O mar de lama de Brumadinho arrastou vidas, mas levou também sonhos, metas, histórias. Mulheres e maridos se viram, de uma hora para outra, com a missão de falar sobre a morte a seus filhos. Avós e tios se depararam com o dever de declarar a ausência de pais e mães. A todos eles, restou o papel de explicar o inexplicável aos órfãos da tragédia. Na voz de muitas crianças, o papai ou a mamãe virou estrela. Ser pai e mãe ao mesmo tempo se tornou tarefa súbita para quem ficou com a responsabilidade da criação e educação de um número ainda desconhecido de bebês, crianças e adolescentes.
Os cachinhos dourados da cabeleira amarrada num rabo de cavalo dão ainda mais vida à risada de quem, só mergulhada no mundo da infância, consegue seguir adiante. É a princesa da casa, chegando da escola. Pouco depois, a mais velha também adentra a varanda, em uniforme escolar, com sorriso e olhar meigos, fazendo afago no pai. Cada um, à sua maneira, tentando amenizar a dor do outro pela perda do esteio da família, Lenilda, que era nutricionista no restaurante da empresa. Ela deixou duas joias: Gabriela, a mais velha, e Giovana, a caçula.
Carlos pegaria serviço às 16h no dia do desastre. Estava na casa da mãe quando uma sobrinha ligou perguntando se a barragem havia rompido. Ligou para a esposa, cujo telefone já dava desligado. E para mais dois colegas. “Menti para minha filha mais velha, dizendo que tinha conseguido falar com minha mulher. Fui por uma passagem de uma mina desativada de uma mineração vizinha e, assim, fui um dos primeiros a chegar, pouco tempo depois. Cheguei até o restaurante e não tinha mais nada. De cima da serra, pensei que houvesse sobreviventes. Precisava ir para tentar salvar alguém. Não sei como cheguei em casa. Às 22h30, voltei para lá. Ajudamos os bombeiros a tirar um corpo de dentro do ônibus. Passei a noite em claro e, às 6h, voltei com meus irmãos, mas seguranças da Vale já não deixaram mais entrar”, se recorda.
"A parte difícil foi contar para minha filha pequena. Ela me chama dizendo que quer abraçar a mãe, aí peço para ela abraçar o pai"
Carlos Diniz, técnico em eletroeletrônica da Vale, que perdeu a mulher, Lenilda, que trabalhava como nutricionista na Mina do Córrego do Feijão
“A parte difícil foi contar para minha filha pequena. Ela me chama dizendo que quer abraçar a mãe, aí peço para ela abraçar o pai”, conta. Desde que voltaram para casa, há poucos dias, os três dormem juntos na cama grande comprada recentemente, na qual Lenilda dormiu apenas cinco dias. “Minha casa ficou um vazio muito grande. Chego lá e não tenho vontade de nada”, relata. Depois da tragédia, Carlos conta que Giovana ficou mais hiperativa e com medo de tudo, até de tomar o leite sozinha. Aliás, não fica sem alguém por perto para nada. A mais velha não quis ir ao enterro. E a família achou melhor não levar a mais nova. O pai se preocupa com a saúde de Gabriela: “Não sei como isso vai afetar o psicológico dela e temo por isso. Ela é muito frágil”.
O aniversário de 15 anos de Gabriela seria comemorado numa viagem a Cancún, sonho de Lenilda e da filha. “Sofro porque perdi a mulher que amo, sofro por ver minhas filhas sofrerem, sofro porque perdi colegas de 20 anos de trabalho.”
SEM FESTA Era quinta-feira, aniversário da enfermeira Mirléia Carla da Silva Machado, de 30 anos. O marido, Ramon Júnior Pinto, de 34, tirou folga de seu posto de analista da Vale para comemorar com a mulher. No fim de semana, a festa estava programada para ser ainda maior, pois a filhinha do casal, Milena, completava 5 anos na terça-feira seguinte. Mas a festa tão esperada e vários outros planos foram interrompidos de maneira abrupta. Ramon, que deveria estar de férias desde 21 de janeiro e mudou de planos na última hora, é uma dos 186 mortos identificados na tragédia do rompimento da Barragem 1 da Mina Córrego do Feijão. “A Milena viu a movimentação estranha em casa, perguntava pelo pai que não chegava e por que não teve a festa. Dois dias depois, falei a verdade. Ela é madura, e não quis mentir para não descobrir em outra situação. Contei que a lama tinha coberto tudo e que até então não tinham encontrado o papai”, relata Mirléia.
“Agora, tenho a responsabilidade de ser pai e mãe. Serão muitas crianças assim. Minha profissão me faz ser forte, mas algumas pessoas não são. Pus o foco na minha filha, tenho que cuidar dela”, diz. A menina questiona situações do dia a dia, como quem vai dirigir o carro nas viagens, função executada por Ramon. Embora se referindo a ele no passado, se lembra do pai o tempo todo. “A gente espera que a criança chore, que peça pela presença e isso não está ocorrendo. Fico preocupada, pois pode ser que isso se reflita de outra forma no futuro”, afirma a mãe. Para as duas, domingos são os piores dias. Era agenda cheia e, agora, falta um pedaço. “O dinheiro não compra a presença de um pai. Esse vazio vai ficar com ela.”
SEM AMPARO No Tejuco, no Parque da Cachoeira, em Córrego do Feijão, não importa o bairro ou a localidade, histórias devastadoras se repetem. Bebês gêmeos perderam mãe e pai, que se conheceram na Vale. Mãe, ainda desaparecida, deixou filho de apenas 4 meses. Quarenta e um dias depois da tragédia e apesar de ter feito o registro das famílias para o recebimento das doações, a Vale ainda não sabe informar quantos são os órfãos.
Enquanto isso, famílias inteiras têm que lidar com a dor e prover o amanhã para essa quantidade de crianças que perderam o amparo e o direito de crescer ao lado de pais e mães. Na casa de César Almeida, a mãe dele, dona Conceição, perdeu quatro netos na tragédia: três homens e uma mulher, filha de César. Técnica de enfermagem, Letícia Mara Anízio de Almeida, de 28 anos, estava no refeitório da empresa quando ocorreu o rompimento da barragem. Ela deixou o marido e um filho pequeno de 1 ano e meio. O bebê fica agora aos cuidados dos pais e dos avós.
Emocionado, César, que também é funcionário da Vale há 16 anos e no dia do desastre pegaria serviço às 16h, se recorda da alegria de quando a filha entrou para a empresa, há sete meses. “Passei um rádio para meus colegas, dizendo para dar uma força para ela, que estava começando na empresa naquele dia. Foi um orgulho muito grande para mim”, diz. Agora, é cuidar do netinho que, segundo vizinhos, ainda amamentava e passou dias chamando pela mãe. “Agora ele está melhor. Já dorme à noite e está mais tranquilo.”
Cães no radar
Os cães se tornaram a peça-chave dos trabalhos de buscas em Brumadinho, que completam hoje 41 dias. Ninguém entra em campo e nenhuma máquina é ligada antes de eles darem o sinal verde. Os bombeiros de quatro patas fazem o reconhecimento do terreno e, diante de alguma indicação, o maquinário pesado é acionado para aumentar a amplitude da saída, de forma a viabilizar a entrada da equipe de resgate. Ontem, 109 militares e oito cães atuaram em 20 frentes de trabalho e contaram com 79 máquinas e um drone.