Jornal Estado de Minas

Mulheres são impedidas de acompanhar filhas no Hospital Infantil João Paulo II

'Deram a entender que podemos perder a guarda de nossa filha', diz pai - Foto: Leandro Couri/EM/DA Press

Elas entraram pela porta da frente, passaram longas noites de preocupação ao lado das filhas, que por coincidência têm o mesmo nome, e depois de meses de vigília, foram simplesmente expulsas do Hospital Infantil João Paulo II, na Região Hospitalar, em Belo Horizonte. As histórias de batalha pela cura da revisora C.R.F.C., de 25 anos, de Astolfo Dutra, na Zona da Mata, e da dona de casa Alcione Sousa Pereira Silva, de 27, de Águas Formosas, nos vales do Jequitinhonha/Mucuri, se cruzaram na enfermaria, onde foram obrigadas a deixar, sozinhas, as filhas de 6 e de 3 anos, respectivamente. C. teve a sentença de separação decretada pelo hospital há nove dias. Já Alcione teve de sair ontem, brigando para ao menos ter o direito ao beijo de despedida. Administração de medicamento de alto custo engrossa a lista de controvérsias na unidade de saúde.

Eram 10h de ontem quando Alcione Sousa Pereira Silva foi chamada por assistente social, uma enfermeira e uma psicóloga. “Falaram que eu precisava sair, porque estava maltratando a minha filha.
Perguntei à assistente se tinha medida judicial e ela respondeu que para ela isso custava apenas cinco segundos”, contou aos prantos. Alcione driblou a segurança para subir e conseguir se despedir de sua filha. A menina, de 3 anos, ficou sozinha até a chegada do pai. “Ele vai ficar com ela, mas não sei como faremos, pois ele pode perder o emprego. Não sei o que isso significa. Nunca maltratei minha menina.”

A decisão surpreendeu a mãe. Na semana passada, ela foi avisada de que a medida poderia ser tomada por estar atrapalhando o tratamento da filha.
“Interfiro quando ela não quer comer, sim, pois não a forço. E seguro a boquinha dela quando tem crises de convulsão, pois está com o lábio todo cortado”, afirma. Na última terça, em reunião para selar o destino das duas, foi dada trégua: “Falaram que eu não ia sair e que eles estavam fazendo um trato de confiança comigo. Agora, fazem isso”.

Pouco depois das 17h da quarta-feira da semana passada,  C., companheira de enfermaria de Alcione, foi chamada por uma equipe do hospital. Com medida judicial em mãos, profissionais explicavam que aquelas duas linhas digitadas pelo juiz da Vara da Infância e Juventude davam conta de que, a partir daquele momento, ela estava impedida de acompanhar e mesmo visitar a filha, de 6. “Fui tirada de lá pelos seguranças. Não pude subir para me despedir da minha filha nem pegar meus pertences”, conta.
A garotinha está sozinha, sem acompanhantes, desde então. A mãe chamou a polícia, que diante da ordem judicial nada fez. “O policial me disse que se tivesse provas de que eu maltrato a menina, sairia de lá presa, não teria nem conversa.”

C. não entende o motivo da separação. “Estão me acusando de atrapalhar o tratamento e de ter dado remédio anticonvulsivo a ela. Falam que por minha causa não conseguem fechar o diagnóstico”, afirma. Esse é um duro golpe numa via-sacra que vem desde setembro , quando a criança foi internada em Cataguases, próximo a Astolfo Dutra. De lá, foi transferida para o Centro de Terapia Intensiva (CTI) do Hospital Regional João Penido, em Juiz de Fora. Chegou a BH em 23 de janeiro. A transferência ocorreu a pedido da unidade de Juiz de Fora, por causa de suspeita de uma doença para a qual era preciso investigação com geneticista, especialidade não disponível no hospital da Zona da Mata, segundo relatório médico de 16 de janeiro.




A menina teve infecção hospitalar, pneumonia, precisou ser entubada, fez traqueostomia e várias transfusões de sangue nesse período. “No último dia 31, minha filha estava com 6,5 de hemoglobina. Questionei por que não faziam a transfusão de uma vez. Responderam que não fariam. Na terça-feira, dois dias depois, outro hemograma acusou 4,2. Nesse intervalo, ficou mole e prostrada. A transfusão foi feita na quarta de madrugada e, pela manhã, ela estava melhor. Logo depois, me expulsaram”, relata.

