Foi emocionante perceber o quanto as pessoas podem se unir diante de uma tragédia. Montanhas de cestas básicas, kits de higiene pessoal, material de limpeza, galões de água e roupas chegaram de diversas partes do país e foram levados ao ginásio poliesportivo para ajudar moradores de Brumadinho logo depois do rompimento da Barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, da Vale. Mas, passado mais de um mês da tragédia, denúncias dão conta de fraude na destinação das doações. Grande parte desses itens continua estocado e, além de não ter tido destino adequado, estaria servindo como moeda de troca política. Voluntários de instituições públicas estaduais e municipais e moradores acusam integrantes da prefeitura de conluio com lideranças comunitárias para entregar as doações com cartas marcadas. O descontrole é tanto que até hoje nem a prefeitura nem a Vale informam quantos são os atingidos – não se sabe ainda, de fato, o número de pessoas que são vítimas direta ou indiretamente. Para piorar, a burocracia emperra a liberação dos donativos, que lotam galpões, enquanto do lado de fora muita gente passa necessidade.
“A listagem de atingidos não existia. Queriam que tudo saísse pelo beija-mão”, acusa um voluntário, que pediu anonimato. Ele é integrante do mutirão formado nos primeiros dias após a tragédia para receber e organizar as doações e prestar apoio às vítimas. A quadra do ginásio chegou a receber 800 cestas básicas, 170 mil litros de água e centenas de kits com roupas de cama. De acordo com pessoas que trabalharam na separação dos materiais, houve um verdadeiro jogo de empurra entre município, Vale e Defesa Civil para liberar os donativos. A mineradora sempre aparece nas conversas, apesar de a legislação federal prever o município como responsável pelo gerenciamento do material doado e de, no caso específico de Brumadinho, isso ter ficado a cargo da Defesa Civil do estado nos primeiros dias. A decisão foi tomada durante reunião entre a empresa, a prefeitura e o órgão estadual.
"O ginásio tinha água estragando no sol, cestas básicas empilhadas e 2 mil toneladas de roupas trancadas. Como deixam parado algo que poderiam liberar?"
Voluntário, que pediu anonimato
Segundo relatos, as primeiras liberações foram feitas graças à iniciativa dos próprios organizadores. Diante das brigas e desentendimentos, o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) da cidade foi acionado, na expectativa de não reter as doações. “O ginásio tinha água estragando no sol, cestas básicas empilhadas e 2 mil toneladas de roupas trancadas. Como deixam parado algo que poderiam liberar, já que as pessoas afetadas diretamente não estavam tão necessitadas, pelo fato de a Vale ter dado abrigo para todos?”, questiona outro voluntário, que também prefere não se identificar.
Voluntários ouvidos pelo Estado de Minas põem em xeque ainda a destinação de caixas de tênis doados por uma empresa, sacos de lingerie e até uma televisão LCD. “Há contagem de tudo: roupas, alimentação, produtos de higiene pessoal... São fardos e mais fardos que estão fechados. Esses itens foram recebidos, mas não contabilizados. Nenhum deles. A sala que estava com certos produtos, como tênis, ficou fechada. De lá não saíram”, garante. “Começamos a fazer as contas e a pressionar. Aí, nomearam a nova secretária (de Assistência Social), que tomou as rédeas. Então, o que estava ruim piorou, porque, literalmente, começaram a reter todas as doações. Nem entrava nem saía”, afirma um colaborador que acompanhou o processo.
REVOLTA Pessoas que trabalharam no ginásio contam que perderam o controle totalmente depois que as doações foram tiradas de lá e levadas para outros pontos da cidade. “Todo aquele trabalho que mais de 600 voluntários fizeram foi por água abaixo. Tudo ficou literalmente jogado. Ficamos revoltados”, diz.
São muitas as notícias de famílias inteiras que nada receberam, apesar da informação de que basta procurar a prefeitura para a retirada das doações. “O poder público deve satisfação às pessoas, pois há carretas de cestas básicas e outros itens que chegaram aqui doados por gente querendo ajudar”, cobra o voluntário ouvido pelo EM.
De acordo com a Prefeitura de Brumadinho, as doações são retiradas atualmente em três postos de atendimento montados no Parque Cachoeira, Córrego do Feijão e em Casa Branca. “Casa Branca estava muito organizado quando visitei, mas nos outros locais não havia nada. Vi um caminhão de água no Córrego do Feijão, mas não vinha da quadra, era doação de outra cidade. Perguntei aos moradores se não chegava doação da quadra. Responderam que nunca”, relata o voluntário.
DENÚNCIAS Moradores confirmam as denúncias. A motorista Michele Oliveira, de 38 anos, ficou revoltada ao ir a um posto de atendimento com uma amiga, viúva de uma vítima da tragédia, que não conseguiu retirar uma cesta básica. “Ela ainda estava arrumando toda a papelada do marido, mas disseram que para ter direito ao donativo ela deveria levar a documentação, pegar a assinatura da Defesa Civil e depois da Vale. Só então ir ao Cras para liberar”, conta. “Estavam dando três cestas para as mesmas famílias e outras ficando sem nada. Brumadinho é cidade sem lei e tudo virou politicagem. Trabalho com doação há mais de cinco anos e sei como funciona”, diz Michele.
“Enquanto as coisas estavam organizadas, por conta dos coordenadores voluntários que atuaram no ginásio, tudo caminhava. Agora, não sabemos nem onde retirar, porque levaram as cestas da quadra. O Cras é um órgão público. Tem que ter controle, sim, mas a partir do momento em que a pessoa vai lá e diz que está precisando, o marido é vítima e nem o salário recebeu, é a justificativa de que precisa. Muitas esposas não trabalham. Umas não tinham nem a senha do banco do marido. É revoltante”, completa a moradora.
As denúncias de que cestas básicas e outros itens estão sendo usados para fins políticos partem de diversas famílias. A faxineira Malvina Firmino, de 62, era dependente do filho, funcionário da Vale que morreu na tragédia, e também não teve acesso às doações concentradas pela prefeitura. “Muita gente que precisa não está recebendo. Numa ação que teve no bairro, falaram que eu não tinha direito, pois já tinha recebido, sendo que na ocasião só havia conseguido pegar material de limpeza. Estão segurando as coisas, escolhendo o que vão dar e o que não vão dar. Segurando leite e leite em pó. Estão dando para quem eles querem. No Parque Cachoeira tem muita gente reclamando”, denuncia a moradora da área do Tejuco.