" Ele era muito gentil, muito atraente, cativava todo mundo. Era sempre muito parceiro"
Paula Veloso, 30 anos, médica
"Ele me deu socos e pontapés. Tampava a minha boca, para eu não gritar. Por três vezes quase perdi a consciência"
Paula Veloso, 30 anos, médica
Difícil acreditar que os relatos acima se refiram à mesma pessoa. Mas a descrição que parece revelar o perfil do personagem do clássico O médico e o monstro não apenas retrata o comportamento de um só homem, como está muito distante de ser literatura. “A pessoa não consegue ser o que ela não é. Então, a máscara começa a cair. No ciclo do abuso tem a explosão, os palavrões... No outro dia tem o arrependimento, mas ele nunca é verdadeiro.” As palavras são de uma vítima de agressões, e servem de alerta para outras mulheres que se veem atadas a relacionamentos abusivos. Declarações que soam ainda mais impactantes quando se sabe virem de alguém que, diferentemente de quem se esconde entre o medo e o constrangimento, optou por mostrar o rosto e revelar seu nome, sem abreviaturas: o drama da médica oftalmologista Paula Veloso, de 30 anos, impressiona, mas está longe de ser exceção. De janeiro a outubro deste ano, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) distribuiu aos juízes em média uma investigação motivada por razões semelhantes a cada 14 minutos. Um recorde, com aumento de mais de 700% em relação aos 12 meses de 2017. No mesmo período de 2018, foram concedidas 33,7 mil medidas protetivas e determinadas 9,6 mil prisões em flagrante no estado.
A determinação da médica vem da certeza de que mulheres vítimas de agressão não devem se esconder. Menos ainda se calar. Pelo contrário, precisam se impor e denunciar logo aos primeiros indícios de violência. “A gente não pode ter medo, senão vamos ficar dentro de casa, presas, enquanto eles vão ficar por aí, soltos. Vão continuar levando a vida normalmente”, afirma. “Acho que quem agride são pessoas covardes. A gente, lógico, tem que se precaver e tomar cuidados. Mas eu confio na Lei Maria da Penha, confio nas medidas protetivas, e não deixo de sair, não deixo de viver.”
Todas essas fases relatadas pela policial foram vivenciadas pela médica Paula Veloso. Ela conheceu o ex-companheiro na faculdade, onde ele era professor e ela, estudante. Os dois iniciaram um relacionamento que durou nove anos. No início, tudo parecia maravilhoso. “Ele era muito gentil, muito atraente, cativava todo mundo. Sempre muito parceiro. Tinha boas opiniões e me levava para bons caminhos. Quando eu tinha uma dúvida, ele tinha uma opinião certa. Quando eu tinha algum problema, ele resolvia. Assim foi se passando o tempo. Logo de cara começamos a namorar. Na primeira semana já falou em casamento”, contou a médica.
A TRANSFORMAÇÃO Mas, aos poucos, alguns sinais de que a personalidade do companheiro era outra foram aparecendo. Agressividade, xingamentos e restrições começaram a fazer parte da vida de Paula. Um simples questionamento sobre uso de cigarro já era motivo para brigas. Até mesmo o trabalho dela era problema. “Quando me formei, comecei a dar plantão de madrugada. Ele sempre questionava o porquê. Falava: ‘Essa merreca que você vai ganhar eu te dou. Você vai ficar em casa’. Eu achava fofo, achava que ele me queria em casa, com ele. Mas depois começou a decidir coisas por mim,” disse.
Após as brigas, segundo a médica, vinha a fase do arrependimento, seguida da “lua de mel”, em que o companheiro sempre a levava para jantar, fazer uma viagem. “Mas, no fim, começa a diminuir o tempo do ciclo entre a explosão, o arrependimento e a ‘lua de mel’. Às vezes, dura um ano, passa um tempo bom, e você acha que a pessoa mudou. Só que um dia o ciclo se repete. E vai só piorando. Isso para mim era normal. Achava que era só a personalidade dele”, comentou. Porém, a agressividade foi aumentando. As “explosões” a que a médica se refere começaram a ser seguidas de pequenas agressões, apertões no braço, empurrões e até a quebra de um celular. Era o sinal de que algo pior estava para acontecer. E aconteceu.
De 4 mil para 32 mil processos
Relatos como o da oftalmologista Paula Veloso, que decidiu expor publicamente as marcas do relacionamento abusivo que viveu com o ex-companheiro, fizeram com que o número de processos relativos à violência doméstica explodissem neste ano em Minas. Apenas nos 10 primeiros meses, a quantidade de procedimentos investigatórios distribuídos para juízes no estado somou 32,6 mil, um estarrecedor aumento de 784% em relação ao ano inteiro de 2017, quando foram 4.157. Um dos processos foi o da médica de 30 anos, que decidiu quebrar o silêncio quando percebeu que o comportamento do ex-marido havia ultrapassado totalmente qualquer limite aceitável.
