Salas de aula espalhadas pelo Brasil enfrentam, em pleno século 21, desafios primários que vão do acesso à educação à qualidade do ensino. À frente delas, quem no passado era mestre, detentor de respeito absoluto, agora luta diariamente contra riscos que se tornaram inerentes à carreira de professor. No dia a dia, ser respeitado, ter controle sobre os alunos, prender a atenção da turma, lidar com agressões verbais e até físicas e imergir em ambientes e contextos hostis passaram a ser desafios por vezes muito maiores que o de ensinar. Com ocorrências subnotificadas, os dados oficiais disponíveis são insuficientes para medir o tamanho do problema. Mas mesmo o pouco que se sabe sobre essa realidade é preocupante. A título de exemplo, só em Belo Horizonte, pelo menos quatro ocorrências foram registradas por dia nas escolas municipais nos primeiros oito meses do ano (veja arte). Hoje, data em que se comemora o dia dedicado a eles, o panorama profissional mostra educadores acuados, tentando vencer a violência por meio do conhecimento. Suas armas – livros, cadernos, didática e dedicação – parecem frágeis, mas são ainda a grande aposta na transformação.
Rotina que se reflete em números como os computados pela Guarda Municipal de Belo Horizonte, que de janeiro a agosto registrou 32 ocorrências nas escolas da rede mantida pela prefeitura, que tiveram servidores como vítimas. O número é o mesmo de igual período do ano passado. Do total, 11 foram constituídas de enfrentamento físico (cinco a mais que o computado em 2017) e duas, de lesões corporais, situação que não havia sido registrada no intervalo anterior. De acordo com a Secretaria Municipal de Educação (Smed), os professores foram as vítimas na maioria absoluta dos casos: 29 registros. Uma realidade que está longe de ser exclusividade da capital. Fora dela, o problema se repete e se agrava, embora faltem números precisos para representá-lo.
O professor Thiago Assis Silva, de 25 anos, faz parte de uma estatística ainda desconhecida, que engloba todo o estado. Havia apenas oito dias que o jovem do interior de Minas havia assumido a sala de aula, quando viu sua integridade física ser desafiada. Pacato, foi exposto publicamente em um vídeo que circulou nas redes sociais, no qual aparece como alvo de chutes e socos de dois adolescentes, seus alunos. Thiago se formou em junho como engenheiro civil, e resolveu logo dar asas a seu plano de uma carreira acadêmica, começando primeiro pelas escolas de estado e município para depois chegar às turmas de universidade.
No último 14 de agosto, assumiu turmas de matemática no 7º ano do ensino fundamental na Escola Estadual Doutor Moreira Brandão, em Camanducaia, Sul de Minas. “Não sei se foi devido à minha inexperiência, mas não estava conseguido controlar a turma, que não obedecia. Alguns alunos são do seu tamanho, e parecem ter a mesma idade. Mas tive dificuldade em uma sala específica”, conta. Dois alunos em especial tornavam a situação ainda mais complicada.
"A maioria dos alunos não respeita nada nem ninguém, seja o professor ou o material da escola. As famílias estão desestruturadas e está cabendo à escola educar e disciplinar"
Thiago Assis Silva, 25 anos, professor em Camanducaia
No dia 22, ao vê-los com uma bola em plena sala de aula, Thiago pediu inúmeras vezes que parassem de jogar. “Continuei dando aula, até que a bola bateu no quadro e apagou um pedaço do desenho que eu tinha feito, o que acabou me irritando. Quando fui pegar a bola, um começou a jogar para o outro. Fiquei assim um bom tempo, com a sala inteira debochando da minha cara. A gente fica mal, pois tenta passar conhecimento e o aluno faz isso com você”, relata.
Retornando ao quadro, ele voltou a passar a matéria. Quando a bola voltou a cair perto dele, conseguiu pegá-la. A primeira reação foi rasgar a bola de plástico. “Um dos alunos veio me intimando, dizendo que eu teria de pagar. Eu o empurrei pedindo para sentar e ele não se sentou. Eu já estava sem sentido, irritado e nervoso. Veio o outro aluno, provavelmente o que me derrubou. Ele me chutou, acertou o rosto. Foi tudo muito rápido. Ninguém se levantou. Ninguém ajudou. O pessoal ficou filmando”, conta.
Quando se levantou, levou os dois para a secretaria. Sob choque, não teve reação. Nem mesmo contou o que havia ocorrido. Saiu da escola jurando nunca mais voltar. No dia seguinte retomou seu posto, acreditando que conseguiria esquecer, o que também não ocorreu. A escola teve ciência da situação apenas no dia 31 daquele mês, quando o vídeo chegou ao conhecimento da supervisão.
DEBOCHE Na ocasião, para cumprir formalidade, o professor registrou boletim de ocorrência, mas, mesmo com os machucados ainda à vista, se recusou a fazer o exame de corpo de delito. Foram ainda muitos encontros com os agressores, até que fosse transferidos dois meses depois para outro colégio. “Foram para a escola de onde já haviam saído por causarem problemas. Saíram daqui dando risada”, diz o professor Thiago.
