“Para relatar os primeiros dias da tragédia, precisei superar a dor de ver uma cidade perplexa diante da destruição, mergulhada no caos e assombrada pelo descaso. Logo nas primeiras horas, quando cheguei a Brumadinho, percebi que, além de apurar e relatar os fatos, eu seria o porta-voz dos atingidos. Quando a Barragem de Fundão arrasou Mariana, eu ainda era um estudante de jornalismo. Havia acabado de entrar no meu primeiro estágio e, ao ver tamanha destruição, fiquei chocado como qualquer brasileiro. Lembro-me que soube da notícia durante um trabalho no laboratório de rádio. O operador da mesa interrompeu nossa gravação às pressas com as primeiras informações do desastre.
Leia Mais
Tragédia de Brumadinho está entre os piores desastres humanos do planeta'Do que a Vale matou e deixou vivo, está todo mundo sofrendo', diz sobrevivente de Brumadinho'Depois da 1ª lista de resgatados, só achamos corpos', diz bombeiro sobre BrumadinhoRepórter relata drama das primeiras 24 horas da tragédia de BrumadinhoHomenagem em BrumadinhoDiretoria executiva da Vale sabia do problema na barragem em BrumadinhoAcesso a Brumadinho fechado por mar de lama deve ser reaberto nos próximos diasJustiça indefere novo pedido de suspensão do bloqueio de R$ 1,6 bilhão da ValeTrabalho de buscas a desaparecidos em Brumadinho não tem prazo para acabar
No mesmo dia, fui à Faculdade Asa, que se tornaria não só a sede do comitê de crise do estado, mas também a minha 'casa' em Brumadinho. Quando cheguei, uma grande quantidade de jornalistas já se posicionava. A informação era de que somente as polícias Militar e Civil falariam, além dos bombeiros. Aguardamos ao menos duas horas ali, sentados. Por volta das 19h, a espera foi justificada: o governador Romeu Zema falaria, ao lado dos assessores. O recém-eleito chegou de helicóptero e, cerca de uma hora depois, fez um curto pronunciamento. Não pudemos perguntar, mas uma frase do governador nos chamou a atenção: 'Muito provavelmente, vamos resgatar somente corpos'.
Fui dormir por volta das 3h, de madrugada. Tinha consciência de que, poucas horas depois, teria um enorme trabalho pela frente, mas ainda não conseguia dimensioná-lo. O sábado começou com o meu primeiro contato com a lama. Foi na comunidade rural do Tejuco, onde acompanhei o resgate dos primeiros corpos: duas pessoas engolidas pela lama da Vale localizadas ao fundo da casa de um fazendeiro. Travei ao ver os rostos desfigurados. Alguns minutos depois, entrevistei o jovem Lincoln Rocha, fazendeiro de 19 anos. A casa dele ficou completamente destruída. O garoto escapou, ao lado da madrasta e do pai, por minutos. “O nosso sustento vinha da fazenda.
Conversei também com horticultores e fazendeiros que perderam tudo. “Aqui saía era caminhão cheio. Agora está desse jeito aí”, lamentava Paulo Sérgio da Silva, o Paulinho, que vendia verduras para sacolões da Grande BH.
O que parecia ser emoção suficiente não acabou naquele momento. Percebi uma movimentação diferente na zona quente, onde os bombeiros trabalhavam, no Tejuco. Helicópteros voavam baixo para que os militares embarcassem e deixassem o campo de trabalho. Um grupo desembarcou em um ponto alto, logo ao meu lado. A mensagem deles era que havia perigo de rompimento de uma nova barragem, desta vez de água. Pânico total. Lembro-me de uma mulher, de mais ou menos 30 anos, correndo aos prantos e se escorando em um familiar para subir um barranco e se salvar do que parecia a morte. O colega Mateus Parreiras, instalado no Córrego do Feijão, confirmou a informação. Recebi a ordem de sair imediatamente. William, o motorista que estava comigo e o repórter fotográfico Edésio Ferreira, manobrou o carro do jornal para um ponto mais alto. Minutos depois, a situação se acalmou e bombeiros retornaram ao trabalho. Segundo eles, tudo estava normal. Ainda assim, a preocupação permanecia estampada na cara de todos.