O ápice de um relacionamento que já se revelava controlador e moralmente abusivo aconteceu no apartamento onde o casal vivia. Uma festa da família do ex-companheiro ocorria no salão de festas do prédio. A princípio, a médica não iria ao evento, pois estava em um congresso. Mas ela conseguiu voltar antes. Ela conta que ao chegar, por volta das 22h, percebeu que o marido já estava alterado, devido ao consumo de bebidas alcoólicas. “Notei que ele já estava bêbado. Por isso, falei para ele comer alguma coisa. Mas, estava tudo bem. Todo mundo foi embora e sobraram somente ele e meu ex-cunhado, que aguardava um amigo chegar. Aí eu subi, pois estaria de plantão no dia seguinte”, contou Paula.
Segundo ela, o marido subiu até o apartamento, acendeu a luz e começou a falar alto. Ela conta que pediu para ele não fazer barulho, pois precisava dormir. Foi quando as agressões começaram. “Eu pedia socorro, eu gritava... Abria a janela e pedia socorro, mas ninguém me ouvia. Ele me deu muitos socos. Tampava a minha boca, para eu não gritar. Por três vezes quase perdi a consciência. Ele me dava pontapés, socos, batia minha cabeça na parede”, relembra a médica.
Os gritos chamaram a atenção de vizinhos, que ligaram para o salão de festas onde o cunhado de Paula estava. Ele e o amigo subiram até o apartamento e bateram na porta, mas ela foi impedida de atender. Chegou a gritar para pedir socorro, mas em vão. A médica conta que o ex-cunhado chegou a mandar mensagens no celular dela, mas que o agressor respondeu, passando-se por ela. Disse que estava tudo bem e que para eles irem embora.
" Achei que ia morrer"
“Teve uma hora em que eu desisti, achei que ele iria me matar mesmo. As agressões eram tantas que ele não parava. Tinha vez que eu achava que iria acabar, mas ele voltava. Foi assim por horas. Teve um soco que ele me deu no olho que quebrou a mão dele. Mas ele então começou a me agredir com a outra”, relata Paula Veloso. “Por fim, a mão dele ficou muito inchada. Então, ele trancou a porta, escondeu a chave, pegou meu celular e me fez deitar do lado dele da cama. Depois dormiu”, contou ela.
A médica, apavorada, conta que passou o restante da noite em claro. Quando amanheceu, ela desceu da cama e foi engatinhando para o outro lado. Abriu a escrivaninha, onde viu que o companheiro havia escondido o celular, e se escondeu no closet. Lá, mandou mensagens para a irmã e a mãe e pediu que elas fossem até o apartamento com a polícia. “Quando ele acordou, falei com ele que se fizesse alguma coisa a polícia estava lá embaixo. Ele me questionava como eu iria sair daquele jeito. A preocupação dele era essa. De todos me verem daquele jeito e de ele ser desmascarado. Então ele ficou desesperado, e eu falando para ele abrir a porta”, disse.
A PRISÃO Os policiais chegaram ao imóvel e prenderam o agressor. Paula foi levada para o hospital e depois prestou depoimento. Segundo ela, o ex ficou preso por dois dias, saiu com tornozeleira eletrônica e depois retirou o equipamento. Ela ainda mantém medidas protetivas contra ele.
O episódio de agressão que ela própria viveu, em março, e a morte da advogada Tatiane Spitzner, de 29 anos, em julho, no Paraná, foram a gota d’água para Paula decidir tomar uma atitude. Tatiane foi encontrada morta ao cair do prédio em que morava, em Guarapuava (PR). Antes, foi agredida por mais de 20 minutos pelo ex-companheiro Luís Felipe Manvalier, de 32, sem que ninguém denunciasse. A médica mineira decidiu que iria ajudar outras mulheres, para tentar evitar que outros casos continuassem se repetindo.
Foi assim que surgiu o projeto Colheres de Ouro, um perfil no Instagram criado em 8 de agosto e atualmente com 17 mil seguidores. Na rede social, são inseridas postagens de alerta para mulheres que vivem relacionamentos abusivos saberem como agir. O nome foi inspirado no ditado que prega: “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Certa de que é preciso, sim, interferir para salvar vidas, a médica faz publicações também direcionadas a pessoas que convivem ou conhecem vítimas de violência doméstica, para que saibam como agir.
