Eles não têm asas, mas saem voando se for preciso ajudar alguém. Não têm auréola, embora o semblante se ilumine ao chegar perto de quem precisa. Sempre com os pés na terra, se sentem nas nuvens diante de um sorriso de agradecimento ou sinal da missão cumprida. Assim são os anjos da cidade, homens e mulheres de várias gerações que, no dia a dia, demonstram atitudes que valorizam a condição humana e elevam a sagrados os atos de solidariedade. Em Belo Horizonte – acredite! – eles existem: em carne, osso e coração pulsando no ritmo da vida.
Neste dia de Natal, o Estado de Minas conta quatro histórias de mineiros que, num piscar de olhos ou ao longo de anos, expõem a nobreza de braços abertos aos semelhantes, da mente tranquila em uma hora de estresse e de nervos fortes para acalmar os aflitos. Para cada um, mais vale estender a mão do que negar a palavra ou o gesto suficiente para mudar um segundo e fortalecer a esperança – hoje e sempre.
Foi assim que, em uma noite chuvosa, de ventos devastadores, Marcos socorreu crianças em uma van escolar, depois que uma árvore caiu sobre o veículo, matando o motorista, na Avenida Nossa Senhora do Carmo, na Região Centro-Sul da capital. Ana Flávia doa seu tempo para garantir mais dignidade a pessoas soropositivas e em situação de rua, acolhidas em casa de apoio no Bairro Lagoinha, na Região Noroeste. “Anjo, eu?”, ela se pergunta, com surpresa, certa de que realiza apenas ações juntando amor pelo ser humano e trabalho.
Ninguém vive sem alegria – tanto no corpo como na alma. E por isso um grupo de homens e mulheres vestidos de palhaço leva cor e vitalidade a fim de resgatar do sofrimento de quem está na cama do hospital. Resgate também é a palavra-chave para Edson, homem para quem “amar e servir” deve ser o lema diário para resgatar aqueles que se perderam no caminho e não conseguem encontrar a saída.
Solidariedade está no DNA
Ser solidário faz parte da personalidade de Marcos Henrique de Oliveira, de 22 anos. Depois de ajudar cinco crianças e um casal a escapar do que poderia se tornar uma tragédia na Avenida Nossa Senhora do Carmo, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, quando uma árvore caiu sobre uma van escolar, o Natal do jovem socorrista ficará marcado pela paz de espírito e pela certeza de ter feito uma boa ação.
Em 6 de dezembro, uma chuva forte, acompanhada de granizo, provocou diversas ocorrências na capital, incluindo alagamentos, quedas de árvores de grande porte, falta de energia elétrica e o tradicional caos no trânsito. Na ocorrência mais grave, na Avenida Nossa Senhora do Carmo, a ação pronta de Marcos não foi capaz de salvar o motorista da van, Ranur Carneiro, mas foi decisiva para ajudar as crianças, em uma situação em que até os bombeiros – que chegaram depois – agiram com cautela, já que fios partidos de um poste representavam risco de choque elétrico. “Tenho comigo que faria aquilo em quantas oportunidades fossem possíveis, sem pensar duas vezes”, conta o morador do Bairro Flamengo, em Ribeirão das Neves, na Grande BH.
O tempo dedicado a salvar quem precisa é orgulho da família Oliveira. O irmão de Marcos, de 19 anos, tornou-se socorrista há pouco tempo.
O gesto solidário desempenhado pelo jovem, naquela noite de quinta-feira, pode se tornar um legado. Perguntado sobre o que gostaria de dizer às pessoas que ajudou a escapar, Marcos Henrique, respondeu com presteza e desembaraço: “Existe muita pessoa que é boa por natureza, mas não se importa com o próximo. Tem a oportunidade de ajudar, mas vira as costas. Se eu pudesse, falaria para aquelas crianças: ‘Ajudem sempre que puderem’”.
O sorriso como remédio
“Se vocês não estivessem ao nosso lado nesta luta, não estaríamos aqui”, disse um pai que, após amparar seu filho em 23 cirurgias durante cerca de um ano, viu a criança sair saudável de um hospital de Belo Horizonte. A mensagem emocionada tem um destinatário especial: o grupo Doutor Palhaço, sempre disposto a levar alegria a crianças e adultos hospitalizados no Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (Ipsemg).
Há oito anos, o coletivo carrega o nome da Oitava Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte, no Bairro Palmeiras, na Região Oeste, e se veste de palhaço para salvar vidas. A atividade tem uma recompensa de valor inestimável: resgatar o riso característico da infância de quem nem sempre tem motivo para sorrir. “Eu tive uma oportunidade de fazer uma oficina de palhaço. Quando vi aquilo, eu falei: ‘Nossa, tenho que fazer’. Foi uma coisa muito mágica, que não tem preço”, conta Fabrícia Andrade, de 31 anos, mais conhecida pela criançada como Boquinha.
O que parece vocação também exige dedicação, equilíbrio e preparação para suportar momentos difíceis. “Nós já nos deparamos com pacientes que ficaram cinco anos internados, mas não venceram a doença. Para dar certo, temos que estar bem com a gente mesma e saber separar as coisas quando a pessoa não resiste”, explica o coordenador do movimento, Helbert Santos, o Geleia.