Estudante de escola pública e ex-aluno do colégio, Thiago diz que não vai abrir mão de seu sonho de dar aula. Mas diz não acreditar mais na educação. “Quando estava no ensino médio, eu pensava que um dia seria eu a escrever na lousa. Professor não ganha bem, mas quero continuar, porque gosto”, diz. Mas, o sonho dourado, por enquanto, tomou outros tons: “A maioria dos alunos não respeita nada nem ninguém, seja o professor ou o material da escola. As famílias estão desestruturadas e está cabendo à escola educar e disciplinar”.
Com nervos à flor da pele
Ficaram no passado, há muito, os dias em que o professor era a autoridade suprema em sala de aula. Os desafios atuais são tantos, que números absolutos não conseguem retratar o perigo que cerca a carreira. Nela, é preciso considerar e confrontar contextos sociais diversos – por vezes até enfrentá-los. São situações nas quais histórias de vida ou um simples olhar cuidadoso podem fazer a diferença. A violência na escola e no entorno dela fazem da profissão de educador uma panela de pressão, que parece sempre prestes a explodir. Habilidade e paciência no trato com os alunos são tidas como a chave para lidar com o processo.
São 32 anos em sala de aula. Para o professor de geografia e história Carlos Justino Corrêa, experiência e paciência são a alma do negócio. Aposentado na rede pública de ensino, se dedica hoje a uma escola particular em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Com o caminho feito nos dois campos, aponta com propriedade as diferença entre uma e outra rede: o interesse dos alunos. “Na escola particular eles são muito mais interessados. A estrutura que os estudantes têm, financeira, psicológica e familiar, pesa muito”, diz. Mas, se o ponto a ser comparado passa pelas emoções, com um suspiro, ele emenda: “Nesse aspecto, o aluno da rede pública demonstra muito mais, talvez até por carência. Muito menino vê no professor a oportunidade de carinho, como um pai ou uma mãe.”
Histórias não faltam na carreira de Justino. Da escola onde a criança ia exclusivamente para merendar até as barreiras do tráfico. De professores agredidos verbalmente em seu cotidiano de trabalho àqueles que apanharam, passando por assassinato de aluno em pleno pátio. A experiência o levou a compreender a importância de duas atitudes para conquistar a confiança dos estudantes e tomar as rédeas da sala de aula: a relação próxima e respeito pelos alunos."É a única profissão que pode alterar a realidade. Como a escola reflete a sociedade, está nas nossas mãos a esperança e a formação de um mundo melhor"
Valéria Morato, presidente do Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais
Em um dos colégios em que lecionou, perdeu, num curto espaço de tempo, mais de 20 alunos de 14 a 16 anos para o tráfico. Em outro, em Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, quando assumiu a vice-direção, teve que tomar as rédeas da questão disciplinar. “Por uns seis meses, pensei que não daríamos conta. O tráfico corria dentro da escola. Dava 18h, era uma debandada geral. Aluno ia para o banheiro fumar maconha e nos confrontava. Professores reclamavam que não conseguiam dar aula. Um deles distribuiu uma tarefa e os estudantes jogaram as folhas no lixo e puseram fogo”, conta.
Com o chefe da “boca”, que fora seu aluno, negociou o fim da venda de drogas. Como ninguém podia ser liberado antes do horário de término das aulas, ficou várias vezes de guarda no portão para impedir a saída dos jovens, que pulavam o muro para ir embora. Representantes da Secretaria de Educação da cidade, Polícia Militar, Guarda Municipal e Conselho Tutelar foram chamados para sentar à mesa e buscar uma solução. “Eu deixei claro que não tinha peito de aço e não ia segurar aqueles jovens dentro da escola.”
A estratégia passou a ser outra. Em vez do enfrentamento, a compreensão. Depois da merenda, quando aproveitava para conversar com os alunos, passou a liberar quem queria ir embora. “Passaram a ter mais confiança”, lembra. Professores doentes, dependentes de antidepressivos e ausentes são comuns nesse cenário. “Era raro dar aula num dia em que não tivesse sequer uma falta. O buraco é muito mais profundo. Não é o professor que é preguiçoso. São muitos fatores que levam à desmotivação. Os problemas das escolas públicas são astronômicos. Tem que ser muito lutador, porque a realidade é bruta. E quanto mais periferia, pior.”
PARTICULARES Mas se engana quem pensa que a violência é fenômeno apenas da rede pública de ensino. Na particular, um ambiente inóspito de cobrança dá as cartas, muitas vezes difíceis de jogar. Para a presidente do Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais (Sinpro-MG), Valéria Morato, a escola reproduz a sociedade e, num ambiente de intolerância que tomou conta do país, os educadores dos colégios particulares não ficam imunes à realidade. “Sofrem a intolerância por parte dos pais de alunos, dos próprios alunos e dos donos da escola. Essas atitudes se materializam desde o desrespeito à formulação do projeto político pedagógico até as agressões verbais que tratam os professores como meros fornecedores de serviços”, diz.
