapa, jantamos e dormimos sem muita conversa. Todos estávamos exaustos”, lembra o canionista.

O terceiro e último dia foi o da conquista. Dez anos depois de a descida da cachoeira ter sido proibida, o belo-horizontino Alexandre Mendes reinaugurou essa aventura ao se dependurar do alto de 273 metros e vislumbrar os vales sob a mais alta queda d’água de Minas Gerais. A descida precisou ser feita em três transições. As duas primeiras, com 80 metros e a última, que leva ao poço da cachoeira, de 113 metros. “O canionista precisa fazer essas transições o tempo inteiro dependurado. A corda, se fosse deixada diretamente na queda, ficaria pesada demais, assim como o freio seria pesado demais”, conta Finelli. Ao todo, dos 14 expedicionários, 11 desceram a Cachoeira do Tabuleiro, gastando em média 35 minutos cada..