“Ana Beatriz, você cortou seu cabelo?” “Cortei, mamãe. Não gosto do meu cabelo”, respondeu a pequena, aos prantos. Com um nó na garganta e uma dor insuportável no peito a comunicóloga Ana Paula Barbosa, de 37 anos, respondeu à menina, de apenas 4: “Mas, filha, seu cabelo é lindo”. “Não é não. Ele nem bate nas costas”, ela contestou, ainda chorando. O diálogo foi postado pela mãe em uma rede social. Para ela era um desabafo. Mas na verdade é muito mais que isso. É um dilema que se esconde sob as mechas de milhares, talvez milhões de famílias, em um país marcado pela miscigenação e onde o padrão de beleza não contempla exatamente essa realidade. Mas o desdobramento dessa conversa revelaria ainda mais: que em sua inocência, e da sua forma, os pequenos têm muito a ensinar a seus pais e mães. E que Bia está longe de ser exceção – seja em sua angústia, seja em suas lições. Foi pela reação da filha que Ana Paula percebeu que também ela precisaria adotar o padrão de beleza afro para servir de exemplo à filha.
Filha de pai branco, de cabelo liso, e mãe negra, de cabelos crespos, Ana Beatriz tem pele clara e cabelos crespos. Desde que os cachinhos ganharam forma, a mãe resolveu investir em penteados ou no volume solto que valorizassem a beleza da filha. A reação de Bia naquele dia foi um choque para a comunicóloga, que sempre se preocupou em rodear a pequena de referências de beleza próximas à da criança. “Já que na TV aberta não tem, pesquiso na internet desenhos que tenham crianças negras, de cabelo crespo. Compro livros com personagens afro. Na música, a mesma coisa”, afirma.
Mesmo com todo o esforço, ela diz que é desafiador exaltar uma beleza que a sociedade ainda reprime. “Ela entende que bonito é o que aparece na televisão, nos desenhos animados. As princesas todas têm cabelos longos e lisos, que batem nas costas”, comenta a mãe. Uma das saídas encontradas pelos pais da pequena tem sido o diálogo. “Tento mostrar para ela o quão bonito são todos os tipos de cabelo. E venho fazendo esse trabalho dia após dia, para poder mostrar que o cabelo dela não é feio, que ele é único”, explica Ana Paula.
A outra iniciativa partiu de uma mudança radical, em um processo longo e difícil para a mãe, que aos 35 anos decidiu passar por uma transição capilar. “É um processo doloroso de aceitação. É vergonhoso sair na rua com o cabelo que é visto pelas pessoas como desarrumado. Hoje, aceito minhas origens africanas e me sinto livre com meu cabelo natural. Mas essa mudança ocorreu primeiro por dentro, para depois refletir por fora”, explica.
Ana Paula destaca a importância de o exemplo ocorrer primeiro em casa, como lhe mostrou sua filha. “Como agora uso meu cabelo natural, isso já é uma referência para ela. Acho difícil mães que querem que as filhas usem crespos, mas têm os cabelos alisados quimicamente. Muitas vezes, essas meninas não se identificam. Elas querem ser parecidas com a mãe”, comenta. As iniciativas dos pais têm surtido efeito na autoestima de Ana Beatriz. Ao receber a reportagem do EM, ela não só fez questão de exibir a cabeleira, como deu até tutorial da forma correta de arrumar os cachinhos para ir para a escola.
O episódio com a filha trouxe mudanças profundas na vida pessoal e profissional de Ana Paula. Depois de deixar um emprego numa agência de comunicação, ela resolveu dedicar-se ao estudo e tratamento do cabelo crespo. O aprendizado virou empreendimento, o Salão Beleza Crespa. O negócio não tem um espaço físico fixo. Ela atende na própria casa e vai também até as clientes. “A proposta do meu salão é valorizar a cultura negra por meio da estética. Hoje, o meu trabalho é voltado para o tratamento do cabelo, de forma que ele fique saudável sem ser preciso o uso de química”, explica.
Isabelly Samara Fernandes, de 10, não é a única criança negra da sala de aula dela, mas é a única menina que usa os cabelos crespos naturais. A mãe, Ariane Dias, de 29, decidiu que não mudaria a estrutura do cabelo da filha enquanto o poder de decisão estivesse na mão dela. “Não quero que ela passe pelo que passei. Minha mãe alisou meu cabelo quando eu tinha 11 anos. A ditadura do liso vira escravidão”, comenta.
Assim como a mãe de Ana Beatriz, Ariane também decidiu enfrentar a transição capilar há cerca de um ano. “Ela olhava pra mim e não sentia identificação comigo. Achava que meu cabelo era liso, e perguntava: ‘Por que seu cabelo é liso e o meu não?’. Decidi, então, que ela tinha que se identificar comigo. Foi quando resolvi parar de alisar”, relembra, emocionada. No caso dela, as tranças recém-colocadas têm ajudado a suavizar o processo de transição.
Mesmo com alguns casos de preconceitos já sofridos pela filha por assumir o crespo, como no dia em que a coleguinha da escola disse que ela tinha “cor e cabelo de empregada”, Ariane acredita que hoje não só é mais fácil assumir a cabeleira afro, como até é incentivado. “Quando minha mãe disse que ia alisar meu cabelo, para mim foi a glória. Porque na minha época não tinha essa de você achar bonito um cabelo crespo, admirar uma pessoa com a essência dela. Antigamente, era só o padrão liso”, conta.
