Jornal Estado de Minas

Relíquia barroca de quatro toneladas volta para Minas depois de décadas


Portas se abrem para a preservação da memória, enquanto um ciclo de quase meio século se fecha com aplausos da comunidade e dos defensores do patrimônio cultural. Uma longa história termina hoje, em São João del-Rei, nos Campos das Vertentes, com a bênção do pároco da Catedral Basílica Nossa Senhora do Pilar, padre Geraldo Magela da Silva. Logo após a tradicional cerimônia do lava-pés, às 21h30, será apresentada a portada de pedra-sabão, com mais de 4 toneladas, que pertenceu à antiga Igreja Bom Jesus de Matosinhos, joia do século 18 demolida em 1970. Depois de retornar em março, de Campinas (SP), onde ficou por décadas ornamentando uma fazenda e foi localizada numa revista de decoração, a peça (moldura da porta principal de igreja) foi alvo de polêmicas na cidade até finalmente ser integrada ao acervo do Museu de Arte Sacra de São João del-Rei.


“Graças a Deus, a questão está resolvida, com o empenho do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e Ministério Público Federal em parceria com o Museu de Arte Sacra”, diz o padre Geraldo Magela. Com 4,91 metros de altura, 3,22 metros de largura e 47 centímetros de profundidade, o pórtico ficará ao ar livre, no equipamento da diocese, na Praça Embaixador Gastão da Cunha, nº 8, no Centro Histórico. A “inauguração” do monumento ocorre na semana santa, quando a cidade, distante 185 quilômetros de Belo Horizonte, recebe grande número de visitantes e oferece programação religiosa e cultural. (veja o quadro)


“A portada vai ficar no jardim do Museu de Arte Sacra. Estamos muito felizes com o resgate de um bem da cidade”, orgulha-se padre Geraldo Magela, diretor da instituição.

Ele conta que em 1970, quando a peça foi vendida aos paulistas, embora pertencente a um templo barroco de 1774 tombado pelo Iphan, ‘o monsenhor Sebastião Raimundo de Paiva, já falecido, então titular da catedral, ofereceu 4 mil cruzeiros (dinheiro da época) para que o pórtico permanecesse aqui, mas a família de Campinas ofereceu 5 mil cruzeiros.” E acrescenta: “O sonho do monsenhor Paiva era levá-la para o Museu de Arte Sacra, o que ocorre agora, com todos os custos, de transporte e montagem, pagos pela família de Campinas.”

Melhor lugar


O local de instalação da portada se tornou alvo de debate em São João del-Rei, tão logo a Justiça determinou o retorno em 2014. Para tanto, houve audiência pública, conforme mostrou o Estado de Minas na edição de 5 de abril daquele ano. As opiniões se dividiram, uns achando que a portada deveria ficar na Igreja Bom Jesus de Matosinhos, que já havia sido reconstruída, outros apontando o Museu Regional como melhor destino. A proposta do Iphan, que enviou representante à reunião, era que ficasse num museu, enquanto o parecer do Ministério Público Federal indicava o templo de onde fora retirada.

Depois da localização da portada, os ministérios públicos Federal e Estadual, via Coordenadoria das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC/MPMG), ajuizaram ação pleiteando o reconhecimento de que a peça pertenceria ao acervo tombado de São João del-Rei. Durante a ação, foi feito acordo judicial em que os proprietários concordaram com a devolução do bem até que, em julho de 2012, a Justiça Federal homologou o acordo, determinando o retorno da peça ao município.


“O melhor lugar, mesmo, seria um: que a portada nunca tivesse saído da Igreja Bom Jesus de Matosinhos, que foi demolida num piscar de olhos”, diz a superintendente do Iphan em Minas, Célia Corsino. “A partir do momento em que a portada foi retirada da igreja, perdeu suas referências de arquitetura para se tornar um objeto museológico”, afirmou a superintendente, lembrando que um ponto principal era a segurança do bem. “Estamos muito felizes com esse retorno.

Todo o processo foi acompanhado pela equipe do Iphan, com destaque para o especialista do escritório técnico de Tiradentes (Campos das Vertentes), Olinto Rodrigues dos Santos Filho.”

Operação


Com 45 anos de profissão, o restaurador Adriano Ramos, do Grupo Oficina de Restauro, foi o responsável, com sua equipe, para retirar a portada da fazenda em Campinas, embalar as peças e depois remontar em São João del-Rei. “Numa tive uma experiência assim em toda minha vida. Foi importante e nobre. Qualquer erro de cálculo poderia ser fatal e a peça cair e se quebrar. Exigiu atenção, esforço físico e delicadeza, pois a portada é formada por 13 peças de vários tamanhos, incluindo duas pilastras”, conta Adriano, que, esteve na cidade paulista de 8 a 12 de março para o serviço.