Se na escola pública o contexto social e familiar é inerente à questão da violência em sala de aula, na particular a própria relação de consumo contribui para isso, na visão de Valéria. “O contexto social também interfere, mas de forma diferenciada”, afirma. Não há números reais sobre o problema. “O professor se sente oprimido, com medo de perder o emprego e acaba não denunciando. Isso faz com que ele adoeça”, afirma. Mesmo diante de uma situação dura, Valéria não considera a profissão como um risco. “É a única profissão que pode alterar a realidade. Como a escola reflete a sociedade, está nas nossas mãos a esperança e a formação de um mundo melhor.”
União para combater os problemas
O diretor estadual do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE MG), Paulo Henrique Santos Fonseca, acredita que a presença de outros profissionais na escola, como assistentes sociais e psicólogos, ajudaria a balancear a questão para todos os lados. Outro ponto é a aproximação das famílias com a escola, para que os educadores possam entender pelo que o estudante está passando e como pode ajudá-lo. Na falta de números oficiais, empiricamente é certo dizer sobre a gama de docentes acometidos por doenças físicas e psicológicas que os levam, muitas vezes, ao afastamento. “A maioria dos professores se envolve muito com as questões vivenciadas pelos estudantes, o que os deixa fragilizados”, conta.
Há riscos e, segundo ele, têm aumentado os casos de desrespeito e violência, que variam de agressão verbal até enfrentamento físico. “A escola está inserida num contexto social e reflete os problemas da sociedade como um todo, entre eles a desigualdade econômica, que é o grande motivador da violência. O desemprego em alta acaba danificando o tecido social e familiar, e os problemas que o estudante vive em casa são externados no seu convívio escolar com colegas, professores e trabalhadores em educação de maneira geral”, relata.
E as interferências não param por aí. Segundo Paulo Henrique, um dos maiores problemas enfrentados pelo educador é o desinteresse e a indisciplinados alunos. “Ele se sente feliz quando consegue prender a atenção do estudante e desenvolver algo. Há momentos lúdicos muitas vezes, mas na sala de aula não funciona: temos alunos vivendo realidade social difícil e professores sobrecarregados, porque nenhum trabalha uma única jornada e tudo isso compromete o desenvolvimento em sala de aula.”
Em Belo Horizonte, a tônica é tentar combater o problema de forma conjunta. As secretarias municipais de Educação e de Segurança e Prevenção integram o Grupo de Trabalho de Segurança nas Escolas, que tem como objetivo elaborar propostas de ações intersetoriais para prevenção e redução de violência nas escolas municipais da capital. “Com base na análise dos dados produzidos a partir das ocorrências registradas no interior das escolas pela Guarda Municipal de Belo Horizonte, o GT de Segurança nas Escolas avança na compreensão das especificidades e traça uma ação qualificada para tratar da violência não somente dentro das unidades de ensino, mas a amplia também para as comunidades onde elas estão inseridas”, informou a SMSP, por meio de nota.
"Há momentos lúdicos muitas vezes, mas na sala de aula não funciona: temos alunos vivendo realidade social difícil e professores sobrecarregados, porque nenhum trabalha uma única jornada e tudo isso compromete o desenvolvimento em sala de aula"
Paulo Henrique Santos Fonseca, diretor estadual do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais
Projetos e estratégias educativas
Até o fim do ano, a Secretaria de Estado de Educação (SEE) deve conhecer a realidade nas escolas da rede. Desde março, está disponível para diretores e gestores escolares um sistema on-line em rede de registro de situações de violência, que permite a coleta de dados sobre a violência nas escolas. Por estar ainda em processo de implementação, a pasta informou que as informações disponíveis ainda são incipientes.
O sistema é parte do Programa de Convivência Democrática nas Escolas, implantado ano passado e voltado para professores e estudantes. O objetivo é articular projetos e estratégias educativas para promover e defender direitos, compreender e combater a violência no espaço escolar, incentivar a participação política da comunidade escolar e fortalecer a política de educação integral nos territórios onde as escolas estão inseridas.
A secretaria chama atenção ainda para o programa Justiça restaurativa nas escolas. Lançado em fevereiro, é resultado do Termo de Cooperação Técnica (TCT) assinado pelo Estado de Minas Gerais, Prefeitura de Belo Horizonte, Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Por meio do TCT, os parceiros se comprometem a unir esforços para a implantação dos Núcleos de Orientação e Solução de Conflitos (Nós) ou outros espaços para discussão do programa nas escolas da rede pública e a capacitar seus integrantes como uma política de orientação ou solução extrajudicial de conflitos identificados no ambiente escolar.
Inicialmente, o programa vai atender 120 escolas municipais e 120 escolas estaduais, que aderiram espontaneamente. Em cada uma, a comunidade escolar vai indicar uma equipe de cinco pessoas – podem ser diretores, professores, alunos, ex-alunos, pais, desde que tenham participação na rotina da escola – que será treinada para implantar e divulgar os ideais do programa na escola. Os núcleos já estão em funcionamento nas escolas estaduais selecionadas.