“Fui humilhada, retirada por segurança. Meu nome está em todas as portarias para eu não entrar no hospital.
Alegam que não conseguem fechar o tratamento por minha causa e que fizeram vários exames, o que não é verdade, pois a maioria foi feita em Juiz de Fora”, diz. “Tenho foto e vídeo de quando estava com a menina, que estava bem e feliz. E tenho o mesmo de como ela está triste agora.”

“Erraram a evolução dela duas vezes. Puseram no prontuário que ela teve convulsão e febre, mas era a outra menina (que tem o mesmo nome de sua filha). Nem por causa disso fui procurar a Justiça. Quem me garante que esse foi o único erro?”, questiona. C. diz que se em algum momento a tivessem avisado que ficar em casa melhoraria o quadro da filha, teria aceitado. “O hospital tinha que sentar comigo e não fazer reunião pelas minhas costas e decidir sozinho”, reclama. “Perguntei à médica que fez a determinação se ela tem filhos e ela disse que não. Aí respondi: ‘Então você não tem ideia do que eu estou passando’”. 

DIAGNÓSTICO
O diretor do Hospital Infantil João Paulo II, Luís Fernando Andrade de Carvalho, diz que a menina chegou de Juiz de Fora sem diagnóstico e, depois de ampla investigação, as principais causas de doenças foram afastadas. Segundo ele, a medida judicial foi tomada depois de constatado que a menina não tem doença alguma e que, na verdade, quem tem problemas de saúde é a mãe da criança. Ela teria, segundo os médicos, síndrome de Munchausen por procuração (quando algum ente familiar provoca alguma doença na criança). “A mãe induz o filho a ficar doente para ganho secundário, que pode ser chamar a atenção, por exemplo”, explica.

“Ela dá medicação para a criança. Na presença da mãe, a menina apresenta sinais de intoxicação (vomita, entra em coma). Quando não está com ela, melhora”, diz. Quando questionado se exames indicam a intoxicação ou se há comprovação de que a mãe medica a menina, o diretor afirmou que não há provas e que tal situação teria que ser vista ou filmada. “A menina não admite que isso ocorre.”

A assessoria de imprensa da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), responsável pelo Hospital João Paulo II, informou que a criança não está sozinha e que, na segunda-feira, um carro do hospital João Paulo II teria buscado o pai, que ficaria como acompanhante. Mas o mergulhador C.A.B.S., de 31, saiu de Astolfo Dutra naquele dia à 1h30, em veículo da prefeitura, para chegar a Belo Horizonte pela manhã e visitar a filha. “Não posso ficar, porque trabalho e sustento a casa. Não temos familiar que possa vir nem condições de pagar um serviço de acompanhante”, disse. 



MEDO
O serviço social alegou que o problema é a mãe. “Daqui a duas semanas vão averiguar se minha filha vai melhorar e, se isso ocorrer, vão fechar o diagnóstico de que é minha esposa. Deram a entender que podemos perder a guarda de nossa filha. Estou desesperado”, contou. “Falaram que ela está melhor agora, mas creio que é por causa da transfusão feita na semana passada, em decorrência da anemia. É natural que a menina tenha melhorado”, relatou. O processo corre em segredo de Justiça. De acordo com o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a decisão da separação foi tomada a pedido do hospital com base em relatório de duas médicas para preservar integridade da criança.

Falta de remédio


Não foi só o medo da separação que tirou o sono de Alcione Sousa Pereira Silva. Um medicamento de alto custo de que a filhinha de apenas 3 precisa se tornou um verdadeiro jogo de empurra. Moradora de Águas Formosas, nos Vales do Jequitinhonha/Mucuri, ela foi em estado grave para o CTI, em novembro, e transferida para o Hospital Infantil João Paulo II em janeiro, com duas paradas cardíacas e atrofia do cérebro. Com o pedido médico para imunoglobulina em mãos, por causa do diagnóstico de imunodeficiência com predominância de defeitos de anticorpos, ela foi três vezes à Farmácia de Minas, o órgão do governo estadual que distribui os remédios – todas as vezes o pedido foi negado. A menina tinha tomado uma dose do remédio e precisava receber a segunda na quarta-feira da semana passada, de acordo com a mãe. Mas só conseguiu outra infusão na última segunda-feira.

O entrave estaria no Código Internacional de Doenças (CID). Na lista da Secretaria de Estado de Saúde (SES) constam 10 números, nenhum correspondente ao que o médico do hospital infantil prescreveu para a doença da garota. “Eu voltava, falava com o médico, refazia o relatório e eles não aceitavam. As mães de outras crianças fizeram vaquinha para eu conseguir ir até a farmácia batalhar por esse medicamento, pois não tenho dinheiro nem para isso”, relata. No relatório da Farmácia de Minas entregue a Alcione consta que “o medicamento solicitado não está contemplado no componente especializado da assistência farmacêutica do Ministério da Saúde” para o tratamento da doença da menina. “Minha filha está internada no hospital e ele deveria fornecer o medicamento, não eu ter que correr atrás. O que me falaram é que tem o remédio, mas, como é de alto custo, tenho que repor. Isso é um absurdo”, conta Alcione.

