Jornal Estado de Minas

JOGO DE EMPURRA

Vale, auditoria e engenheiros culpam uns aos outros pela tragédia em Brumadinho


À medida em que a força-tarefa responsável pelas investigações da tragédia de Brumadinho avança rumo à hierarquia da Vale, posturas tomadas pela mineradora e por outro alvo das autoridades, a Tüv Süd, revelam que as duas empresas começam a se armar para se defenderem da investida. Na semana passada, os dois principais executivos da Vale foram ouvidos na sede da Polícia Federal, em Belo Horizonte. No cerne do inquérito está um documento-chave que reforça uma das principais teses apuradas pelo grupo de delegados, promotores e procuradores: o homicídio por dolo eventual. O Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM), ao qual o Estado de Minas teve acesso, é um dos elementos usados para comprovar que a gigante da mineração assumiu o risco dos resultados. São 73 páginas, nas quais é descrito todo o horror desencadeado em caso de rompimento da Barragem 1 da Mina Córrego do Feijão. Entre as questões, os ministérios público Federal e Estadual e a Polícia Civil querem saber a efetividade do plano, por que ele não foi acionado e se as pessoas responsáveis por ele representavam apenas uma fachada.

O PAEBM é documento obrigatório, feito pelas mineradoras para cada barragem. No caso da Barragem 1, a definição do plano está logo na introdução.
Trata-se de “documento técnico e de fácil entendimento, elaborado pelo empreendedor, no qual estão identificadas as situações de emergência em potencial da barragem, são estabelecida as ações a serem executadas nesses casos e definidos os agentes a serem notificados, com o objetivo de minimizar o risco de perdas de vidas humanas”. Este último trecho, em letras garrafais e em negrito. O plano abrange ainda um conjunto de procedimentos que têm por objetivo identificar e classificar situações que possam pôr em risco a integridade da barragem, e, a partir deste ponto, estabelecer ações necessárias para sanar as situações de emergência e desencadear o fluxo de comunicação com os diversos agentes envolvidos.

“É um documento muito importante para a investigação. Esse plano prevê os impactos do rompimento. Há previsibilidade de tudo o que a lama de rejeitos poderia pegar”, afirma um dos integrantes da força-tarefa ouvido pelo EM. “Enquanto detentor de poder para diminuir ou acabar com a possibilidade de perda de vidas, prevista em documento formal, ficam as perguntas.
Eu fiz algo? Estou assumindo o risco? Quando consegue demonstrar que não foi negligência (culposo), mas assumi o risco de isso ocorrer, temos a tese do dolo eventual”, explica.

Os 13 investigados que na semana passada voltaram a penitenciárias por ordem do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) para o término do cumprimento do da prisão temporária, e saíram novamente, por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), foram questionados sobre o PAEBM em seus depoimentos. “É uma variável importantíssima dentro da linha de investigação de homicídio por dolo eventualmente.” O dolo é apurado em duas vertentes. O primeiro é que a Vale poderia ter adotado medidas para evitar o rompimento e retomar os níveis de segurança. O segundo é que, não adotando outras providências, produziram o risco do resultado de morte.

Com o cerco aos investigados se fechando, cada lado tem demonstrado suas estratégias de defesa no desenrolar da investigação. A apuração das responsabilidades começam a tomar ares de um jogo de empurra entre os principais atores do rompimento da Mina Córrego do Feijão: a Vale e a Tüv Süd, consultoria alemã contratada pela mineradora para algumas auditorias na área de barragens. Os depoimentos prestados à Polícia Federal na semana passada, o presidente afastado Fábio Schvartsman, e o diretor-executivo de Ferrosos e Carvão, Gerd Poppinga, mostram que as investigações começam a subir na hierarquia da empresa.
Fontes informaram ao EM que a PF estaria dedicada a apurar fraudes da Vale nesse processo. 

FATOR DE SEGURANÇA
Questionada pelo Estado de Minas sobre a suspeita da força-tarefa – de que a empresa ignorou a própria recomendação de mais rigor para garantir a estabilidade de barragens –, a Vale não poupou acusações à Tüv Süd, mais precisamente aos engenheiros investigados: Makoto Namba e André Yassuda. De acordo com as apurações, depois da tragédia em Mariana, em 2015, a mineradora adotou internamente medidas mais rígidas de monitoramento de risco (fator de segurança de pelo menos 1,3). Mas, desde 2017, não teria acatado essa regra e assinado laudos de estabilidade com fator de segurança de 1,06 e, o último, de 1,09. Ainda de acordo com as investigações, substituiu várias vezes empresas que se recusaram a emitir as declarações com esses parâmetros, tendo, por fim, contratado a Tüv, que assinou a estabilidade.

