Jornal Estado de Minas

Três anos depois, ninguém foi condenado por tragédia de Mariana; processo na Justiça não tem data para julgamento



Era 5 de novembro de 2015, 40 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos de minério de ferro soterraram o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, na Região Central de Minas Gerais, e percorreram quilômetros até o mar. A tragédia provocou a morte de 19 pessoas, contaminou o Rio Doce, mudou a vida de 500 mil habitantes das mais de 40 cidades de Minas Gerais e do Espírito Santo  atingidas pelo vazamento, que se tornou o maior desastre ambiental da história do país.





Dona da barragem, a Samarco e suas controladoras – a Vale e a BHP Billiton – tratam o rompimento como acidente. O Ministério Público, como crime. Em meio à disputa judicial, muito pouco foi feito para reparar as perdas das vítimas e o estrago ao meio ambiente.

Responsável pela condução do caso em Mariana, o promotor Guilherme de Sá Meneghin lamentou a reedição de um filme que ele já viu. “O que a gente percebe, claramente, é que o Brasil não aprende com as lições da história”, diz, em entrevista ao Estado de Minas. “O que foi feito? Absolutamente nada. Não tem uma lei proibindo esse tipo de barragem, exigindo mais segurança para as barragens, nosso licenciamento ambiental continua precário. E, no outro lado, quando esses crimes ocorrem, a responsabilização das empresas e dos responsáveis é muito difícil.”

Três anos depois do desastre ambiental, ninguém foi preso. O processo envolvendo executivos da Samarco, Vale e BHP Billiton tramita na Vara Federal de Ponte Nova, ainda sem data para julgamento. Das 68 multas aplicadas por órgãos ambientais, apenas uma está sendo paga (em 59 parcelas). O impacto ambiental permanece, com a contaminação do Rio Doce. Embora tenham obtido na Justiça estadual benefícios como o aluguel de residência, auxílio financeiro mensal e assessoria técnica para começar a refazer a vida, as vítimas ainda lutam por indenização.



“Apesar de ainda não termos uma indenização final, as famílias não estão desamparadas. Mas, infelizmente, nem todas as conquistas foram replicadas na Justiça Federal para as vítimas do restante da bacia”, afirma Guilherme Meneghin, referindo-se aos moradores dos demais municípios atingidos pelos rejeitos de Mariana e cujas ações tramitam na Justiça Federal. Para o promotor, o ideal seria que a legislação brasileira trouxesse em seu texto essas garantias, de forma que fossem aplicadas a qualquer vítima de crime ambiental. Além de trazer isonomia para uma briga entre grandes empresas e moradores de áreas onde as mineradoras estão instaladas.

Mesmo quem conseguiu fechar acordos não tem a garantia de receber a indenização. O advogado Leonardo Amarante, que representa cerca de 9 mil pescadores – a maioria vinculada à federação da categoria –, que o diga. Depois de fechado o acordo entre as mineradoras e cerca de 1,5 mil profissionais, no último dia 27 de dezembro, ele foi pego de surpresa com a liminar judicial alterando as regras acertadas extrajudicialmente, o que implicará na  redução do valor da indenização. O advogado recorreu da decisão ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). A expectativa é que o recurso seja analisado na semana que vem. “Essas idas e vindas e esses retrocessos é que explicam o acidente de hoje (ontem)”, argumenta.

“RIDÍCULAS” A mineradora Samarco diz que firmou 16 acordos com parentes de vítimas – cujos valores não foram revelados. No final do ano passado, a Fundação Renova – criada a partir de um acordo entre a Samarco, a União e os estados prejudicados – contabilizava pagamento de R$ 1,2 bilhão a título de auxílios e compensações. Ainda segundo o instituto, 10.777 famílias recebem auxílio mensal de um salário mínimo, acrescido de 20% por dependente e do equivalente a uma cesta básica do Dieese.



A Renova contabilizou ainda cerca de mil obras de recuperação de infraestruturas danificadas, como casas, propriedades rurais e escolas, reconstrução de pontes, cercas, currais, poços artesianos e pinguelas, contenções de taludes e encostas. Ao todo, 141,6 quilômetros de acessos foram reformados ou passaram por manutenção e foram refeitos 205 quilômetros de cercamentos em propriedades rurais. Foram reformadas 101 residências e propriedades rurais, além de 26 comércios e 186 quintais e lotes, segundo a Renova.

Também foram reformadas praça, avenida, escola e quadra poliesportiva. Parte dos 157 mil metros cúbicos de rejeitos retirados do município foi deslocada para o Parque de Exposições para ampliação da área. Para o promotor Guilherme Meneghin, as ações ambientais executadas pela Fundação Renova até o momento foram “ridículas”.


Até quando?


“Não mudou nada, e a barragem que rompeu em Brumadinho não estava entre as de risco. Então, a gente vê que não tem segurança. Até quando? A pergunta é esta: até quando vamos perder vidas? Até quando?”, afirma Ediléia Márcia dos Santos, de 42 anos. Ela é uma das moradoras de Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana, na Região Central de Minas, arrasado pelo rompimento da Barragem de Fundão, da mineradora Samarco. “Estou me sentindo lá em Brumadinho. A gente, que viveu isso na pele, fica pensando o que pode fazer, em que pode ajudar”, diz ela. Desde que Bento Rodrigues foi destruído, há três anos e dois meses, Ediléia mora em casa alugada, com o marido e os dois filhos. Eles ainda lutam pelos seus direitos. “Ficamos brigando para que nossas casas sejam construídas e para receber indenização.”   (Flávia Ayer)

 

 


três perguntas para...