Na retirada, já que havia uma parte concretada na base, a equipe de Adriano Ramos contou com um caminhão munck. Depois, cada parte foi embalada, revestida com isopor para ser transportada até São João del-Rei. “Foi outra logística, com cuidado dobrado, com uso de paleteiras para carregar até o jardim do Museu de Arte Sacra e até carrinhos de rolimã que fizemos especialmente para fazer as peças deslizarem com segurança. A operação para erguer o monumento de pedra-sabão foi concluído em 8 de abril e, até na tarde de terça-feira, Ramos ficou no local para verificar se, com chuva, poderia haver alguma alteração na base.” Para garantir a proteção, o Iphan providenciou uma cantoneira em aço inox, com projeto do engenheiro Luiz Mauro.

“Faço agradecimento especial aos sineiros, que nos ajudaram muito”, destaca.

Localização com prova impressa


Em setembro de 2008, o EM mostrou a moldura que ficava na entrada da Fazenda São Martinho da Esperança, em Campinas (SP). A localização foi possível graças a uma revista de decoração – nas páginas de uma antiga edição sobre casas de fazenda, integrantes da CPPC/MPMG identificaram a peça em pedra-sabão, do século 18, que pertencia à igreja de São João del-Rei demolida em 1970. A prova impressa na revista motivou os promotores a ingressar com ação civil pública pedindo a reintegração da relíquia à cidade de origem e proibindo a retirada da portada da fazenda, até o fim do processo. Se os proprietários vendessem a peça antes do julgamento, estariam sujeitos a multa de R$ 100 mil.


Na época, em entrevista, o presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei (IHG), José Antônio de Ávila Sacramento, comemorou: “É uma importante vitória da luta contra o esquecimento e pela memória. Se a portada voltar para São João, estamos reparando 38 anos depois um grave crime cometido contra a cidade.” A briga pela portada foi uma das motivações para a criação do IHG meses antes da demolição. Conforme a reportagem, “mesmo tombada pelo Iphan, a igreja foi destruída a mando do padre Jacinto Lovato (já falecido) que comercializou toras de madeira, retábulo e ornatos de pedra do templo, para arrecadar fundos e construir novo prédio”.


“A igreja foi demolida em uma época em que não havia preocupação em preservar o patrimônio. Ela não tinha o charme das igrejas do Centro, mais tradicionais”, explicou, também na época, o promotor e curador do Patrimônio Cultural de São João del-Rei, Antônio Pedro da Silva Melo, um dos autores da ação civil pública.


Autorizado pelo bispo da época a vender os bens da igreja para levantar fundos necessários à construção de um novo templo, o padre Jacinto Lovato não gostou dos protestos contra a demolição. Em carta enviada ao IHG, que estava à frente da briga, disse não aceitar “a intromissão de alheios à religião em assuntos de competência da mesma” e argumentou que as igrejas eram para “uso dos fiéis e não para serem contempladas como pura arte de construção”. A carta foi lida pelo pároco em voz alta, na missa de domingo. “Mesmo criticado, o padre nunca se sensibilizou.
Ele gostava de ver a igreja construída no lugar da antiga. Achava que era a glória”, contou José Antônio Sacramento, para quem a volta da portada, “mesmo simples, virá carregada de muito simbolismo”, em caso de vitória na Justiça.

Serviço

SEMANA SANTA
HOJE


São João del-Rei, na Região do Campos das Vertentes
17h – Missa solene da ceia do senhor, na Catedral Basílica Nossa Senhora do Pilar
21h30 – Lançamento da exposição da portada da antiga Igreja do Senhor
Bom Jesus de Matosinhos, no Museu
de Arte Sacramento

Belo Horizonte
9h – Missa da Unidade, no Ginásio do Mineirinho, na Pampulha. Ao fim da celebração, será realizada uma coreografia, em homenagem a Brumadinho. O ato também será um alerta sobre o risco que as barragens com rejetos de minério oferecem para as comunidades.

Ouro Preto, na Região Central
23h – Procissão do Fogaréu, com saída da Igreja São Francisco de Assis, após a cerimônia de lava-pés, em direção à Igreja Nossa Senhora das Mercês e Perdões (Mercês de Baixo)

Sabará
15h – Abertura do Santo Sepulcro e Início da Vigília do Santo Sepulcro e Nossa Senhora das Dores, na Igreja São Francisco.