Os primeiros meses de 2019 foram intensos, produtivos e de grandes conquistas para Maria da Aparecida Sette Câmara Mendes, que completou 88 anos em 31 de março. Três dias antes, ela lançou seu livro de estreia, Devaneios, com poesias guardadas por décadas dentro de uma pasta – algumas manuscritas, outras datilografadas e todas permeadas de afeto, amizade, esperança e tempo bom ou ruim. Já a segunda vitória emoldura o rosto fino e os olhos verdes: pela primeira vez na vida, a senhora simpática e de modos elegantes conseguiu deixar o cabelo crescer, e os fios já batem no meio das costas. “Ele sempre foi muito fino. Usei bem curto ou cacheado desde jovem, na altura da orelha. Agora, está deste tamanho”, orgulha-se a autora Marizette Sette, um apelido de infância que rima com o sobrenome e virou assinatura na capa da obra. “Uns escrevem com dois tês, outros com um tê só. Tanto faz”, conta com um sorriso que convida a uma ótima conversa.
Na sala da casa onde vive desde a infância, no Bairro Santo Antônio, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, Marizette abre a pasta e um caderno, mostra seus escritos já amarelados pelo tempo e revela sua paixão pelos sonetos, os poemas com 14 versos. Embora esteja ensolarado lá fora, ela diz se inspirar muitas vezes na água que vem do céu. “Gosto muito de escrever sobre a chuva. Na verdade, a chuva canta dentro de mim”, confessa enquanto folheia o livro e traz à luz o Dia de chuva, que diz assim: “Chuva, céu que chora/ensombrecido e triste!/As lágrimas frias caem, mansamente/sobre a terra estática”. E tem também Chuva fina, Cantiga de chuva e Chuva miúda no meio das 155 páginas de puro sentimento.
Em tempos tão conturbados, “a poesia faz falta”, acredita piamente a mineira de Santa Cruz do Escalvado, na Zona da Mata. “O mundo está árido demais, e a poesia vibra dentro da gente. Às vezes, a pessoa tem até vergonha de se expressar, acaba nem conversando, e a vida vai ficando mais estranha. A escrita pode ser uma saída para quem vive agarrado ao celular. Tenho um, mas fica mais na bolsa”, revela.
Nascida na Fazenda Charnecão, Marizette conheceu uma BH que só existe mesmo nas lembranças e nas fotografias em preto e branco. “Este bairro aqui, por exemplo, era um mato danado. Onde está a sede da Copasa, na Rua Cristina, havia só uma caixa-d’água. Já no lugar do prédio da Fafich, na Carangola, só muito tempo depois chegou um colégio. Nossa casa era a única da rua, demorou para construírem outra”, recorda-se a escritora, que não saudou a chegada dos prédios. “Quem é que gosta de um ‘trem’ desses? Os vizinhos nem se conhecem, ninguém conversa”, lamenta mineiramente a mãe de Natávia e Mauro, e vovó coruja dos netos Bernardo e Gabriela.
Jardim interior
O ar de interior está no jardim, com plantas bem cuidadas e espaço para a entrada do sol. O astro-rei também foi homenageado no primeiro livro, com Poema ao sol para minha filha: “Gosto de ti, não por tua grandiosidade/mas pelas incontáveis maravilhas/que me fazem ver por toda parte./Gosto de ver-te pálido, medroso,/beijando as águas cantantes do riacho,/ou afagando as rugas das montanhas,/quando, tímido, surges no horizonte”. De volta ao sofá macio da sala decorada com objetos garimpados mundo afora, Marizette ativa a memória prodigiosa e cita seu autor preferido, Olavo Bilac (1865-1918), declamando com toda arte o poema O pássaro cativo aprendido quando criança.A poesia de Bilac é a deixa para Marizette soltar as amarras do presente e viajar nas asas do tempo. Ajeitando os cabelos, presos na franja por um passador de madrepérola, ela conta que aprendeu a ler antes de ingressar na escola, pois a mãe achava melhor os filhos irem para a sala de aula aos 8 anos, e não aos 7, “quando estariam mais bem preparados”. Mas, atenta a tudo, a menina permanecia à mesa de casa, enquanto o irmão mais velho, Ney, estudava com a mãe, também chamada Natávia. “Comecei no grupo escolar (hoje ensino fundamental) já estava bem adiantada, lembro-me até da primeira professora, dona Emiliana, na escola João Pessoa. E assim começou meu gosto pela literatura. Leio um livro atrás do outro, mas os dedos já não ajudam na escrita”, conta mexendo as mãos, sem perder o bom humor. E aí vai uma curiosidade “em latim”: a avó e a neta receberam o mesmo nome, Natávia, sendo que, no caso da antepassada, foi porque nasceu numa estrada do interior mineiro. Daí veio o nome de batismo, que significa “nascida no caminho”.
Antes de se fixar no Santo Antônio, a família Sette Câmara morou numa vila no Bairro Santa Efigênia, na Região Centro-Sul de BH. Depois do grupo escolar, Marizette foi estudar em São João del-Rei, na Região do Campo das Vertentes, no internato do Colégio Nossa Senhora das Dores, onde aprendeu e se dedicou à criação dos sonetos, com ênfase na rima e na métrica. De volta a BH, cursou contabilidade na Escola Técnica de Comércio Tito Novaes, onde foi contratada para trabalhar. Ali também conheceu o professor e advogado Alcides Messias Mendes, com quem se casou e de quem ficou viúva em 1986. A vida universitária acenou e, aos 48, fez vestibular na Faculdade Milton Campos e se formou em direito aos 53.
Pura ilusão
A poesia vai enchendo cada vez mais os espaços da casa. Ao lado da filha, Marizette conta sobre a decisão de publicar o livro. Um dia, pôs a pasta e o livro com sonetos, quadrinhas e poemas debaixo do braço e levou a uma editora na Savassi. E resolveu esperar. Passado um tempo, Natávia conversou com a editora e ficou sabendo que o livro seria, sim, publicado. “Tive coragem de fazer, isso é importante. Inspiração me dá tranquilidade”, resume a história, que está explícita num verso: Mas quem quiser, sem críticas ou medos,/estão aqui meus poemas, meus segredos.../são ilusões, quimeras, nada mais.A palavra ilusão finaliza a conversa. E o que é a vida?, dona Marizette, pergunta o repórter. “A vida é pura ilusão”, surpreende. E acrescenta, com sabedoria: “Se você fechar os olhos, pode imaginar qualquer coisa. Criar o que está dentro de você. E tudo se constrói com amor, alegria, delicadeza e, principalmente, o coração”.