Após o susto, seguimos por uma estrada de chão até o campo de mineração da Vale. De lá, consegui ver com maiores detalhes o tamanho da mancha de lama. Gravei na memória a barragem que se rompeu. Subimos até um ponto alto para vê-la e fazer fotos que sairiam na edição do dia seguinte. Almocei e retornei à àrea das coletivas. Conversei com colegas sobre a desorganização de algumas entrevistas coletivas. Dezenas de profissionais dividiam um pequeno pedaço gramado. Cada um tentava a melhor posição para seu microfone. Depois do último boletim, me desloquei até a pousada, onde redigi as últimas reportagens para a edição impressa.
Minha apreensão aumentou na madrugada de sábado para domingo. Fui dormir por volta das 2h. Acordei três horas depois com o telefone do quarto da pousada. Involuntariamente, em razão do cansaço e da ansiedade que haviam tomado conta do meu corpo, bati o aparelho e o desliguei. Instantes depois, pensei: 'quem ligaria para este telefone no meio da madrugada?'. Logo depois, escutei o som das sirenes: risco iminente de rompimento de outra barragem. Acordei um colega, o repórter Renan Damasceno, e decidimos ligar para a recepção. A atendente aumentou nossa preocupação e nos disse que outra represa, a de água, havia rompido.
Saímos do quarto às pressas. Coloquei-me no lugar dos atingidos ao vivenciar, pela primeira vez, uma situação de risco real. Renan foi na direção das comunidades rurais, enquanto eu me instalei na Faculdade Asa para esperar informações das autoridades. Trabalhamos, naquele dia, de 6h às 23h. Em mensagens trocadas com familiares, amigos e com a minha namorada, tentava esconder o meu esgotamento.
Deixei Brumadinho na noite de terça-feira, 29 de janeiro. Nunca me senti tão desgastado. Mas saí da cidade com a sensação de dever cumprido, de que narrei boas histórias e relatei os fatos da maneira mais equilibrada possível. Mais que o aprendizado, adquiri ensinamentos humanos em Brumadinho. Vi, de perto, os efeitos e as consequências de uma catástrofe. Testemunhei o que o descaso de uma grande empresa como a Vale e do poder público é capaz de causar. Eu, um jovem de classe média que nunca teve do que se queixar desde que nasceu, assisti o quanto a vida vale pouco diante de tanta irresponsabilidade e omissão. Acho que compreendi como lidar com a tragédia de quem só tem a tristeza como certeza no futuro. Falo daqueles parentes que não deixavam, por motivo nenhum, a fachada da sede do comitê de crise em busca de informações dos seus entes queridos perdidos em meio à lama.
Aquela semana se tornou a mais longa da minha vida. Na quarta-feira, encarei um novo baque e mais um desafio pela frente. Por volta das 17h, pouco antes de sair rumo à redação, recebi a notícia de que meu avô havia morrido. Carpinteiro, João Justino Filho tinha 86 anos. Enfrentou complicações, inclusive de memória e consciência, antes de nos deixar. No primeiro momento, a notícia não me abalou. Eu ainda parecia anestesiado às marés desfavoráveis que a vida sempre impõe a qualquer um de nós. Durante o velório do meu avô, parentes e amigos perguntavam sobre a cobertura do rompimento da barragem da Vale e me parabenizavam. “Eu te vi na TV”, diziam entusiasmados, como se fosse um Pulitzer. Passado um mês, penso naqueles dias como uma confirmação de que escolhi a profissão certa. Darei o meu melhor para contar histórias. Por mais duras que elas sejam.