Jornal Estado de Minas

PROFISSÃO DE RISCO

Vaivém em perigosas rodovias é outra ameaça aos professores de Minas

- Foto: Arte EM 

Quando o assunto é a sala de aula, a palavra violência que vem cercando os professores não remete apenas às agressões físicas e verbais. Na escola, seja pública ou privada, essa violência – que começou a ser mostrada na edição de ontem do Estado de Minas – permeia um aspecto muito mais sensível. Ataca diretamente a valorização da carreira de professor, cujos pontos primordiais passam pela formação e a remuneração. Salário não é tudo, mas a conta precisa fechar e, para tal, muitos docentes se desdobram dando aulas em várias escolas. Na rede estadual, quase um quinto deles têm dois cargos. Há quem se arrisque a verdadeiros “bate e volta”, enfrentando estradas perigosas e dando a cara a mais um fator de risco da profissão, cujo dia foi comemorado ontem. Nesses casos, enfrentar horas em ônibus ou carro vai além da missão de ensinar. É questão de sobrevivência.


O professor de matemática Rodrigo Natali Amorim, de 33 anos, sabe bem como é essa rotina.
Durante dois anos, ele se desdobrou para dar aula na rede pública e particular na Região Metropolitana de Belo Horizonte e ainda enfrentar a BR-381, rumo a João Monlevade, na Região Central do estado. O trecho percorrido todas as quartas-feiras, os primeiros 100 quilômetros da estrada, é justamente aquele que faz a 381 ser conhecida como “Rodovia da Morte”, dados os acidentes frequentes.


Ele foi convidado a dar aula num cursinho preparatório para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) da cidade e não pensou duas vezes. O medo da estrada foi substituído pela motivação financeira, uma vez que o valor da hora-aula que recebia em Monlevade era o triplo do que ganhava no colégio particular onde também era professor, em Contagem, cidade onde mora. Saía às 6h para assumir a primeira turma às 9h40. Dava aulas o dia todo e retornava às 21h, chegando em casa por volta da meia-noite. “Um dia de trabalho lá era quase o meu salário do mês inteiro”, conta.


Segundo ele, não é uma questão de escolha. “Ou você pega uma escola particular renomada, que vai te pagar um salário mais alto, exigir exclusividade e sugar o profissional, ou dá aulas num colégio mais simples.

Mas aí, o salário não dá para viver e você vai ter que partir para outras”, relata.

MARATONA Depois de dois anos na maratona entre Contagem e João Monlevade, ele cansou. Aproveitou as economias para abrir o próprio cursinho em Betim, na Grande BH. “A rotina de professor é complicada. Tenho muitos colegas que tomam remédio controlado, têm problemas de pressão, porque não aguentam o batido”, diz. Questionado sobre a vontade de parar, Rodrigo é enfático: “Com todos os contratempos, ainda sou apaixonado por dar aula.”


A legislação permite aos servidores públicos o acúmulo de no máximo dois cargos, desde que observada a limite de carga horária – o que está longe da realidade. Acumulando cargos nas redes pública e particular, não são raros os professores com trabalham em número superior de estabelecimentos de ensino. Dados da Secretaria de Estado da Educação (SEE) mostram que 19,6% dos docentes ocupam dois cargos nas escolas da rede. São 28.374, de um total de 144.611, entre efetivos e designados.

Rodrigo Amorim, por exemplo, chegou a dar aula em três escolas diferentes nos últimos dois anos. “Professor trabalha em vários lugares para ter um salário digno, ou fica sem chance de tê-lo. É um contrassenso. Somos responsáveis pela formação de todos os profissionais e desvalorizados a esse nível”, ressalta.


O diretor estadual do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE MG), Paulo Henrique Santos Fonseca, destaca que a valorização da carreira não passa apenas pelos termos financeiros, mas também pelo número de estudantes em sala e pela possibilidade de trabalhar num único turno. A desvalorização da profissão, na opinião do sindicalista, tem reflexo direto no interesse dos estudantes pelos cursos de licenciatura. “Esses cursos têm ficado basicamente nas universidades públicas, sendo já registrada uma redução na oferta entre as particulares. É urgente valorizar para não enfrentarmos num futuro próximo a falta de profissionais, além de termos melhores quadros na educação.”

Multidão descontente

 

A valorização da carreira foi objeto da pesquisa “Professor profissão docente”, divulgada este ano pelo Movimento Todos pela Educação. O levantamento, feito com docentes da educação básica em todo o país, teve parceria do Itaú Social e Ibope Inteligência. A profissão é a mais numerosa do Brasil, com 2,2 milhões de professores. De acordo com o estudo, dos 1,8 mil entrevistados, 49% não recomendam a carreira, 67% querem ser ouvidos sobre políticas educacionais, 71% avaliam como insuficiente sua formação inicial e 29% fazem trabalhos extras para complementar a renda.


O levantamento mostra que a maioria dos professores é mulher (62%) e é também a pessoa com maior renda na família (71%).

Um ponto grave é que um terço dos profissionais está totalmente insatisfeito com a carreira. Entre os motivos estão a desvalorização (48% das respostas), má remuneração (31%), rotina desgastante (15%) e falta de infraestrutura e recursos (13%).