Mercado se adapta aos cachos
Pressionado pelo movimento de mulheres crespas que não aguentavam mais a escravidão da chapinha, formol e artifícios para se encaixar no padrão liso, o mercado de produtos de beleza tem se adequado. Hoje, já é possível encontrar uma variedade de cosméticos para tratar os diversos tipos de cabelos crespos, inclusive os fios sensíveis das crianças.
Proprietária de um dos salões especializado em cabelos crespos mais antigos da cidade, o Beleza Negra, Betina Borges diz que o segredo do natural bonito, independentemente do tipo, está no tratamento adequado. A paixão pelo cuidado com as madeixas afro começou ainda na infância, incentivada pela avó. “Minha avó ia pra minha casa trançar o meu cabelo e das minhas irmãs. O meu era sempre o mais crespo, que era chamado também de cabelo ruim, duro. Mas eu nunca ouvi esses termos da boca dela. Ela sempre dizia que meu cabelo era lindo” relembra a cabelereira.
Esse amor cultivado na infância pelo crespo, as lições de cuidado e o afeto pela avó viraram livro infantojuvenil. “Ficava quietinha pra minha vó fazer as trancinhas. Às vezes, eu gritava para desembaraçar e ela falava: ‘Fica quietinha, porque um dia você vai fazer cabelo de muita gente’. Mesmo assim eu gritava ‘ai, ai, ai, ui, ui, está doendo vó’. O caso acabou virando enredo de um livro’”, conta. Hoje, a cabeleireira vai para escolas divulgar Betina, escrito por Nilma Lino Gomes e publicado pela editora Mazza, para contar um pouco da sua história e ensinar para as crianças os cuidados com os crespinhos.
A profissional acredita que a forma como a criança vai lidar com o cabelo tem muita relação com a educação dada pelos pais. “Os pais têm que ensinar para as filhas, desde pequenas, que os cabelos delas são lindos. A mãe, por sua vez, também tem que estar com o cabelo compatível com o da criança. Porque ela vai cobrar, vai querer saber por que a mãe alisa e ela não pode”, destaca. “A criança tem que ter certeza e convicção de que o que ela quer é o cabelo natural. E que não são as pessoas que vão falar o que fica ou não bom pra ela”, emenda Betina. Ela ainda aponta uma falha comum entre os pais, que é fazer brincadeiras depreciativas com os pequenos. “Não cabe à mãe, pai ou avó fazer piadinha. ‘Ah, o cabelinho duro, a jubinha de leão’. Tem que ser o inverso. ‘Olha, filhinha, lembra do Michael Jackson, que novinho usava o cabelo black power?’ Assim a criança vai ganhando gosto”, aconselha a especialista.
Polêmica na escola
Cabelos e estilos de penteado afro estiveram no centro das discussões em Belo Horizonte nesta semana, devido a denúncias de alunas do Colégio Tiradentes, ligado à Polícia Militar, de que foram pressionadas a abandonar, no ambiente escolar, as tranças que usam. A unidade da escola na Região Leste de Belo Horizonte teria convocado as estudantes para exigir que adequassem seus penteados ao padrão da instituição, previsto no regulamento de uniformes, que estabelece exigências para os sexos feminino e masculino. O episódio motivou protestos em redes sociais e na própria escola. A unidade se manifestou, afirmando que a reunião realmente ocorreu, mas que foi dirigida não apenas às adolescentes que usavam tranças, mas também outros tipos de adereços e cores fora do padrão exigido no regimento. “As orientações não tiveram como objeto o tipo de cabelo, mas a forma regulamentar de uso”, disse a escola, lembrando que “no ato da matrícula”, os pais declaram estar de acordo com as normas do educandário.
Veja a íntegra da nota do Colégio Tiradentes:
"No Colégio Tiradentes da Polícia Militar existem regras de conduta que guardam relação direta com a cultura e prática dos valores próprios de uma organização militar. Como em qualquer organização séria, as regras e normas, no Colégio Tiradentes, devem ser respeitadas. Diante de não cumprimento, há previsão da aplicação de medidas disciplinares de caráter pedagógico, cujo objetivo é auxiliar na formação do aluno. Considerando que alguns alunos não estavam cumprindo as regras de apresentação pessoal, e antes da adoção de medidas disciplinares mais rígidas, cabíveis, a equipe pedagógica do colégio optou por reorientar alunos e alunas sobre a forma regulamentar de ser arrumar os cabelos.
Portanto, as orientações passadas aos alunos e alunos não tiveram como objeto o TIPO de cabelo, mas a FORMA regulamentar de uso . Todos já haviam sido advertidos verbalmente para se adequarem. Importante destacar que no ato da matricula, os responsáveis pelos alunos declaram estarem cientes de pleno acordo com as normas do educandário. O regulamento não especifica o tipo de trança, mas estabelece que se forem usadas, estas deverão estar presas. O mesmo se aplica as alunas que usam cabelos longos. As alunas foram reorientadas sobre o cumprimento de regras. A Direção segue avaliando as condutas dos alunos que, porventura, tenham descumprido outras normas.
Os processos pedagógicos do CTPM são alicerçados por vasto conjunto de fundamentos e valores, individuais, sociais e institucionais que orientam o trabalho educativo, destacando-se, dentre outros: a ética, a política, a estética militar, a legalidade, a moralidade, a liberdade, a lealdade, o patriotismo, a hierarquia, a disciplina, o espírito de justiça, o civismo, a solidariedade, o respeito, a atenção à família, o autodomínio, o acatamento às normas, o respeito aos costumes e tradições da PMMG."