As marcas de tiros no portão da casa localizada na Rua Santa Maria, 973, no Bairro Todos os Santos, área de classe média de Montes Claros, na Região Norte de Minas Gerais, perpetuam as lembranças de um feminicídio cruel. Ali, em 16 de setembro, um domingo à noite, a dona de casa Elaine Figueiredo Lacerda, de 61 anos, foi morta a tiros pelo marido, Calcivo Deusdete de Freitas, de 61. O motivo do assassinato: o casal estava em processo de separação e Calcivo não aceitava o fim do relacionamento. Na madrugada de sábado, um homem de 25 anos foi preso em flagrante após acertar a cabeça da esposa com um banco de madeira, batê-la várias vezes no chão e ainda tentar esfaquear a vítima, de 27, que só escapou porque um vizinho a socorreu. Dois crimes que, apesar dos desfechos diferentes, convergem para um ponto em comum: o aumento da violência contra a mulher, mas também uma disposição crescente das vítimas para denunciar. De janeiro a novembro deste ano, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais distribuiu aos juízes 34.379 processos investigatórios de casos semelhantes, mais do que os relativos a crimes de trânsito. Números nunca vistos antes. O aumento foi de 727% em relação aos 4.157 processos de todo o ano passado.
Dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) mostram que os boletins de ocorrência de mulheres agredidas física, sexual ou psicologicamente subiram de 145.708, em 2016, para 146.189, no ano passado.
As mortes de mulheres provocadas por menosprezo pela condição feminina, discriminação ou por violência doméstica – o chamado feminicídio – também crescem. Dados da Polícia Civil mostram que, somente nos primeiros nove meses deste ano, foram registrados 106 feminicídios, número superior ao de igual período de 2017 (101). São mães, filhas, irmãs, cuja morte violenta enche de dor a vida de parentes e amigos. No caso de Elaine, as duas marcas de tiros no portão da casa onde o ex-companheiro ceifou a vida dela acentuam o sofrimento.
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A morte de Elaine Figueiredo Lacerda foi registrada pela câmera de vídeo do sistema de segurança de um vizinho e a filmagem divulgada nas redes sociais, o que aumentou a repercussão do crime. Durante vários dias depois do assassinato, vizinhos e amigos da vítima colocaram vasos de flores na porta da casa onde a mulher foi assassinada.
O CRIME As imagens da câmera de segurança da rua mostram que o autor foi até um Siena preto, de propriedade dele, que estava parado na porta da casa. Em seguida, pegou uma arma no porta-malas e chamou Elaine até o portão de entrada. Quando a mulher abriu o portão, Calcivo disparou várias vezes contra a vítima. Um dos tiros atingiu a cabeça da mulher, que caiu na calçada. Ela chegou a ser socorrida pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência e Emergência (Samu), mas não resistiu. “Acredito que as circunstâncias em que o crime ocorreu, tendo como vítima uma mulher, fizeram aumentar a revolta e a indignação das pessoas contra a violência praticada”, afirma o estudante Luiz Henrique Xavier, de 19, que mora em um prédio em frente à casa do casal. O estudante conta que Elaine era uma pessoa tranquila e que nunca teve problemas com a vizinhança. “Poucas horas antes do crime, ela estava passeando nas ruas aqui do bairro com um cachorrinho”, recorda-se Luiz Henrique.
IRONIA Após matar a mulher, e ao ser apresentado na delegacia, no dia seguinte, Calcivo deu uma recomendação para que “as mulheres sejam mais carinhosas com seus maridos”. “Com as outras pessoas, às vezes, as esposas são muito gentis e muito educadas, mas com o marido, às vezes, elas deixam muito a desejar.
O filho de Elaine e Calcivoque falou à reportagem contestou a insinuação do pai de algum comportamento agressivo por parte da mãe dele. “Minha mãe sempre foi uma pessoa justa e benevolente. Sempre fez doações para as outras pessoas. Por isso, a morte dela foi sentida por muita gente”, lamenta o rapaz.
CONSCIENTIZAÇÃO Embora os dados de ocorrências registradas e ações distribuídas na Justiça apontem maior disposição das vítimas para denunciar, conscientizar mulheres que são vítimas de agressões em relacionamentos abusivos ainda é uma tarefa desafiadora. “O desafio é, individualmente, cada mulher enxergar a violência, para se fortalecer e romper com esse quadro”, afirmou a promotora Patrícia Habkouk, da Promotoria de Justiça Especializada no Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de BH ao Estado de Minas, em 7 de agosto, data de aniversário da Lei Maria da Penha (veja quadro). Assim como ela, outras autoridades ligadas ao assunto advertem: é preciso quebrar o silêncio. E quanto antes, melhor.
A delegada Pollyanna Aguiar, da unidade de especializada de atendimento à mulher que recebeu o caso da agressão de sábado citada no início desta reportagem, concorda. E acrescenta: as denúncias não precisam partir necessariamente das agredidas, embora no caso da proteção prevista na Lei Maria da Penha essa participação seja necessária. Foi justamente porque um vizinho, um guarda municipal, acudiu a vítima que ela sobreviveu. “A ideia de que em briga de marido e mulher ninguém mete a colher é furada.