A dimensão da catástrofe provocada pela Vale após o rompimento da Barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, faz com que olhos do Brasil e do mundo ainda se voltem para a enorme mancha de lama, no meio da qual se mantêm buscas incansáveis por 93 desaparecidos. Mas, na véspera de a tragédia completar dois meses, chama a atenção uma outra batalha, esta silenciosa e invisível para a maioria das pessoas, travada a 35 quilômetros do local onde mais de 300 pessoas tiveram os sonhos interrompidos em questão de minutos pela avalanche de rejeitos. Salva do meio do lamaçal e internada desde 25 de janeiro, Talita Cristina Oliveira de Souza, de 15 anos, última pessoa resgatada com vida ainda hospitalizada, começa enfim a dar os primeiros passos, depois de cirurgias complexas para corrigir fraturas no quadril e no fêmur. Com apoio de um andador, a adolescente protagoniza uma verdadeira batalha pela vida, que ainda depende do tratamento contra infecções causadas por bactérias consideradas muito resistentes, segundo familiares.
Zé, como é conhecido, e Alessandra carregam outras cicatrizes ainda mais profundas do desastre, no qual perderam a filha biológica. Lays Gabrielle de Souza Soares, 14 anos, foi uma das 212 pessoas retiradas da lama sem vida. “Elas foram criadas como irmãs. A diferença de idade é de um ano. A Talita ficou muito abalada com a situação e sofre junto com a gente. Ainda chora bastante com tudo o que aconteceu”, conta o pai de Lays. A mãe dela, ainda muito abalada e traumatizada, também acompanha a recuperação da irmã, Talita, mas não consegue falar sobre o assunto.
Talita estava com a irmã Alessandra e a sobrinha Lays na casa onde as três moravam com José Antônio, dentro da fazenda onde ficava a Pousada Nova Estância, quando tudo aconteceu. A adolescente havia acabado de chegar do Norte de Minas para viver com os parentes em Córrego do Feijão. “Minha família hoje somos eu, Alessandra e Talita. Enxergo na Talita uma possibilidade de recomeço na minha vida. Ela quer viajar ao Norte de Minas para rever os colegas que tinha acabado de deixar, mas fala que onde nós estivermos quer estar junto da gente”, acrescenta Zé Antônio.
Se vê na filha adotiva uma esperança de superação, Zé também guarda na memória o brilho de Lays, considerada por ele uma estrela. “Era uma menina de ouro, uma menina de luz. Brincava que era uma estrela, e mesmo quando a estrela morre continua brilhando, nunca apaga. Então o que vou levar é esse brilho. Tudo que estava ao meu alcance eu fiz para a minha filha. Nós éramos uma família divina”, afirma.
Agora, o recomeço com a filha do coração é incerto. Afinal, a casa e a renda principal que ele e a mulher tinham estavam na Nova Estância, varrida do mapa pela onda de lama. Os donos, Márcio Mascarenhas, a esposa, Cleosane Mascarenhas, e o filho do casal, que tinha o mesmo nome do pai, também morreram. “Todo mundo fala que é para recomeçar do zero. Mas até hoje eu ainda não achei meu ponto zero. Quando encontrar, aí sim vou recomeçar”, diz ele.
Perícia e solidariedade marcaram salvamento
José Antônio Soares Pereira era o braço direito do proprietário da Pousada Nova Estância e tocava todas as questões relacionadas a obras e instalações da hospedaria, na qual sua mulher, Alessandra, também trabalhava como copeira. No dia da tragédia, ele tinha ido atender um cliente em Belo Horizonte, pois também trabalhava com a instalação de painéis de energia solar. Na casa em que morava com a mulher, com a filha, Lays, e com Talita, a onda de lama pegou cada uma das três em um ponto.Depois que a onda de rejeitos passou, a primeira a ser salva foi Alessandra, pelos dois homens considerados por Zé Antônio seus anjos da guarda. Jefferson Ferreira dos Passos e Michel Fernandes Guimarães conseguiram ajudá-la, mas ouviram os gritos de Talita e por isso retornaram à lama. Eles procuravam também pela irmã de Jefferson, Jussara, que era funcionária da Nova Estância e acabou morrendo.
