21h, domingo, Aglomerado da Serra, Centro-Sul de BH. O pancadão rola solto. Enquanto a playlist do baile funk desembola desde os hits mais tocados nas rádios – como sucessos dos funkeiros Ludmilla e Nego do Borel – até as batidas com conotações sexuais, que são inclusive as que mais causam alvoroço, um recado é dado no palco: “Gente, não cheguem passando a mão nas meninas. E as meninas assanhadas, não passem a mão nos meninos também, não, viu? E para com negócio de ficar puxando cabelo das meninas, vocês não são cabeleireiro, não. Mulher tem que ser respeitada em qualquer lugar. Não é porque ela está com um shortinho rebolando que ela está querendo dar não, viu? Respeitem.” A advertência da organizadora Cristiane Pereira, a Kika, reverbera pelos alto-falantes instalados na Praça Esportiva da Vila Cafezal.
A preocupação tem seus motivos: de cima do caminhão, observa-se que a proporção de homens é muito superior ao público feminino. Mas, mesmo sendo minoria, jovens que já têm hábito de frequentar o baile dão relatos de que não é comum serem desrespeitadas. “Infelizmente, como mulher, estou sujeita a sofrer assédio em qualquer lugar, mas no baile nunca aconteceu comigo”, garante Jenniffer Gomes, de 17 anos, no intervalo de uma e outra batida.
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Longe dos refrões e da algazarra do batidão, a delegada da Polícia Civil Cláudia da Proença Marra, responsável pela região do Aglomerado da Serra, diz que não há registro de violência no baile. Mas há vulnerabilidade. “Falar que o crime não acontece no baile funk é complicado. Temos alguns registros de perturbação, por exemplo, que precisamos reprimir. E o fato de o baile levar mais pessoas para o aglomerado aumenta a possibilidade da ocorrência de mais crimes”, considera. Entretanto, desde a conquista do alvará, ela atesta que não houve “confronto relacionado às gangues”.
A delegada explica que no aglomerado há oito vilas (Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora Aparecida, Santana do Cafezal, Novo São Lucas, Fazendinha, Chácara e Marçola). Cada uma tem seu esquema de comercialização de drogas, conta. Trata-se de um território com alta vulnerabilidade social, portanto, conflitos acontecem. Entretanto, nos últimos meses, o aglomerado está “tranquilo”, ela relata. “O evento vai ocorrer, independentemente de alvará. Perigo, neste momento, não vejo. Mas, caso ocorra alguma desavença entre gangues, o perigo será gerado”, concluiu.
De acordo com a Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp), dados de criminalidade por bairros ou regiões não são divulgados por questões estratégicas de segurança. Entretanto, especificamente no Aglomerado da Serra há um trabalho desenvolvido na área de prevenção à criminalidade, com os programas Fica Vivo e Mediação de Conflitos.
Os resultados do Fica Vivo, com objetivo de reduzir as mortes de jovens, traça o número de homicídios. As estatísticas chamam a atenção: enquanto em Belo Horizonte foram registrados 531 assassinatos no ano passado, 11 adolescentes morreram no aglomerado. Este ano, 221 mortes ocorreram na cidade de janeiro a julho devido à criminalidade. No aglomerado, no mesmo período, um assassinato foi registrado.
Durante os dois meses de produção desta reportagem, o Estado de Minas tentou agendar entrevista com a Polícia Militar, sem sucesso. No dia do evento acompanhado pelo EM, a equipe não identificou a presença de policiais monitorando o baile. Outro pedido de manifestação foi encaminhado à PM, que respondeu por meio de nota. “A Polícia Militar esclarece que no dia 30 de setembro de 2018, das 17h às 23h, esteve presente no local do evento denominado ‘Baile da Serra’, no Aglomerado da Serra, tanto ostensivamente como também de maneira velada, tendo inclusive registrado imagens do evento. Não houve registro de ocorrências por parte da PMMG”, informou.