O Doutor Palhaço impulsionou a criação de diversos grupos com missões altruístas. Desde outubro, o projeto foi desmembrado por decisões
administrativas e deu origem a várias outras iniciativas em cidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte, como Mateus Leme e Contagem. Integrante do coletivo, a palhaça Florisbela, interpretada por Hizilene Bastos, deixou sua mensagem de Natal aos pacientes.
Sob as asas de uma legião silenciosa Anjo não voa sozinho – deve viver em bando como os passarinhos e outros seres alados que povoam a Terra e ganham os ares na hora exata. Certo disso, o comerciante aposentado Edson Pereira de Sousa, de 72 anos, tem se devotado durante décadas a “resgatar almas” das ruas e do breu das drogas, principalmente do crack, do álcool e da solidão. Voluntário na Paróquia São José, no Centro de Belo Horizonte, e atuante na Casa Amar e Servir, ligada à diocese de Divinópolis, na Região Centro-Oeste do estado, ele é casado com a bióloga Maria Celuta, com quem compartilha o desejo solidário. Sem filhos, Edson começou a missão ao perder para as drogas um sobrinho de 19 anos, no Triângulo Mineiro. “Nosso grande objetivo, com ações diárias, é que a pessoa retorne à família”, conta.
Sempre lembrando que ninguém age sozinho, o voluntário explica que o trabalho se divide em três partes: vida, aliança e recuperação. Mas ninguém pense que é fácil desempenhar essas funções. A droga é poderosa e o melhor é não começar a usar, avisa: “Por isso, acho fundamental campanhas constantes para prevenção. O crack, então, faz um estrago tão grande que são necessários sete anos para a pessoa conseguir vencer o vício e ter uma nova vida”.
Na tarde de sexta-feira, diante do presépio montado na Igreja São José, Edson destacou a força da fé como antídoto para a degradação humana, e contou que, na Casa Amar e Servir, há psicólogos e psiquiatras envolvidos na equipe, embora a religião e o diálogo sejam os grandes esteios. “É impressionante como as pessoas choram ao relatar sua história. Conforme constatamos, 90% das pessoas em situação de rua não encontram apoio da família.” Depois do presépio, Edson caminha até o altar e, enquadrado na figura de um anjo, parece ter asas. Eles sorri e acha que há muito para ser feito, como um trabalho sério na área de segurança, políticas públicas, para evitar que os jovens caiam na sedução tóxica e no abismo da dependência. Depois da abordagem de mão dupla – tanto o grupo pode ser procurado como ajudar os necessitados nas ruas –, a equipe faz um acompanhamento com a pessoa e, dependendo do resultado, ela segue para a Casa Amar e Servir, para acolhimento durante nove meses.
Mas as asas precisam ser fortes: o número de pessoas em situação de rua que volta para casa ainda é baixo: apenas 10%, lamenta Edson. Então, quanto mais se formar um coletivo de anjos na cidade, o que seria uma “legião urbana”, melhor será o resgate.
Ouvidos para os que não têm voz
Com as unhas pintadas de azul, e necessitando urgentemente de retoque no esmalte, Simone Aparecida Evangelista passa a mão pelo rosto da enfermeira a quem considera um anjo. “Ela protege a gente. Ilumina a gente. Acarinha as pessoas que precisam”, afirma a mulher de 54 anos, acolhida na Casa de Apoio à Saúde Nossa Senhora da Conceição, com 60 pessoas, incluindo 40 soropositivas e 20 em situação de rua. Fica no Bairro Lagoinha, na Região Noroeste da capital. O “anjo”, no caso, é Ana Flávia Moreira Silva, de 31, voluntária e sempre pronta para atender a todos com voz suave, sorriso espontâneo e palavras de ternura. “Já vamos resolver essas unhas”, tranquiliza Ana Flávia, para ouvir, em seguida: “Gosto muito dela”.
Na tarde escaldante de verão, o movimento é intenso na casa de apoio vinculada à Providens Ação Social da Arquidiocese de Belo Horizonte, e está quase na hora de uma atividade que os acolhidos adoram: o bingo. Nesse dia, quem vai cantar as pedras é Ana Flávia, natural de Sete Lagoas, na Região Central, e há quase três anos atuando como voluntária no local. Com a experiência de quem passou por outras entidades de apoio (Vivher e Projeto Minha Vida), a funcionária da Fundação Hemominas levanta a autoestima da turma, penteando cabelos, cortando e pintando as unhas. Mas, principalmente, ouvindo. “Mais escuto do que falo. Eles gostam de relatar suas histórias. Tem muitos que nem sabem ler”, afirma a enfermeira, enquanto posa para a foto sob o retrato do papa Francisco, a quem considera um exemplo.
Quem olha para o semblante feliz de Ana Flávia percebe que ela já encontrou seu lugar no mundo. “Tenho um objetivo na vida: no futuro, gostaria de construir uma casa com bastante espaço e estrutura para atender mais pessoas necessitadas”, revela, com um sorriso, para, em seguida, ressaltar que concretizar um projeto assim não é fácil. Perto de começar o bingo, a enfermeira observa: “Se Deus tiver uma proposta para mim, e acredito que a gente é guiada por Ele, vou encontrar sempre alguém precisando de ajuda. E quanto mais gente colaborar, melhor, pois anjo, sozinho, não existe. Toda ajuda é bem-vinda”, acredita..