Em meio ao imbróglio para entrega das doações recebidas de todo o país para ajudar os atingidos de Brumadinho, um componente perverso aparece como ponto central tanto do lado de quem denuncia irregularidades quanto de quem se defende. Para justificar a retenção, a mesma palavra aparece de um lado e de outro: política. Do ginásio poliesportivo, cestas básicas, materiais de higiene e de limpeza foram levados para o antigo prédio da prefeitura e distribuídos entre os postos de atendimento montados no Córrego do Feijão, Parque da Cachoeira e em Casa Branca. As roupas estão num colégio e na quadra restam ainda fardos de garrafas de água.
Coordenador do grupo de voluntários Amigos de Brumadinho, Gabriel Parreiras, de 26 anos, critica o anúncio feito pelas autoridades pedindo para que doações não fossem mais enviadas. “Ou não tinham noção do nosso problema ou foi incompetência ou má vontade, pois está saindo mais do que entra. Cesta básica, leite e leites especiais para crianças são itens que acabam em 20 dias”, relata.
Atualmente, o grupo conta com cerca de 120 pessoas que se desdobram para conseguir doações e entregá-las a quem precisa. O grupo vai se transformar em associação para oferecer também esportes e treinamento para inserção da comunidade no mercado de trabalho. Em parceria com a Cruz Vermelha e outras instituições, a expectativa é oferecer cursos de qualificação, de idiomas, profissionalizantes e de informática.
O secretário municipal de Esportes e Lazer de Brumadinho, Vanilson Geada, responsável pelo ginásio, diz que há vazão para as doações, mas admite que elas “estão saindo pouco”. “Hoje, se tiver que vir alimentos e produtos de higiene pessoal e limpeza dá para guardar tranquilo. Para água e roupa não temos lugar”, diz. Ele alega que a necessidade de retomar as atividades esportivas e os programas voltados para crianças, jovens e idosos foi o motivo para a retirada dos materiais da quadra.
Apesar de ser um dos responsáveis pela destinação das doações, o secretário não soube informar quantas pessoas são consideradas atingidas na cidade. “Se formos de casa em casa, todo mundo foi afetado direta ou indiretamente no Córrego ou no Parque, porque perdeu alguém ou trabalhava com horta. Se não for feito levantamento e dermos aleatoriamente, como prestaremos contas ao Ministério Público? Não achamos justo escolher pessoas a quem dar, mas não é o momento de tomarmos atitudes para gerar responsabilidades futuras”, diz. Geada atribui ainda a polêmica a “brigas e interesses políticos”.
CONTRADIÇÃO A Coordenadoria de Estado de Defesa Civil não tem mais responsabilidade sobre os donativos nem o número final das doações. O tenente-coronel Flávio Godinho diz que é impossível contabilizar e lembrou que o teatro da cidade ficou abarrotado com sacos de roupas. As doações estão a cargo do Centro de Referência de Assistência Social (Cras), órgão de responsabilidade da secretária municipal de Desenvolvimento Social, Cristiane Alves Passos Nogueira. Apesar de também não ter a contabilidade de quem é vítima ou atingido indiretamente pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão, ela afirma que nos três postos de atendimento as doações devem atender de imediato a desabrigados ou a quem está em hotéis (nesse caso, com itens pontuais), além de pessoas em situação de vulnerabilidade. “Voluntários passam dados que não batem com os do município”, rebate.
“As pessoas doaram muitas roupas, mas, diferentemente de Mariana, que teve um número grande de desabrigados e onde roupas e pertences foram parar debaixo da lama, aqui isso não ocorreu. Por isso, as roupas estão guardadas em um colégio”, afirma, sem dizer o que será feito das vestimentas. Cristiane garante que as distribuições são registradas e acompanhadas. “Não estamos burocratizando, mas precisava ter critério. E até entender quem é vulnerável ou mais vulnerável que o outro é complicado”, afirma.
A Vale informou, por meio de nota, que as doações foram recebidas pela Defesa Civil na época do rompimento. E que apenas fez o armazenamento e a organização dos donativos. A mineradora acrescentou que doou 421,5 mil litros de água mineral para consumo humano e 22,2 milhões de litros de água potável para dessedentação animal e irrigação desde o rompimento da barragem.
O vice-presidente da Associação de Moradores do Parque da Cachoeira, Parque do Lago e Bairro Alberto Flores, Ademir Caricati, contradiz as denúncias e é categórico ao afirmar que nada falta – pelo menos não na sua área. “Roupas, água, cestas básicas, tudo está chegando e sendo distribuído legalmente. Tanto a Vale quanto a prefeitura estão recebendo e mandando para os moradores”, diz.
Voluntários relatam miséria e abandono
A normalidade na distribuição de donativos relatada pelo representante da Associação de Moradores do Parque da Cachoeira, Parque do Lago e Bairro Alberto Flores não se reflete na impressão que teve a publicitária Vanessa Wallner, de 44, que saiu de São Paulo num grupo de 10 pessoas em quatro carros e com um caminhão de donativos. Ela ficou quatro dias na cidade e os últimos integrantes do grupo deixaram Brumadinho no fim do mês passado. “Encontramos família com meio pacote de arroz para passar até o fim do mês. Em momento algum vi as doações que chegaram sendo entregues. Vimos apenas dois grupos de voluntários que nos pediram ajuda, porque não estão dando conta da demanda”, conta.
Ela critica o que viu na cidade. “Fiquei assustada com a miséria da população e decepcionada com a ausência do poder público. Quando achavam que éramos da Vale, as pessoas mostravam revolta. Ao verem que não éramos, choravam. Estão sendo assistidas pela própria população. O que nós perguntamos é onde estão as doações que foram feitas, pois as pessoas estão tirando dinheiro do bolso para ir de casa em casa ajudar. É muito triste ver as pessoas tão abandonadas e acuadas.”
MOEDA DE TROCA A psicóloga Isabella Quadros, amiga de Vanessa, também ficou impressionada com a ausência de alimentos, água e roupas. “Rapidamente, pudemos sentir a onipresença da Vale no controle dos espaços e ações. Em nenhum momento sentimos a presença do poder público. Vimos pessoas inseguras, abaixando o tom de voz para não serem ouvidas por funcionários da Vale”, afirma. “Doações foram feitas na surdina, por medo de que os moradores sofressem qualquer tipo de sanção. O apoio e suporte à população não pode ser transformado em moeda de troca. Pudemos constatar que toda a população atingida vive um forte luto, tanto pelos entes e amigos queridos, mortos ou ainda desaparecidos, como pelo lugar em que viviam e que foi drasticamente modificado por essa tragédia sem precedentes. Difícil imaginar como essas pessoas poderão dar novos significados a suas vidas, seus empregos, sua rotina e que sintomas surgirão a partir disso tudo.”