Guilherme de Sá Meneghin,
promotor de Justiça em Mariana

Depois do desastre de Mariana, como explicar mais um rompimento de barragem com rejeitos de minérios?
É lamentável que um desastre como esse, semelhante ao de Mariana, venha a ocorrer novamente. O que a gente percebe, claramente, é que o Brasil não aprende com as lições da história. Já são vários os rompimentos de barragem, não é só o de Mariana. Tivemos em Macacos, outros em Iraí, Mirandinha, isso só para falar os mais recentes em Minas Gerais. E o que foi feito? Vamos falar sobre Mariana, que foi o mais grave. Absolutamente nada. Não tem uma lei proibindo esse tipo de barragem, exigindo mais segurança para as barragens, o nosso licenciamento ambiental continua precário. E, no outro lado, quando esses crimes ocorrem, a responsabilização das empresas e dos responsáveis é muito difícil. Nossa lei é completamente insuficiente e despreparada para lidar com uma questão tão grave, o que é fruto de leniência da nossa classe política em aprovar leis que realmente protejam as pessoas e o meio ambiente desse tipo de desastre.

É essa legislação insuficiente que justifica a impunidade no caso de Mariana?
Podemos olhar sob três aspectos: penal, ambiental e civil. No penal, de fato, ninguém foi punido. O processo está tramitando na Vara Federal de Ponte Nova e, até o momento, ninguém foi preso e ninguém foi punido. Do ponto de vista ambiental, as ações que eles executaram por meio da Fundação Renova foram ridículas até o momento. Não houve uma reparação, o rio continua poluído e grande parte das margens do rio está completamente deteriorada. Do ponto de vista cível, pelo menos conseguimos nos afastar dos limites da lei, no sentido positivo. Conseguimos uma série de garantias que não estão previstas em lei e conseguimos judicialmente.

Que garantias são essas?
Por exemplo, a casa alugada, auxílio financeiro mensal, assessoria técnica, direito a inversão ao ônus da prova (possibilidade de o juiz interpretar mais favoravelmente à vítima), tudo isso foi fruto de uma ação civil pública ajuizada em Mariana e que, depois, foi em parte copiada para o restante da bacia pelo Ministério Público Federal. Teríamos que ter uma lei que pegasse todas as inovações que trouxemos e as aplicasse a todas as vítimas de desastres. Se você aplicar o Código Civil friamente a um desastre como esse, você vai tratar partes absolutamente desiguais, grandes empresas com escritórios enormes, contra uma pessoa que tinha um patrimônio pequeno e tem até dificuldade de provar esse patrimônio. A pessoa às vezes teria que esperar 10, 20, 30 anos para algum tipo de reparação.





 

análise da notícia
A reprise do descaso
Marcílio de Moraes


Quantas outras barragens terão que se romper para que acionistas, executivos, governos municipal, estadual e federal sejam responsabilizados e punidos de forma a impedir que novas tragédias se repitam? Exatos 1.176 dias depois do rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana, no maior desastre ambiental do estado, a barragem da mina Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho, se rompe,  no que  será a maior tragédia em vidas perdidas. Não houve terremoto. Não houve uma tempestade. O que rompeu a barragem na Grande BH foi o total descaso das autoridades, que continuam fazendo vistorias que atendem ao interesse das empresas – já que os “ambientalistas são xiitas” –; dos acionistas, que enxergam na maximização do lucro um fim em si, e dos executivos, que se sujeitam à pressão por resultados e repassam essa busca, por vezes insana, a todo o corpo da empresa.

Os estragos ambientais e as vidas que se perderam em Mariana e em Brumadinho, não têm volta. E não há dinheiro que pague – até porque as vítimas de Mariana não receberam a indenização devida pela mineradora –, as perdas de moradores que tiveram suas casas destruídas, de horticultores, que tiveram suas culturas perdidas total ou parcialmente, e das pousadas, que estão fechadas. Mas todas as perdas materiais viram detalhe diante do fato de haver 150 desaparecidos. É inadmissível que se possa imaginar que Minas, um estado minerador desde a sua fundação, não tenha o devido zelo com a atividade na qual sua economia se estruturou.

As empresas fazem o que está previsto na lei? Então que se mude a lei para tornar as exigências mais rigorosas. Que se obriguem os acionistas a abrir mão de parte do lucro para que as barragens ofereçam nenhum risco. Que se estabeleça a prisão de diretores e responsáveis técnicos em casos graves, como o ocorrido em Mariana e ontem em Brumadinho. Há quase 500 barragens de empresas em todo o estado. As de concreto das hidrelétricas foram construídas para não romper. Mas as das mineradoras e indústrias, não. A que ruiu ontem teve sua licença renovada há um mês. As populações que vivem na área dessas barragens – 50 delas oferecem risco – vão passar seus dias com medo e sujeitas a novos rompimentos? Definitivamente, isso não é mais admissível.