Jornal Estado de Minas

'Foi a semana mais longa da minha vida': repórter do EM faz relato sobre tragédia de Brumadinho

Eliel de Freitas estava inconformado com a falta de informações sobre o pai, Eliseu de Freitas, de 51 anos - Foto: Gabriel Ronan/EM/D.A Press

 

“Para relatar os primeiros dias da tragédia, precisei superar a dor de ver uma cidade perplexa diante da destruição, mergulhada no caos e assombrada pelo descaso. Logo nas primeiras horas, quando cheguei a Brumadinho, percebi que, além de apurar e relatar os fatos, eu seria o porta-voz dos atingidos. Quando a Barragem de Fundão arrasou Mariana, eu ainda era um estudante de jornalismo. Havia acabado de entrar no meu primeiro estágio e, ao ver tamanha destruição, fiquei chocado como qualquer brasileiro. Lembro-me que soube da notícia durante um trabalho no laboratório de rádio. O operador da mesa interrompeu nossa gravação às pressas com as primeiras informações do desastre. 


Olhos assustados estão na primeira imagem que me vem à cabeça ao lembrar do dia 25 de janeiro de 2019. As expressões estavam nos rostos dos moradores da cidade e também dos militares que dividiam o curto espaço entre a entrada de Brumadinho, pela MG-040, e uma ponte sobre o Rio Paraopeba. Deparei-me, então, com o primeiro grande teste para quem é iniciante na profissão: o da abordagem.
Fazer contato e convencer as pessoas, da maneira mais delicada possível, a falar sobre a catástrofe. Um dos primeiros moradores que abordei, um homem de aproximadamente 30 anos de idade e com o sotaque marcado do Centro-Oeste do estado, não queria falar. Como grande parte da cidade, trabalhava na mineração. Temia represálias. Outro, um senhor com lágrimas nos olhos, não parava de lamentar o desaparecimento de parentes e amigos, nada mais justo. Alguns simplesmente se recusavam. Com muito custo, consegui alguns relatos para uma das primeiras reportagens que enviei para a redação.
Um grupo de mulheres me contou como a informação havia chegado até elas. Não tinham parentes diretos desaparecidos, mas temiam por um vizinho, funcionário da Vale.

 

 


No mesmo dia, fui à Faculdade Asa, que se tornaria não só a sede do comitê de crise do estado, mas também a minha 'casa' em Brumadinho. Quando cheguei, uma grande quantidade de jornalistas já se posicionava. A informação era de que somente as polícias Militar e Civil falariam, além dos bombeiros. Aguardamos ao menos duas horas ali, sentados. Por volta das 19h, a espera foi justificada: o governador Romeu Zema falaria, ao lado dos assessores. O recém-eleito chegou de helicóptero e, cerca de uma hora depois, fez um curto pronunciamento. Não pudemos perguntar, mas uma frase do governador nos chamou a atenção: 'Muito provavelmente, vamos resgatar somente corpos'.

A manchete estava ali. Ao lado dele, os assessores dos órgãos de segurança detalhavam como seriam as buscas. 

 

Fui dormir por volta das 3h, de madrugada. Tinha consciência de que, poucas horas depois, teria um enorme trabalho pela frente, mas ainda não conseguia dimensioná-lo. O sábado começou com o meu primeiro contato com a lama. Foi na comunidade rural do Tejuco, onde acompanhei o resgate dos primeiros corpos: duas pessoas engolidas pela lama da Vale localizadas ao fundo da casa de um fazendeiro. Travei ao ver os rostos desfigurados. Alguns minutos depois, entrevistei o jovem Lincoln Rocha, fazendeiro de 19 anos. A casa dele ficou completamente destruída. O garoto escapou, ao lado da madrasta e do pai, por minutos. “O nosso sustento vinha da fazenda.

Criávamos boi, porco, galinha e também pescávamos. Eu peguei um porquinho que estava no meio da lama e resgatei. O mesmo com umas galinhas. Mas a maioria já era”, contou. Ao seu lado, o pai, que não quis gravar, me deu detalhes do tsunami. “Eu pensei que era um trem. Mas percebi o chão tremendo. Aí corremos pro ponto alto”, disse.

 

As coletivas de imprensa das autoridades - Foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press 


Conversei também com horticultores e fazendeiros que perderam tudo. “Aqui saía era caminhão cheio. Agora está desse jeito aí”, lamentava Paulo Sérgio da Silva, o Paulinho, que vendia verduras para sacolões da Grande BH.

Ali, ao lado dele, chorei pela primeira vez trabalhando. Não permiti que meu entrevistado percebesse minha emoção; se ele não estava chorando, eu não tinha direito de chorar. As mensagens que não paravam de chegar no celular me chamavam ao trabalho.

O que parecia ser emoção suficiente não acabou naquele momento. Percebi uma movimentação diferente na zona quente, onde os bombeiros trabalhavam, no Tejuco. Helicópteros voavam baixo para que os militares embarcassem e deixassem o campo de trabalho. Um grupo desembarcou em um ponto alto, logo ao meu lado. A mensagem deles era que havia perigo de rompimento de uma nova barragem, desta vez de água. Pânico total. Lembro-me de uma mulher, de mais ou menos 30 anos, correndo aos prantos e se escorando em um familiar para subir um barranco e se salvar do que parecia a morte. O colega Mateus Parreiras, instalado no Córrego do Feijão, confirmou a informação. Recebi a ordem de sair imediatamente. William, o motorista que estava comigo e o repórter fotográfico Edésio Ferreira, manobrou o carro do jornal para um ponto mais alto. Minutos depois, a situação se acalmou e bombeiros retornaram ao trabalho. Segundo eles, tudo estava normal. Ainda assim, a preocupação permanecia estampada na cara de todos.