Lugar de botar pé no palco
Além de ser um espaço de diversão para moradores de periferias de BH, o Baile da Serra desempenha um papel importante para os artistas locais. “É aqui dentro da comunidade que a gente faz o nosso nome e ganha respeito. Para mim, tem um peso muito maior, por ter me transformado em espelho, uma referência. Muita criança vai ver e pensar: ‘Pô, quero ser igual a esse menino’. Então, temos que tomar muito cuidado, porque a responsabilidade só cresce”, destaca o dançarino Johnathan Gomes, de 21 anos.
Nascido e criado no Aglomerado da Serra, Johnathan considera o baile um espaço de revelação de artistas. A paixão pela dança vem desde os 4 anos, mas foi aos 12 que virou profissão, ao ser convidado a integrar um grupo de passinho – modalidade de dança do funk. “Teve uma época na minha vida em que eu não curtia funk, porque não gostava de algumas letras. Mas é difícil não se envolver com a batida. Foi então que recebi o convite de um amigo para entrar para o grupo deles.” Depois, o jovem criou o próprio grupo de passinho, o Passistas Dance, e já consegue viver com a renda das apresentações. “A gente já se apresenta fora. Poucos dias atrás, fomos fazer um show em Ipatinga. E sempre tem convite para estar em festas de 15 anos e em bailes.”
Na fila do banheiro do baile, um jovem comemora: “Consegui tirar uma foto com a DJ Ray Laís. Sou muito fã dela”. Ícaro Cruz, de 18 anos, é um dos milhares de admiradores daquela que é uma das principais atrações do baile. A jovem, de 19 anos, começou na vida artística há dois. “Sempre gostei do funk, sempre tive interesse em produzir e tocar. Aos 17 anos resolvi me arriscar no palco e acabou dando certo”, resume a funkeira.
As redes sociais da artista comprovam a popularidade. No Instagram, ela é acompanhada por mais de 80 mil seguidores. Sem meias palavras, enquadra os ritmos com que trabalha como “funk putaria”. Mas diz que as letras explicitamente sexuais não colocam a mulher na posição de objeto. “No momento, o funk putaria é o que o povo quer ouvir. Não acho as letras machistas. O trabalho varia entre cada MC. Cantar algo não significa que você pensa aquilo”, defende.
‘Nosso pedaço’
A aprovação ao baile da Serra não vem só de artistas e frequentadores. Mesmo nunca tendo ido às festas e não gostando do gênero musical, a mãe do passista Johnathan incentiva o filho e enaltece o baile. “Acho que tem que acontecer, sim. Os jovens, as famílias precisam de ter algo pra se divertir nos fim de semana”, comenta Marcilene Gomes, de 40, que sempre morou no Aglomerado da Serra. “Quando vão ao baile, eles estão aqui dentro. Está no nosso ‘pedaço’. Problema, todo lugar tem, mas com o baile eu não preocupo”, completa a massoterapeuta.
Além da sensação de segurança compartilhada por moradores, os organizadores apontam a origem social em comum dos frequentadores como diferencial do evento. “Um outro fator que deve ser considerado é que, se um jovem daqui descer para curtir uma festa lá na Savassi, até chegar lá vai ganhar 10, 15 geral (revistas) da polícia. É esculachado simplesmente por ser morador de favela, preto e pobre. Aqui dentro, não. Aqui ele é respeitado e está seguro”, destaca Kika, a produtora do baile.
enquanto isso...
...Vai ter baile
nas quebradas
O Observatório do Funk quer levar o baile regulamentado para outras comunidades de Belo Horizonte. O evento foi até rebatizado como “Baile da Serra nas Quebradas”. “Nosso público é também de outras favelas. As pessoas costumam ir porque na sua própria comunidade não têm esse direito de fazer um baile com tranquilidade. São 40 anos de funk, ninguém desistiu, vamos continuar na luta’, conclui Maíra.