Os dois conseguiram achar Talita e começaram um trabalho de resgate já com ajuda dos bombeiros. A situação da jovem era tão complexa que mais alguns minutos em meio à lama seriam decisivos para seu destino. A major Karla Lessa, uma das três pessoas a bordo do helicóptero dos bombeiros que retirou Talita da lama, conta quão complexo foi o salvamento. Quando a aeronave chegou, Talita não foi visualizada imediatamente, pois quase desaparecia em meio à lama. Foi a movimentação de Jefferson e Michel que apontou para a militar onde estava a jovem.
“A dificuldade para fazer essa operação foram os obstáculos próximos, o risco de algo tocar a aeronave, a proximidade da aeronave com quatro pessoas desembarcadas, a necessidade de manter a aeronave o mais estável possível, para que a missão pudesse ser cumprida, e a obrigação de manter a tranquilidade naquele ambiente inóspito, considerando a gravidade do quadro clínico da paciente”, conta a major. Mesmo assim, ela conduziu o Arcanjo 4 com maestria, estabilizado a centímetros da lama enquanto o subtenente Gualberto e o sargento Welerson faziam o que era possível para tirar do lamaçal Talita, que era amparada por Jeferson e Michel.
Imagens desse trabalho rodaram o mundo, registradas pelo helicóptero da TV Record. Dali, Talita seguiu para o primeiro posto montado em um campo de futebol, bem perto de onde foi resgatada, e ficou aos cuidados de uma equipe do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). A major Karla e seu time retornaram para buscar uma segunda vítima, Paloma Ferreira, que também trabalhava na pousada. Quando voltaram ao ponto de apoio, Talita e Paloma seguiram de helicóptero para o Hospital João XXIII.
Paloma já teve alta. Talita ainda se recupera, atualmente no Hospital Mater Dei, para onde foi cinco dias depois do rompimento da barragem. “Ela é uma guerreira. Desejo força para superar esse período de recuperação que ela está vivendo e que sabemos que é sofrido. Mas ela teve a oportunidade de continuar viva”, completa a major Karla, que pretende visitar a adolescente logo que ela tiver alta hospitalar.
"Eu não precisava ter perdido minha filha"
Qual é a situação clínica da Talita no momento?Ela começou a dar os primeiros passos com a ajuda de um andador, mas para voltar a andar normalmente ainda vai depender de muita fisioterapia, e isso é mais para frente. O certo é que ela está evoluindo bem, tornou-se quase da família dos funcionários do hospital e isso ajudou demais no tratamento. Mas também vai ter que tomar antibióticos por um longo período, porque pegou infecções de bactérias muito resistentes.
Você receberam amparo da Vale para lidar com essa situação?
Recebemos os valores de doação pela perda de nossa filha e pela casa que perdemos, mas a remuneração que tínhamos pelos empregos na pousada, que chegava a R$ 6 mil somando os nossos ganhos, acabou. A Vale fala em um salário mínimo por adulto e meio para a Talita, o que vai significar R$ 2,5 mil para nós, e isso não é suficiente. Eles bancaram o hotel em que ficamos hospedados. Agora estamos nos mudando para uma casa, também paga por eles, mas com uma estrutura muito abaixo da que eu tinha na minha casa. Quando pedimos algo nesse sentido, eles dizem que fizeram as doações, mas eu penso que doação é para usar do jeito que eu quiser. Fazemos ainda acompanhamento semanal com psicólogo e minha esposa também está acompanhando com um otorrino a evolução da fratura que ela teve acima do olho, por culpa deles. Temos ainda transporte para resolver essas situações.
Você acha que o rompimento da barragem foi um acidente?
Foi negligência, eles sabiam de tudo. Estiveram meses antes fazendo levantamento dos bens materiais que nós tínhamos, mas na hora não admitiam isso. Estiveram em toda aquela área da pousada antes da tragédia, e não tomaram nenhuma medida para frear esse impacto. Isso me revolta e me deixa indignado. Eu não precisava ter perdido minha filha.