Em uma guerra, a cavalaria aérea tem entre suas missões a de suprir a necessidade de deslocamento por terrenos hostis e de difícil acesso. Na batalha pelo resgate de vítimas daquela que caminha para se consolidar como a pior tragédia humana da história da mineração no Brasil, da mesma forma têm sido fundamentais as operações com 17 helicópteros para salvar vidas e recuperar corpos desde o último dia 25, quando ocorreu o rompimento da Barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, operada pela mineradora Vale em Brumadinho, na Grande BH. Sem esses aparelhos, o custo de tempo e esforços para o transporte de socorristas, translado de restos mortais e identificação dos atingidos seria ainda maior, na avaliação de autoridades que atuam no local. Para mostrar as dificuldades e desafios que essas tripulações enfrentam, a equipe de reportagem do Estado de Minas acompanhou toda uma operação de resgate do corpo de uma vítima, embarcada em uma aeronave Pégasus da Polícia Militar de Minas Gerais que atua desde o rompimento da represa de rejeitos.
Para se ter uma ideia das dimensões da operação e da logística que ela envolve, diariamente são realizados cerca de 300 pousos e decolagens das bases na Faculdade Asa, de Brumadinho, e do Centro de Comando da Igrejinha, em Córrego do Feijão, na mesma cidade. Há oportunidades em que seis aeronaves se encontram em rotas para pouso, exigindo do comando aéreo e de pilotos extremo cuidado e perícia para evitar acidentes. Enquanto bombeiros embarcam nos aparelhos para serem lançados no mar de lama instável em que os helicópteros não podem sequer pousar, sob risco de afundar, outros içam corpos localizados por algumas das diversas equipes de socorristas ou vasculham a lama para identificar possíveis vítimas, humanas ou animais.
A bordo dos helicópteros em missão de resgate, basta que a aeronave se erga para que a mancha vermelha de minério e barro aberta entre matas, fazendas e moradias fique evidente. Circulando em alturas diferentes, tomando trajetos distintos, várias aeronaves de diferentes forças sobrevoam essa ferida aberta no Córrego do Feijão.
ENSURDECEDOR Dentro da aeronave, a comunicação só é possível por meio de fones de ouvido com microfones acoplados, devido ao ruído intenso dos rotores. As comunicações de rádio das diversas equipes mostram toda a atenção necessária em uma operação desse porte. Enquanto os pilotos informam sobre o seu deslocamento e os operadores alertam sobre outras aeronaves e obstáculos, a central de comunicações e controle determina quais os procedimentos para cada equipe, quem pousa, quem decola. Tudo simultânea e coordenadamente.
Em um pasto próximo à margem do Rio Paraopeba, perto da linha férrea da Vale e de uma estrada rural, uma multidão ao lado de alguns carros observava a operação. Outro helicóptero Pégasus estava no solo, preparando-se para resgatar restos mortais encontrados sete dias após o rompimento da Barragem B1. As duas aeronaves ganham altura e deslizam pelo ar até o meio do rio, um dos principais afluentes do Rio São Francisco, agora vermelho e assoreado pela lama. Sobre um dos bancos de rejeitos no meio do rio, dois bombeiros afundados até a alinha da cintura marcam o local da localização do corpo.
Com dificuldade, os policiais posicionam a aeronave sobre a dupla, tentando deixar a corda e a rede de carga numa posição acessível aos bombeiros. O deslocamento brusco e constante de ar das pás dos rotores arranca até poeira dos barrancos, dificultando a visão dos resgatistas em solo e sua missão. Quando os restos mortais são finalmente acomodados na rede e o helicóptero acelera para ganhar altura, os dois socorristas desabam sobre o banco de rejeitos, demonstrando o alívio da tarefa cumprida depois de um esforço extenuante.
Como ocorreu centenas de vezes isso na pequena comunidade de Córrego do Feijão, a aeronave transportando uma vítima içada aparece no horizonte, atraindo a atenção dos moradores, sobretudo daqueles que perderam amigos e familiares na região. O ponto de recolhimento foi batizado de IML, numa alusão à sigla de Instituto Médico-Legal, por ser o local formal onde a Polícia Civil recebe corpos para a identificação e outros procedimentos legais.
