Sabe aquela história, leitor, de que muitas vidas dariam um livro? Pois o jovem Felipe Gabriel Vieira Ronceti, de 13 anos, acredita e já está escrevendo o seu. E promete abrir o coração, que está ligado pelo amor, e não pelo sangue, aos pais Gustavo Ronceti, supervisor de manutenção, e Christiane Rúbia Ronceit, professora universitária, residentes há um ano em Conselheiro Lafaiete, na Região Central. A primeira frase do livro foi escrita sem medo de errar: “Nasci no dia em que o portão do abrigo se abriu e conheci meus pais”.
Felipe e o irmão biológico Paulo Henrique Vieira Ronceti, de 11, chegaram à vida do casal em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde moravam e de onde, por força do trabalho de Gustavo, tiveram que se mudar para a cidade distante 100 quilômetros da capital. Já vivendo juntos desde 2012, o supervisor e a professora resolveram sacramentar legalmente a união, em 24 de maio do ano seguinte, de forma a se preparar integralmente para receber os filhos. Pelas surpresas que o destino traz, exatamente nove meses depois o desejo se concretizou e os filhos chegaram ao convívio dentro do processo judicial de adoção – no caso, adoção tardia, pois já estavam crescidos.
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'Não ter família dói': crianças com mais de 3 anos esticam fila de espera por adoçãoPolêmica: Crianças desfilam em shopping durante evento para serem adotadasConfira o que é necessário saber antes de adotar uma criança ou adolescenteRepúblicas recebem jovens com mais de 18 anos que moravam em abrigosCaminhada incentiva adoção de crianças e adolescentes em Belo HorizonteEntusiasta da adoção, Christiane conta que já está na fila para acolher uma menina. “O ser humano pode se adaptar aos estímulos que recebe.
Diretora do GAA/BH, a advogada Larissa Jardim pontua que o processo de adoção de uma criança é “longo e complexo” e esbarra em uma série de questões, incluindo pouca estrutura jurídica, insuficiência de equipes técnicas em todos os aspectos e até de profissionais capacitados pelas universidades para atuar junto aos filhos adotados. “É fundamental destacar que cada criança e adolescente na adoção tardia traz uma história, se sente estigmatizada, enfim, precisa se adaptar à família e enfrenta situações desafiadoras. Daí a necessidade de acompanhamento de profissionais especializados”.
Superintendente da Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG-Coinj), a desembargadora Valéria Rodrigues Queiróz detalha a questão, lembrando que a adoção tardia inclui crianças maiores de 3 anos de idade e adolescentes que permanecem indefinidamente à espera de uma família.
Entrevista
Desembargadora Valéria Rodrigues Queiróz
superintendente da Coordenadoria da Infância e da Juventude do TJMG
‘Nenhum abrigo pode ser considerado lar’
A partir de que idade a criança se encaixa em adoção tardia?
Adoção tardia assim é chamada para designar a adoção de crianças maiores de 3 anos de idade e adolescentes, que permanecem indefinidamente à espera de uma família. Já a adoção necessária assim é designada para as crianças e adolescentes portadoras de necessidades especiais e grupos de irmãos. A realidade, no Brasil, é que o destino da maioria das crianças mais velhas, acolhidas em abrigos, é de ali permanecerem, sendo criadas e educadas pelos funcionários dessas instituições.
A situação tem mudado nos últimos anos ou ainda se mantém a preferência dos “pais pretendentes” por crianças brancas e com até 3 anos de idade?
Infelizmente, a procura por bebês para adoção ainda é muito maior. Segundo dados do CNJ, 92,7% dos pretendentes à adoção desejam crianças com idade até 3 anos. Contudo, apenas 8,8% das crianças aptas à adoção têm essa idade.
Por que esse quadro perdura? É questão de conscientização, sensibilização? E no caso de portadores de deficiência?
Isso se deve ao fato de que a ideia de ter como filho uma criança que tem vivências, lembranças e vínculos anteriores assusta e desestimula os candidatos à adoção, que anseiam por levar para casa um livro em branco, no qual poderão escrever suas histórias do início ao fim, e não dar continuidade às histórias que já vinham sendo escritas por outras mãos.
Campanhas educativas podem levar a um aumento de adoções de crianças e adolescentes? De que forma?
Sim. Os mitos e preconceitos que permeiam a adoção de crianças mais velhas são barreiras enormes a serem vencidas. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, via Coordenadoria da Infância e da Juventude, inicia na Semana Nacional da Adoção, ações de conscientização da sociedade com um todo – e não só para os candidatos à adoção – por meio da realização de campanhas públicas na mídia, combatendo mitos e preconceitos, incentivando a adoção tardia e necessária, a fim de que essas crianças tenham chance de ter uma família.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, no Brasil há seis vezes mais pessoas habilitadas à adoção do que crianças e adolescentes em condições de serem adotados e, mesmo assim, são aproximadamente 6 mil menores em abrigos esperando uma família.
Há hoje, só em Minas, aproximadamente 4,5 mil crianças e adolescentes acolhidos em instituições, por diversas razões, sendo que 84,45% estão na faixa etária entre 10 e 17 anos incompletos. Apenas 636 estão disponíveis para adoção. Já o total de candidatos disponíveis gira em torno de 5,4 mil, segundo dados do CNJ. Esse número excessivo de crianças e adolescentes em abrigos, sem estar aptos à adoção, são pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade, que sofreram violações e ainda não foram esgotadas todas as possibilidades de reinserção na família biológica ou extensa, conforme determina a lei.
No Brasil, o processo de adoção ainda é longo e complexo, conforme especialistas. Por que isso ocorre?
Muito se fala sobre o tempo de espera na fila do Cadastro Nacional de Adoção. Critica-se a demora na fila, em relação ao grande número de crianças abrigadas. Contudo, essa demora está intimamente ligada às exigências dos adotantes. Isso porque a maioria das pessoas habilitadas para adoção tem preferência por bebês, que estão em menor número nos abrigos. No que tange ao processo de adoção, em 23 de novembro de 2017 foi publicada uma importantíssima novidade legislativa. Trata-se da Lei 13.509/2017, que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Código Civil e a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) trazendo novas normas incentivando e facilitando o processo de adoção.
Especialistas criticam a falta de profissionais especializados – inclusive com formação universitária – para lidar com os adolescentes adotados tardiamente. A senhora enxerga dessa forma?
Não. Trata-se de mais um mito. O profissional que vai lidar com uma criança ou adolescente adotado tardiamente é o mesmo que atende a criança ou adolescente biológico. Há 15 anos na Vara Infracional de Belo Horizonte, posso afirmar que 99,9% eram filhos biológicos e não adotados. O que nos leva à conclusão de que o êxito na relação familiar, na formação e transformação da criança que tanto almejamos não está na consanguinidade.
A sociedade evoluiu e hoje casais gays e pessoas solteiras podem adotar crianças. Qual é o princípio básico de uma adoção, independentemente da idade da criança ou adolescente?
A adoção não foi criada para resolver problemas sociais e muito menos problemas de infertilidade. Para uma adoção ser bem-sucedida, dependerá da motivação dos pretendentes e do preparo psicológico. O que prezamos, hoje, em uma adoção, é o interesse da criança e não dos candidatos à adoção.