A Vale informou que as questões apontadas nas auditorias vinham sendo atendidas sob a orientação das próprias empresas de consultoria. “Ao contratar uma empresa de auditoria de renome mundial, como a Tüv Süd, a Vale esperava que os auditores dessa empresa tivessem responsabilidade técnica, independência e autonomia na prestação de serviços. As alegações da Tüv Süd de terem sofrido ‘pressão’ nos levam a crer que os funcionários da própria Tüv Süd teriam adotado condutas inidôneas gravíssimas, violado o seu dever e função como auditores independentes. Indiscutivelmente, cabe ao auditor o papel de realizar um processo sistemático, documentado e independente para obter todas as evidências possíveis e avaliá-las objetivamente”, informou, em nota. Quando fala em pressão, ela se refere aos depoimentos dos engenheiros, que falaram em pressão da empresa para que assinassem o laudo. 

‘CONDUTA INDEVIDA’
Já a consultoria alemã, quando questionada, também pôs em xeque a conduta de seus funcionários. “Com o apoio de especialistas da própria empresa e externos, a Tüv Süd está investigando minuciosamente seus processos internos, bem como possíveis causas para o trágico colapso da barragem em Brumadinho. Caso essas investigações revelem qualquer conduta indevida por parte de funcionários da Tüv Süd, a empresa tomará as providências necessárias”, informou também por meio de nota.


O advogado Augusto de Arruda Botelho Neto, que defende Makoto Namba e André Yassuda, rebateu, dizendo que os laudos que declararam a estabilidade foram assinados com base em critérios técnicos e estudos aprofundado. “Não obstante o baixo índice de segurança da barragem, ela se encontrava estável no momento de assinatura da declaração, esta condicionada a uma série de recomendações e ressalvas. Cabe à Vale informar se tais recomendações foram seguidas ou não”, disse em entrevista ao EM.

Fontes ouvidas pela reportagem relataram não se espantar com a posição da Tüv Süd, classificando como resposta padrão de “assessoria internacional”. A postura da Vale é que preocupa quem acompanha o desenrolar dos fatos. “A Vale é dura. E está tentando há bastante tempo se eximir da responsabilidade”, afirmou uma fonte.

Saiba mais


O Estado de Minas elaborou algumas questões que ajudam a entender a dinâmica do Plano de Ação de Emergência e dúvidas que as investigações pretendem responder.

O QUE É O PAEBM?
» Documento obrigatório, feito pelas mineradoras para cada barragem. Trata-se de “documento técnico e de fácil entendimento, elaborado pelo empreendedor, no qual estão identificadas as situações de emergência em potencial da barragem, são estabelecida as ações a serem executadas nesses casos e definidos os agentes a serem notificados, com o objetivo de minimizar o risco de perdas de vidas humanas”. Esse último trecho, em letras garrafais e em negrito.

O PLANO APRESENTA RESPOSTA DE COMO AGIR EM CASO DE EMERGÊNCIA?
» O plano abrange ainda um conjunto de procedimentos que tem por objetivo identificar e classificar situações que possam pôr em risco a integridade da barragem, e, a partir deste ponto, estabelecer ações necessárias para sanar as situações de emergência e desencadear o fluxo de comunicação com os diversos agentes envolvidos.

HOUVE TREINAMENTO COM AS COMUNIDADES DE BRUMADINHO?
» Embora não conste no PAEBM, a Vale afirma que um simulado externo foi feito em 16 de junho de 2018, sob coordenação das Defesas Civis e com o apoio da Vale, e o treinamento interno com os funcionários em 23 de outubro de 2018.

POR QUE O PLANO NÃO FOI ACIONADO?
» Essa pergunta ficará claramente para ser respondida pelos procuradores, promotores e delegados responsáveis pelo caso. A Vale se limitou a dizer que “permanecerá contribuindo com todas as investigações para a apuração dos fatos e reitera o compromisso de reparação total dos impactos decorrentes do rompimento”.

O QUE SERÁ FEITO DAQUI PARA FRENTE EM RELAÇÃO AO PAEBM NAS OUTRAS CIDADES ONDE A VALE OPERA? OS MORADORES DESSAS OUTRAS CIDADES TAMBÉM RECEBEM OU RECEBERAM TREINAMENTO?
» A Vale afirma que intensificou as inspeções às suas barragens e que as medidas são preventivas.
Acrescenta que tem os PAEBMs de suas represas e que com a nova portaria da Agência Nacional de Mineração (ANM) em 2017, esses planos foram revisados em 2018,“passando por melhorias e novamente foram apresentados aos órgãos responsáveis”. A mineradora garante que estão sendo apresentados às comunidades em reuniões marcadas previamente.

QUE QUESTÃO SERVE COMO REFLEXÃO DESSA TRAGÉDIA?
» “Em última análise, a quem cabe a última palavra sobre o risco que deve ser tolerado? À própria empresa, à sociedade ou ao poder público?”, questiona integrante da força-tarefa ouvido pelo EM.

 

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