Após o susto, seguimos por uma estrada de chão até o campo de mineração da Vale. De lá, consegui ver com maiores detalhes o tamanho da mancha de lama. Gravei na memória a barragem que se rompeu. Subimos até um ponto alto para vê-la e fazer fotos que sairiam na edição do dia seguinte. Almocei e retornei à àrea das coletivas. Conversei com colegas sobre a desorganização de algumas entrevistas coletivas. Dezenas de profissionais dividiam um pequeno pedaço gramado. Cada um tentava a melhor posição para seu microfone. Depois do último boletim, me desloquei até a pousada, onde redigi as últimas reportagens para a edição impressa.

Minha apreensão aumentou na madrugada de sábado para domingo. Fui dormir por volta das 2h. Acordei três horas depois com o telefone do quarto da pousada. Involuntariamente, em razão do cansaço e da ansiedade que haviam tomado conta do meu corpo, bati o aparelho e o desliguei. Instantes depois, pensei: 'quem ligaria para este telefone no meio da madrugada?'. Logo depois, escutei o som das sirenes: risco iminente de rompimento de outra barragem. Acordei um colega, o repórter Renan Damasceno, e decidimos ligar para a recepção. A atendente aumentou nossa preocupação e nos disse que outra represa, a de água, havia rompido.

Saímos do quarto às pressas. Coloquei-me no lugar dos atingidos ao vivenciar, pela primeira vez, uma situação de risco real. Renan foi na direção das comunidades rurais, enquanto eu me instalei na Faculdade Asa para esperar informações das autoridades. Trabalhamos, naquele dia, de 6h às 23h. Em mensagens trocadas com familiares, amigos e com a minha namorada, tentava esconder o meu esgotamento.

Os horticultores Magno André Barbosa e Paulo Sérgio da Silva perderam as plantações que eram vendidas para sacolões da Grande BH - Foto: Gabriel Ronan/EM/D.A PressPerdi a conta dos textos que escrevi e das situações chocantes que me foram contadas. Em uma delas, conversei com um dos parentes de desaparecidos, Eliel de Freitas. O pai dele, Eliseu, estava sumido até então. “Uma hora ele está na lista de desaparecidos, outra hora não. Isso é injustiça demais com a gente. Estamos desesperados. Recebi mensagem de gente dizendo que meu pai tinha aparecido. Mas cadê ele? Estou aqui o dia inteiro e não vi”, contou. Eliseu está entre os óbitos identificados pelo Instituto Médico Legal (IML). Também não consigo esquecer uma mulher mais velha, que pediu para não ser entrevistada. Aos gritos e chorando muito, ela chamava pelo filho em frente ao comitê de crise. No domingo, ela estava entre os parentes que iniciaram um protesto no local. Pediam informações e a intervenção das Forças Armadas em Brumadinho. “Ele vestiu o uniforme e foi trabalhar sexta-feira. Agora, eles (autoridades) não dão uma informação correta? Meu cunhado amava a família dele. A gente não aguenta essa angústia”. Foi o que Marli Silva me disse, enquanto procurava por Ângelo Gabriel da Silva Lemos. O nome de Ângelo está na relação dos mortos identificados.

Deixei Brumadinho na noite de terça-feira, 29 de janeiro. Nunca me senti tão desgastado. Mas saí da cidade com a sensação de dever cumprido, de que narrei boas histórias e relatei os fatos da maneira mais equilibrada possível. Mais que o aprendizado, adquiri ensinamentos humanos em Brumadinho. Vi, de perto, os efeitos e as consequências de uma catástrofe. Testemunhei o que o descaso de uma grande empresa como a Vale e do poder público é capaz de causar. Eu, um jovem de classe média que nunca teve do que se queixar desde que nasceu, assisti o quanto a vida vale pouco diante de tanta irresponsabilidade e omissão. Acho que compreendi como lidar com a tragédia de quem só tem a tristeza como certeza no futuro. Falo daqueles parentes que não deixavam, por motivo nenhum, a fachada da sede do comitê de crise em busca de informações dos seus entes queridos perdidos em meio à lama.

Aquela semana se tornou a mais longa da minha vida. Na quarta-feira, encarei um novo baque e mais um desafio pela frente. Por volta das 17h, pouco antes de sair rumo à redação, recebi a notícia de que meu avô havia morrido. Carpinteiro, João Justino Filho tinha 86 anos. Enfrentou complicações, inclusive de memória e consciência, antes de nos deixar. No primeiro momento, a notícia não me abalou. Eu ainda parecia anestesiado às marés desfavoráveis que a vida sempre impõe a qualquer um de nós. Durante o velório do meu avô, parentes e amigos perguntavam sobre a cobertura do rompimento da barragem da Vale e me parabenizavam. “Eu te vi na TV”, diziam entusiasmados, como se fosse um Pulitzer. Passado um mês, penso naqueles dias como uma confirmação de que escolhi a profissão certa. Darei o meu melhor para contar histórias. Por mais duras que elas sejam.

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