Em meio ao imbróglio para entrega das doações recebidas de todo o país para ajudar os atingidos de Brumadinho, um componente perverso aparece como ponto central tanto do lado de quem denuncia irregularidades quanto de quem se defende. Para justificar a retenção, a mesma palavra aparece de um lado e de outro: política. Do ginásio poliesportivo, cestas básicas, materiais de higiene e de limpeza foram levados para o antigo prédio da prefeitura e distribuídos entre os postos de atendimento montados no Córrego do Feijão, Parque da Cachoeira e em Casa Branca. As roupas estão num colégio e na quadra restam ainda fardos de garrafas de água.
Leia Mais
Moradores e voluntários denunciam retenção e uso político de doações a BrumadinhoDepoimentos reforçam que Vale sabia dos riscos de ruptura da barragem de Brumadinho desde 2017 Famílias de desaparecidos de Brumadinho temem não encontrar parentesNúmero de mortos pelo desastre de Brumadinho chega a 200Governo quer que Vale submeta programa de integridade à CGUAssembleia arquiva projeto sobre direitos de atingidos por barragensDecretada prisão de mulheres que se passavam por vítimas da tragédia de BrumadinhoApós perseguição, homem é preso com carro clonado em BetimAtualmente, o grupo conta com cerca de 120 pessoas que se desdobram para conseguir doações e entregá-las a quem precisa. O grupo vai se transformar em associação para oferecer também esportes e treinamento para inserção da comunidade no mercado de trabalho. Em parceria com a Cruz Vermelha e outras instituições, a expectativa é oferecer cursos de qualificação, de idiomas, profissionalizantes e de informática.
O secretário municipal de Esportes e Lazer de Brumadinho, Vanilson Geada, responsável pelo ginásio, diz que há vazão para as doações, mas admite que elas “estão saindo pouco”.
Apesar de ser um dos responsáveis pela destinação das doações, o secretário não soube informar quantas pessoas são consideradas atingidas na cidade. “Se formos de casa em casa, todo mundo foi afetado direta ou indiretamente no Córrego ou no Parque, porque perdeu alguém ou trabalhava com horta. Se não for feito levantamento e dermos aleatoriamente, como prestaremos contas ao Ministério Público? Não achamos justo escolher pessoas a quem dar, mas não é o momento de tomarmos atitudes para gerar responsabilidades futuras”, diz. Geada atribui ainda a polêmica a “brigas e interesses políticos”.
CONTRADIÇÃO A Coordenadoria de Estado de Defesa Civil não tem mais responsabilidade sobre os donativos nem o número final das doações. O tenente-coronel Flávio Godinho diz que é impossível contabilizar e lembrou que o teatro da cidade ficou abarrotado com sacos de roupas.
“As pessoas doaram muitas roupas, mas, diferentemente de Mariana, que teve um número grande de desabrigados e onde roupas e pertences foram parar debaixo da lama, aqui isso não ocorreu. Por isso, as roupas estão guardadas em um colégio”, afirma, sem dizer o que será feito das vestimentas. Cristiane garante que as distribuições são registradas e acompanhadas. “Não estamos burocratizando, mas precisava ter critério. E até entender quem é vulnerável ou mais vulnerável que o outro é complicado”, afirma.
A Vale informou, por meio de nota, que as doações foram recebidas pela Defesa Civil na época do rompimento. E que apenas fez o armazenamento e a organização dos donativos.
O vice-presidente da Associação de Moradores do Parque da Cachoeira, Parque do Lago e Bairro Alberto Flores, Ademir Caricati, contradiz as denúncias e é categórico ao afirmar que nada falta – pelo menos não na sua área. “Roupas, água, cestas básicas, tudo está chegando e sendo distribuído legalmente. Tanto a Vale quanto a prefeitura estão recebendo e mandando para os moradores”, diz.
Voluntários relatam miséria e abandono
A normalidade na distribuição de donativos relatada pelo representante da Associação de Moradores do Parque da Cachoeira, Parque do Lago e Bairro Alberto Flores não se reflete na impressão que teve a publicitária Vanessa Wallner, de 44, que saiu de São Paulo num grupo de 10 pessoas em quatro carros e com um caminhão de donativos. Ela ficou quatro dias na cidade e os últimos integrantes do grupo deixaram Brumadinho no fim do mês passado. “Encontramos família com meio pacote de arroz para passar até o fim do mês. Em momento algum vi as doações que chegaram sendo entregues. Vimos apenas dois grupos de voluntários que nos pediram ajuda, porque não estão dando conta da demanda”, conta.
Ela critica o que viu na cidade. “Fiquei assustada com a miséria da população e decepcionada com a ausência do poder público. Quando achavam que éramos da Vale, as pessoas mostravam revolta. Ao verem que não éramos, choravam.
MOEDA DE TROCA A psicóloga Isabella Quadros, amiga de Vanessa, também ficou impressionada com a ausência de alimentos, água e roupas. “Rapidamente, pudemos sentir a onipresença da Vale no controle dos espaços e ações. Em nenhum momento sentimos a presença do poder público. Vimos pessoas inseguras, abaixando o tom de voz para não serem ouvidas por funcionários da Vale”, afirma. “Doações foram feitas na surdina, por medo de que os moradores sofressem qualquer tipo de sanção. O apoio e suporte à população não pode ser transformado em moeda de troca. Pudemos constatar que toda a população atingida vive um forte luto, tanto pelos entes e amigos queridos, mortos ou ainda desaparecidos, como pelo lugar em que viviam e que foi drasticamente modificado por essa tragédia sem precedentes. Difícil imaginar como essas pessoas poderão dar novos significados a suas vidas, seus empregos, sua rotina e que sintomas surgirão a partir disso tudo.”.