Entre as prioridades, a remuneração ficou em quarto lugar. Além de aumento salarial (62%), os professores querem urgentemente mais formação continuada (69%); escuta para a formulação de políticas educacionais (67%) e a restauração da autoridade e do respeito frente à comunidade escolar (64%). De acordo com a pesquisa, 71% dos professores estão insatisfeitos com sua formação inicial. Para eles, faltaram conhecimentos sobre gestão de sala de aula (22%) e fundamentos e métodos de alfabetização (29%) – ou seja, a prática da profissão.

Moradora de Francisco Sá, Maria Alice enfrenta estrada sinuosa, poeira e risco de assalto para lecionar no distrito de Catuni, a 49 quilômetros de casa - Foto: Selma Rocha/Divulgação


Os professores entrevistados têm em média 17 anos de carreira. Primeira pesquisa, a ideia é continuar medindo nos próximos anos. O estudo mostra um dado curioso: quanto mais tempo de profissão, maior é a satisfação com a carreira. A motivação é desconhecida, mas uma das hipóteses é a aproximação da aposentadoria.


Para a gerente de projetos do Todos pela educação, Carolina Tavares, as mudanças são urgentes. “Ao longo da história, ela é considerada uma profissão menor: feminina, que qualquer um consegue fazer. A partir do momento que não dá suporte, que vira uma carreira que historicamente vai sendo desvalorizada, chega-se num ponto em que ela passa a ser totalmente desvalorizada”, afirma.

“Ainda não chegamos nesse ápice, mas é preciso olhar a situação, pois para a qualidade da educação é fundamental ter bons professores”, ressalta.


Nesse contexto, a formação continuada é uma das práticas defendidas pelo diretor-presidente da Fundação Telefônica Vivo do Brasil, Américo Mattar, para se chegar a um outro patamar. A instituição aposta em programas de qualificação de docentes, oferecidos sem custo aos estados, para melhorar a prática pedagógica e, assim, mudar não só o que está sendo aplicado em sala de aula, como os rumos da carreira de quem está à frente dela.


No programa da fundação, a formação continuada é aliada a novas práticas pedagógicas, alinhadas à tecnologia. As parcerias com escolas pública validam e criam junto com os professores as melhores práticas. Reflexões e debates são feitos para transformar novas experiências em conhecimento e multiplicá-las para os demais colegas. A proposta visa criar modelos de referência e ofertá-los ao poder público. Outra linha de trabalho é o programa Inova escola, que oferece um curso de formação a distância, com módulos presenciais e on-line. O curso é gratuito, tem certificação e serve como progressão de carreira. “Dar salário apenas não atende. É preciso passar pelo processo de valorização e ressignificar a carreira, que não tem atratividade. No modelo atual, além de não formar bem, não há incentivos para o professor continuar na sua atividade”, afirma Américo Mattar.

De carona para baixar custos


 

A arte de ensinar junto com o sacrifício. É assim a vida de professores que, para trabalhar, precisam enfrentar estradas perigosas, pegando carona. “Cada vez que pego a estrada para ir trabalhar, a sensação é de medo, por causa do risco de não voltar”, afirma Marcos Vitor Abreu Ferreira, de 37 anos, que leciona sociologia em uma escola da rede estadual em Barrocão, distrito de Grão Mogol, no Norte de Minas, situado às margens da BR-251. Morador de Francisco Sá, ele percorre 35 quilômetros de estrada e é obrigado a passar pelo perigoso trecho da Serra de Francisco Sá.

 

Ele conta que já testemunhou vários acidentes no trecho sinuoso de subida da serra, também conhecido como “Curva da Morte”. “Já vi mortes na estrada”, diz Marcos, acrescentando que, devido aos acidentes, por várias vezes a rodovia foi interrompida e ele ficou retido na beira da estrada. “Uma vez ficamos presos em Barrocão das 22h às 7h, pois não tinha como passar na estrada”, relata.


O professor disse que, devido à incompatibilidade de horários dos ônibus de linha com as saídas das  aulas recorre à carona pedida na beira da rodovia, junto com outros colegas.“Se a gente arcar com o transporte privado, tem que pagar para trabalhar”, explica.


Para Marcos Vitor, entretanto, o trabalho do professor “é compensado por saber que os alunos de um lugar cheio de dificuldades como o Barrocão se esforçam para aprender”. Por outro lado, ele reclama da falta de reconhecimento à categoria. “Na comemoração do Dia do Professor, o que esperamos é o docente tenha valorização não somente com a melhoria de rendimentos, mas como um profissional que ensina e também aprende”, acentua.


A rotina de ter que pegar a estrada para trabalhar também é encarada pela professora Maria Alice Rocha Xavier, de 25, outra moradora de Francisco Sá. No caso dela, o sacrifício é maior. Além do perigoso trecho da Serra de Francisco Sá na BR-251, ela enfrenta a poeira em estrada de terra em más condições, encarando também o perigo de assaltos.


Maria Alice viaja três vezes por semana para lecionar geografia em uma escola estadual no distrito de Catuni, no mesmo município. A localidade fica situada a 49 quilômetros da área urbana de Francisco Sá. Para romper esta distância, a professora viaja 20 quilômetros pela BR-251e depois cruza 29 quilômetros de estrada de terra até Catuni.


Ela diz que sempre sente um “frio na barriga” ao “subir e descer a serra”. No entanto, o trecho de terra é a parte mais perigosa de seu caminho. “As condições da estrada são ruins e passo sempre medo porque ocorrem muitos assaltos na região”, afirma Maria Alice. (LR)

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