Jornal Estado de Minas

Investigações apuram o que a cúpula da Vale sabia sobre riscos de tragédia


Não foi acidente. Pela primeira vez, a Justiça trata como crime a tragédia do rompimento da Barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. As investigações do Ministério Público indicam, além do homicídio doloso qualificado de um contingente que já chega a 166 pessoas, diversos crimes ambientais e falsidade ideológica que pode ter sido cometida por funcionários da Vale, na forma de maquiagem de dados que apontavam a fragilidade da estrutura. Ontem, oito profissionais de cargos executivos e técnicos da mineradora foram presos temporariamente, acusados de ter ciência sobre a instabilidade da barragem e não tomar providências que poderiam ter poupado vidas. As prisões, baseadas em detenções anteriores de pessoal da companhia e da consultoria Tüv Süd, além de novas provas, não chegaram ainda à cúpula da mineradora, mas caminham nessa direção.

Para chegar aos acusados e avançar na obtenção de provas, mandados de busca e apreensão foram cumpridos na sede da Vale, no Rio de Janeiro, e também em São Paulo e na Grande BH. A intenção agora é saber até que ponto dirigentes sabiam dos problemas da represa. “Temos vários elementos que demonstram de forma convincente que não foi acidente. Funcionários da Vale e da Tüv Süd (empresa de consultoria contratada pela mineradora) assumiram o risco pelo rompimento”, afirmou ontem o promotor de Justiça de Brumadinho, William Garcia Pinto Coelho, coordenador do núcleo criminal da força-tarefa que apurar a tragédia.

Os mandados de prisão pelo prazo de 30 dias e os de busca e apreensão foram expedidos pelo juiz de Brumadinho, Rodrigo Heleno Chaves, na quarta-feira.

Em Belo Horizonte, foram presos os integrantes da Gerência de Geotecnia Renzo Albieri Guimarães Carvalho, Cristina Heloísa da Silva Malheiros e Artur Bastos Ribeiro; o gerente-executivo de Geotecnia Corporativa, Alexandre de Paula Campanha; a integrante do setor de Gestão Riscos Geométricos Marilene Christina Oliveira Lopes de Assis Araújo, e os integrantes do setor de Gestão de Riscos Geotécnicos Felipe Figueiredo Rocha e Hélio Márcio Lopes da Cerqueira. Em Itabira, na Região Central, foi preso o gerente-executivo de Geotecnia Operacional, Joaquim Pedro de Toledo.

De acordo com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e a Polícia Civil, os oito presos sabiam dos riscos de ruptura e poderiam intervir, dentro de suas atribuições internas, para que a catástrofe fosse evitada. Os homens detidos foram levados para a Penitenciária Nelson Hungria, em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e as mulheres para a Estevão Pinto, na capital. Christina Malheiros e Felipe Rocha foram ouvidos na tarde de ontem. As outras oitivas ocorrerão ao longo da semana que vem. Também em BH, foram cumpridos nove mandados de busca e apreensão nas casas de funcionários da Vale e de um funcionário da consultoria. Outros quatro foram cumpridos em São Paulo e um no Rio de Janeiro, na sede da Vale.

ANTECEDENTES
Essa é a segunda fase das investigações.
As primeiras prisões ocorreram no último dia 29, quatro dias depois da tragédia, quando três funcionários da Vale e dois engenheiros da Tüv Süd, foram detidos. Os cinco foram liberados por meio de habeas corpus uma semana depois. Os depoimentos deles foram fundamentais para que o Ministério Público ouvisse outros funcionários das duas empresas e embasasse os pedidos das novas prisões. Além de mostrar que as avaliações sobre as condições da Barragem 1 estavam sendo feitas desde 2017, eles revelaram que gerentes tiveram acesso a informações relevantes sobre a possibilidade de rompimento. Foram avaliados ainda documentos técnicos, mensagens de texto e de voz, e e-mails trocados entre empregados da mineradora e da consultoria.

“Num dos e-mails, um dos representantes da Tüv Süd menciona que a Vale pressiona: ‘Vai atestar ou não a estabilidade?’. Outro menciona que contratos futuros poderiam ser barrados”, lista o promotor. Os e-mails foram coletados a partir de equipamentos recolhidos com funcionários da Tüv Süd. Segundo ele, funcionários que foram presos participaram “ativamente de um conluio” para maquiar números e esconder das autoridades e órgãos competentes do meio ambiente a real situação da represa que viria a se romper.
Por isso, as apurações seguirão adiante para ver como funcionava o fluxo de informações e de tomada de decisão dentro da Vale.

Embora tenham insistido em afirmar que é prematura qualquer afirmação sobre o conhecimento desses fatos por parte da alta cúpula da Vale, tudo leva a crer que ela está na mira das investigações. Ontem, foram três horas de busca e apreensão na sede da mineradora. Foram recolhidas atas, documentos eletrônicos e o HD do notebook que pertence à secretaria do conselho administrativo da Vale. De acordo com o promotor Leandro Wili, integrante da força-tarefa e responsável pelo cumprimento do mandado no Rio, os documentos serão analisados minuciosamente para ver se a cúpula tinha informações sobre a situação. “Vamos verificar se a questão da segurança da barragem chegou ao conselho administrativo, aos órgãos da cúpula da mineradora”, disse.

O delegado Bruno Tasca disse que a investigação é complexa e que já houve muitos avanços em pouco tempo de apuração. Para o promotor William Garcia Pinto Coelho, o cenário está claro: “A Barragem 1 se rompeu num evento que representantes da Vale insistem em dizer que foi acidente. Mas o Ministério Público e as polícias de Minas Gerais têm convicção da prática de um crime doloso e um crime de homicídio, em que diversos atores assumiram o risco de produzir centenas de mortes”.

Em nota, a Vale informou que está colaborando “plenamente com as autoridades”. “A Vale permanecerá contribuindo com as investigações para a apuração dos fatos, juntamente com o apoio incondicional às famílias atingidas.”.