Brumadinho – O gosto pela limpeza pode ter salvado a vida de Silvana Lopes, de 55 anos, casada, mãe de quatro filhos, avó cinco vezes e moradora há oito anos da comunidade de Córrego do Feijão. No dia da tragédia, a enfermeira desempregada estava prestes a seguir para Vespasiano, na Grande BH, levando a filha Larissa e os netos Rafael, de 5, Davi, de 3, e Manuella, de um ano, quando, “do nada”, pegou a vassoura e começou a varrer a casa. “Mãe, vamos logo! Onde está a chave do carro?”, perguntava ansiosa a filha, recebendo o silêncio como resposta. Poucos minutos depois, Silvana ouviu um estouro que até hoje retumba em sua cabeça: era o anúncio da tragédia que matou quase 300 pessoas.
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TRABALHO ANÔNIMO Silvana chama a atenção para o envolvimento de muitas pessoas da comunidade, gente conhecida como Sílvia, da sorveteria, Martinha e outros que, anonimamente, desempenharam seu papel noite e dia. “Sou uma missionária, então ajudo com amor”, afirma a evangélica, que estava usando, durante a entrevista, uma camisa com a frase “Jesus, ontem, hoje e sempre”.
Com a filha Manuella no colo, Larissa, de 25, encontra, hoje, uma explicação para o fato de a família não ter seguido viagem para Vespasiano a fim de visitar um bebê recém-nascido. E lança um olhar sobre o lava-jato do pai, Luciano, que é vice-presidente da associação de moradores. A associação é presidida por Eva Lúcia. “Perdi um cunhado, Rodrigo Henrique, e um grande amigo, o Wilson José.
A vontade de ajudar continua cada vez mais viva – e a família sabe que há muito para ser feito. “Se vocês subirem este caminho”, indica Silvana, “vocês vão ver a barragem lá no alto”. E, com tensão na voz, afirma que a população do Córrego do Feijão ainda não está completamente fora de perigo, “pois ainda tem lama para descer”.
São 14h de uma quarta-feira e Maria Aparecida Fernandes está ocupadíssima: dona de um salão de beleza no Bairro Parque da Cachoeira, ela atende uma cliente, ambas com histórias para contar e não esquecer sobre a tragédia que assolou Brumadinho e atingiu as partes mais baixas da comunidade, deixando casas sob a lama. Conhecida por todos e chamada de Lúcia, a baiana de 43 anos, casada, recorda o dia 25 de janeiro, pouco depois do meio-dia. “Estávamos em casa, almoçando, quando ouvi o barulho. Pensei que fosse uma tempestade.”
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De repente, conta Lúcia, chegou a notícia de que a barragem da mina do Córrego do Feijão tinha rompido. “Ficamos em pânico, pois meu pai e minha mãe estavam do outro lado do Rio Paraopeba.
COZINHA IMPROVISADA Com a energia restaurada, Lúcia reuniu a família a fim de que fossem recolhidos mantimentos, roupas, o que fosse possível para ajudar os necessitados. “É difícil a gente encontrar quem não tenha perdido um parente, um vizinho, um amigo nessa catástrofe. E as cenas eram terríveis. Vimos um rapaz todo enlameado andando pela rua, aí o levamos para casa, onde ele tomou banho e trocou de roupa”. O passo seguinte, conta Lúcia, foi pedir à direção da associação de moradores para abrir a sede. “Não tinha nada lá, então juntamos panelas a fim de cozinhar para os bombeiros, os voluntários e o povo sem casa”.
Num dia, com a tensão ainda nas alturas, apareceram 14 bombeiros sem almoço. Na panela, havia apenas um resto de arroz, até a farofa tinha acabado.
Lembrando que tudo brotou de forma espontânea, sem vínculos com a associação ou igrejas, Lúcia lembra que abrigou muito gente em sua casa. “Meu marido e eu ficamos num quarto e, no outro, dormiram até 10 pessoas. Não me pergunte como. Sei que a força veio do abraço de cada criança.”
O lema dos escoteiros – “Sempre alerta” – nunca abandonou João Marcos Moreira, de 22 anos, morador de Brumadinho. Estudante de engenharia civil e microempreendedor individual, ele foi “de um extremo a outro” em 25 de janeiro, uma sexta-feira, quando a cidade estremeceu sob o peso do rompimento da barragem do Córrego do Feijão. “Estava em casa, tranquilo, de férias da faculdade.
No dia seguinte, abalado pela catástrofe, João Marcos, caçula de três irmãos, não titubeou: “Não adiantava nada ficar lamentando dentro do quarto. O melhor mesmo era ajudar”. Assim, foi espontaneamente à quadra de esportes, a dois quarteirões de sua casa, e começou a colaborar como voluntário na organização dos alimentos que chegavam de todo canto. “Além de ter sido escoteiro, o que valeu 50% nesse período de um mês, já trabalhei em supermercado e conheço bem aqui, pois treinei com o Beto da Quadra”, conta o rapaz diante do espaço agora vazio que acumulou montanhas de garrafas de água mineral.
Na área da quadra chamada de tatame, João acabou se tornando um coordenador informal de serviço. “O tempo todo, o pessoal dizia assim: ‘Pergunta aí pro João’ ou ‘o João sabe o que é’. Com isso, fui compreendendo que, naquele momento, o fundamental mesmo era o espírito de solidariedade e união”. Certamente, por isso, explica o jovem voluntário, “não sofri a ponto de chorar nos cinco velórios aos quais estive presente.” Ele revela que perdeu um primo de primeiro grau e um colega da faculdade “querido de todos.”
As duas primeiras semanas foram as mais difíceis para os voluntários, recorda João Marcos, mas depois o trabalho ganhou dinâmica graças à roda da solidariedade. “Acho que minha formação católica ajudou, mas o espírito de cooperação falou alto em todos os momentos. Sempre penso que esses dias foram fagulhas que iluminaram nossas vidas. Por isso mesmo, acredito que a humanidade tem salvação”.
Certo de que os voluntários se transformaram – “essa tragédia mudou vidas” –, João Marcos lembra que ‘a ficha’ demorou muito para cair. “Estou tranquilo, mas com lembranças”, resume, ao lançar o olhar para o lugar onde pôde ajudar quem sofreu tanto. Com um sorriso confiante, afirma que se sentiu “muito bem em ajudar”.