A aeronave não chega a tocar o solo. Apenas desarma a rede, depositando o corpo sobre uma parte do pasto. Não pode demorar, porque o deslocamento de ar de outra aeronave se aproximando já é sentido e essa turbulência pode ser perigosa para ambas. Assim que o Pégasus parte, a equipe de legistas, protegidos por um macacão vedado e com máscaras de gás, sai de uma tenda branca para recolher mais uma vítima. Naquele local, mais de 120 atingidos recuperados sem vida foram limpos e submetidos a exames e testes para reconhecimento. Aqueles que ainda não podem ser devolvidos para suas famílias são levados para caminhões frigoríficos.
Exercícios diários de perícia
Vasculhando as margens de um rio de lama com barro na altura dos joelhos, 12 resgatistas das brigadas da Associação Mineira de defesa do Ambiente (Amda) e do povoado de Casa Branca procuram por sinais de vida na região onde ficava a Pousada Nova Estância. A construção foi arrasada pelo rompimento da Barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, na Grande BH. Naquele sábado, segundo dia de buscas, um helicóptero surgiu de trás de uma curva e o piloto da aeronave Pégasus, da Polícia Militar de Minas Gerais, ao avistar o trabalho das equipes em solo, manobrou de forma rápida e precisa, deixando o helicóptero de lado.
O tripulante operacional que estava do lado externo, em pé sobre os esquis, gesticulou para que todos abandonassem os trabalhos e fugissem para o alto dos morros. Além de resgatar sobreviventes e corpos, o trabalho das tripulações das aeronaves que trabalham na Operação Brumadinho inclui o apoio direto às equipes de solo.
Antes de embarcar na aeronave, o tripulante operacional precisa fazer sua ancoragem, que consiste em prender um cabo de dentro do aparelho ao cinturão que fica atado às pernas e à cintura do militar. As cordas têm ajustes manuais simples, que permitem que o resgatista fique mais próximo à fuselagem, com a porta aberta, ou até mesmo de pé no esqui de pouso do helicóptero. “Muitas vezes, nas operações de resgate, é preciso orientar o piloto sobre a aproximação de obstáculos como fiações, antenas, torres, árvores, drones que podem estar nas proximidades e outras aeronaves”, disse o sargento Sérgio Natalino.
O militar atua há 13 anos na função e foi responsável por remover da lama e levar para o hospital Alessandra Paulista de Souza, de 42 anos, que depois se reencontrou com a irmã, Talita Cristina de Oliveira Souza, de 15. A filha dela, Laís de Souza, de 14, continua desaparecida. O resgate obrigou o militar a receber a mulher dos braços dos bombeiros enquanto o helicóptero ainda pairava.
Uma das peças mais importantes da aeronave é o rotor de cauda, que consiste em hélices que giram em orientação vertical na cauda do helicóptero, permitindo que a aeronave voe de forma estável. Caso o rotor seja danificado, o helicóptero perde o controle e começa a girar. “Nessa posição, somos os olhos do piloto. Por isso temos de conhecer o limite dos rotores de cauda e do principal, para evitar obstáculos”, conta o militar.
Não há como conversar dentro da aeronave, devido ao ruído extremamente alto do giro das pás dos rotores. Por isso, as informações e orientações que a tripulação troca precisam ser transmitidas por fones de ouvido com microfones. A outra forma é por gestos. O tripulante responsável por ficar na porta da aeronave sinaliza para indicar direções, esticando os braços, sempre fazendo referências aos ponteiros do relógio. “Quando sinalizo três horas, me refiro a algo que está à direita, seis horas, bem atrás de nós”, explica.
Os militares da tripulação que ficam na porta são também aqueles responsáveis por se comunicar com equipes de socorro em solo e com pessoas em áreas ameaçadas. “Fazemos gestos sobretudo pra alertar sobre perigos, indicando que as pessoas devem se afastar e para qual direção devem ir. Para saber se está tudo bem, uso os gestos com os polegares para o alto. Se é para acabar, sinalizo com uma das mãos sobre a outra.”
As dificuldades dos pilotos também são grandes. “É um processo muito complexo, por envolver diversas aeronaves voando simultaneamente em um mesmo local. Já enfrentamos chuvas fortes aqui, inclusive com granizo. Nesse momento, várias aeronaves faziam o sobrevoo e a nossa visibilidade ficou extremamente reduzida. Tanto o nascer quanto o pôr do sol atrapalham nossa visão. Também encontramos muita fiação nas proximidades da altura em que precisamos voar”, detalhou o major Flávio Barreto, comandante da equipe Pégasus 08.