Os sinais do abuso, por quem o enfrentou
Confira nas palavras da médica Paula Veloso comportamentos que indicam um relacionamento abusivo antes de qualquer agressão física
Quem é quem
“Quando a pessoa começa a falar muito mal do ex, já é um sinal. Porque se o relacionamento anterior foi tão ruim, talvez o ex não seja o único culpado. Às vezes, a pessoa quer esconder alguma coisa e se mostrar como a parte muito boa da relação”
Humilhação
“Muitas pessoas dizem: ‘Meu namorado grita muito comigo. Nunca me bate, mas grita demais, me xinga, grita palavrão’. Isso já é o abuso. Ninguém tem o direito de maltratar ninguém, de rebaixar ninguém. Humilhação é abuso, xingar, gritar não é normal”
A culpa é sua
“Observe quando a pessoa tenta transferir a culpa. Às vezes, faz algo errado, fala que se arrependeu, mas sempre tenta colocar a responsabilidade em você, indiretamente. Diz que se arrepende, mas não completamente. Algo como: ‘Eu estou errado, mas não teria feito isso se você não tivesse feito aquilo’”
Invasão
“São comuns coisas como: ‘Quem está te mandando mensagem? Deixa eu ver o celular. Se não deixar é porque tem algum problema’. Não. O celular é minha individualidade. Não deixo ver, porque você tem que confiar em mim. Simples assim"
Número de feminicídios supera o de 2017
Diariamente mulheres são vítimas de agressões. As histórias são muitas, em todas as classes, e cada vez mais resultam em morte. Um dos últimos episódios fatais ocorreu em novembro, quando uma adolescente de 17 anos e os dois filhos dela foram assassinados em Lima Duarte, na Zona da Mata. O autor confesso é Robson Carvalho da Silva, ex-companheiro, que alegou estar insatisfeito com o sogro, que queria o fim do relacionamento. Dados da Polícia Civil mostram que, somente nos primeiros nove meses deste ano, foram registrados 106 feminicídios, mais que no mesmo período de 2017, quando foram 101. Os números também se refletem no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). De janeiro a outubro, foram 32,6 mil procedimentos investigatórios de violência doméstica distribuídos para os juízes no estado, em média 4,5 por dia. No ano passado foram 4.157 os procedimentos distribuídos.
“A violência doméstica e familiar contra a mulher é um problema de saúde pública e um problema social. É uma violência com raízes no patriarcado, logo, o aumento percebido pode ser atribuído tanto a essa perspectiva histórica do machismo quanto a um processo de mudança de atitude das mulheres, que, desde a aprovação da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e a implementação de diversas políticas públicas para o enfrentamento desse fenômeno, sentiram-se mais seguras e orientadas para enfrentar o ciclo de violência que as cerca”, avalia a desembargadora Alice Birchal, da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Comsiv).
A delegada Danubia Soares Quadros, chefe da Divisão Especializada no Atendimento à Mulher, ao Idoso e à Pessoa com Deficiência (Demid) de Belo Horizonte, também acredita haver uma mudança de comportamento por parte das vítimas, e por isso, há aumento no número de denúncias. “Realmente vem aumentando, mas vai além do aumento da violência. Tivemos a alteração da Lei Maria da Penha, criando o crime de descumprimento de medidas protetivas. Então, são mais casos aportando nas delegacias. Além desse cenário, mulheres têm denunciado mais, com divulgação de campanhas”, disse. Segundo ela, a violência está inserida na sociedade como um todo. “Sempre falo que a violência doméstica é democrática: acontece em todos os níveis sociais, não somente com as mulheres com dependência financeira, mas também com as independentes”, comentou.
Para a desembargadora Alice Birchal, trata-se de algo enraizado na sociedade. “A violência contra a mulher está ligada às circunstâncias de poder tradicionalmente presentes nas relações entre homens e mulheres, em especial nas questões relacionadas à violência doméstica. É um processo histórico. Seu enfrentamento passa por uma construção social/cultural de não-violência, que demanda um trabalho de educação e prevenção”, afirmou.
Na tentativa de diminuir o número de casos de violência, segundo a desembargadora, a Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica assessora o desenvolvimento de políticas, treinamento e ações relacionados com o combate e a prevenção a esse tipo de abuso. “Entendo que educação e prevenção são instrumentos eficazes no enfrentamento à violência. Têm o condão de promover maior pacificação social, além, é claro, da celeridade e eficiência na prestação jurisdicional”, afirma.
Desde abril, a Lei Maria da Penha tornou-se mais dura para punir o agressor: caso desobedeça às ordens, a polícia é chamada e o homem pode ser preso em flagrante, sem direito a fiança. Mesmo com a rigidez, a mudança de atitude dos agressores ainda não é observada. “O homem não respeita a proibição de contato, de se aproximar. Alguns não sabem que uma simples mensagem enviada para a mulher já é um descumprimento. Acham que a lei trata somente de violência física, mas qualquer descumprimento, como se aproximar da porta da casa, do trabalho, já configura desobediência. A lei vem sendo difundida, mas os agressores não a respeitam”, alerta a delegada.