O diretor do hospital, Luís Fernando Andrade de Carvalho, afirmou ao Estado de Minas, em entrevista na segunda-feira, que a equipe médica havia definido que a menina não precisava de uma segunda infusão de imunoglobulina. Acrescentou que a paciente ainda estava sem diagnóstico e que foi pedido à mãe apenas para preencher a documentação para cadastro na Farmácia de Minas. “Para esse cadastro é o próprio paciente ou responsável que entra com a documentação. O estado fornece para a família. Quando não tem, infunde a nossa (imunoglobulina)”, afirma. Ele acrescentou que havia uma programação para a criança receber a medicação por seis meses, quando estivesse de alta, por isso, a necessidade de se cadastrar.



No entanto, o último relatório médico para imunoglobulina, emitido na sexta-feira da semana passada, às 14h25, relata que é orientada “a administração de imunoglobulina humana venosa a cada 21 dias devido a essa deficiência de linfócitos B”. São pedidos dois frascos por mês, durante três meses. O documento ressalta ainda que a primeira dose foi administrada no dia 11 do mês passado. A conclusão é clara: “Solicito imunoglobulina humana 600mg/kg/dose (10g/dose), a ser administrada a cada 21 dias, por tempo indeterminado neste momento, em caráter de urgência”.

Se em poucas horas a opinião dos médicos mudou, logo depois da entrevista houve novo revés. A garotinha recebeu a imunoglobulina na segunda à tarde mesmo. “E sem eu precisar ir à Farmácia de Minas. Amanhã (hoje), volto lá, pois minha filha está em via de receber alta. O hospital mudou o CID da doença dela”, contou Alcione. Luís Fernando Carvalho garantiu que o hospital fez contato com a farmácia para resolver a situação e que ainda estava em discussão se a criança receberia ou não o tratamento. O médico afirma ainda que toda medicação é dada pelo hospital.

Quanto à possibilidade de Alcione também ser impedida de acompanhar a filha, Luís Fernando Andrade de Carvalho afirmou na ocasião que não tinha informação sobre o afastamento. “Ela pode ter interpretado errado ou está assustada com o caso da outra mãe”, comentou.

Especialista aponta erro no afastamento


 

O advogado José Antônio Guimarães Fraga, especialista em direito de saúde, questiona a conduta do hospital. “Como o Estado não tem dinheiro para bancar esses medicamentos de alto custo, num passe de mágica fala que não vai mais precisar. Mas tem que preencher a papelada? Está errado isso. Essa é uma conduta antijurídica e está no código de ética médico. Nenhum médico pode interferir no diagnóstico, exceto diante de uma junta médica ou se for para um tratamento mais benéfico”, explica.

O que mais preocupa, segundo ele, é a expulsão das mães. “Uma mãe só perde a guarda de um filho diante de algo muito grave. E, quando isso ocorre, é constituído um tutor. Essa decisão está errada”, diz. Segundo Fraga, as duas mães devem reivindicar seus direitos na Justiça. “A filha está desassistida e não temos um tutor. Como uma criança internada fica sem ninguém a olhar por ela?”, questiona. Pela lei, pai e mãe têm o direito e o dever de acompanhar o filho. Diante de alguma impossibilidade de um ou de ambos, a responsabilidade é do tutor.

Ele diz que, se a mãe tem um problema de ordem psiquiátrica e não tem condição de cuidar, isso deveria ter sido conversado antecipadamente com o marido e pai da criança, para a tomada de medidas cabíveis. Lembra ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente, define, entre outros, o direito de a criança e o adolescente terem um desenvolvimento sadio e harmonioso, bem como de serem criados e educados no seio de sua família. “Toda regra, contudo, comporta exceções. Havendo um justo motivo poderá haver a suspensão, perda ou extinção do poder familiar ou pátrio poder. Nesse caso, o juiz confiará os cuidados da criança ou adolescente a um tutor e/ou a uma casa de acolhimento”, explica.

O advogado ressalta que em situações como essas os pais devem ser ouvidos e podem apresentar defesa, devendo o juiz, nesse caso, determinar que se faça estudo psicossocial (assistente social e psicólogo) da família, sendo possível, inclusive, perícia médica.

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