Às vésperas de a maior operação de resgate da história do país completar quatro meses, a atuação das bombeiras em Brumadinho se destaca e chama a atenção para uma contradição entre o trabalho de campo e as regras de contratação de efetivo: enquanto elas desempenham na linha de frente o mesmo serviço, em condições idênticas às dos colegas, para entrar no Corpo de Bombeiros as candidatas só dispõem de 10% das vagas.
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Além da tensão dos rompimentos, cidades do entorno de barragens sofrem com golpes Estrago em Barão de Cocais pode ser maior que o previsto pela ValeDia Nacional do Bombeiro: conheça a música em tributo à profissãoPoliciais evitam suicídio em represa no Norte de MinasAto homenageia vítimas de Brumadinho quatro meses depois da tragédia da ValeSessão de cinema em BH homenageia bombeiros de Brumadinho; assistaUFMG vai apoiar a recuperação do patrimônio das cidades afetadas pela tragédia de BrumadinhoOutra demonstração veio de uma das imagens mais marcantes dos resgates, protagonizada pela major Karla Lessa, que pilotava o primeiro helicóptero a chegar ao local do desastre, numa manobra que requer enorme perícia de voo. Na ação, foi resgatada da lama Talita Cristina Oliveira de Souza, de 15 anos, com ajuda de Jefferson Ferreira dos Passos, de 33 anos.
Em campo, chama atenção o número de bombeiras. Em um dos dias de trabalho acompanhados pelo Estado de Minas, eram 15 cabos e soldados femininas, além da capitã Thaise, na coordenação. Desde o início da operação de salvamento e resgate em Brumadinho, 137 mulheres da corporação foram a campo. A major Karla destaca a importância do treinamento para a atuação de excelência em condições adversas, e sabe que serve de exemplo para outras mulheres.
RESTRIÇÃO REAVALIADA As militares demonstram em campo, e fazem questão de reforçar, que não há diferenças de atuação entre bombeiros masculinos e femininos. No entanto, as mulheres só podem concorrer a uma em cada 10 vagas nos concursos públicos para a corporação, segundo legislação estadual. “Se são 50 vagas, apenas cinco são destinadas às mulheres. Historicamente, foi determinado assim. Mas a corporação está fazendo estudos para verificar se isso se justifica”, afirma a capitã.
As equipes, tanto masculinas quanto femininas, costumam ser empenhadas para trabalhar sete dias ininterruptos nas buscas. Quando falaram à equipe do EM, as bombeiras estavam no quinto dia de trabalho consecutivo, demonstrando muita disposição. As muitas marcas de lama nos uniformes davam indício do empenho da tropa.
Diferentemente das heroínas dos quadrinhos, sempre tentas à aparência, a preocupação é atuar de maneira técnica e precisa nos resgates. “Treinamento é fundamental. É por meio dele que o profissional tem condições de avaliar se consegue realizar determinada tarefa. Há um condicionamento mental e físico para fazer atividade com segurança”, explica a major Karla.
A atuação do Corpo de Bombeiros no resgate de vítimas da tragédia em Brumadinho foi reconhecida por toda a sociedade, que enxergou nos militares heróis corajosos e abnegados, embora os superpoderes venham do treinamento exaustivo e de conhecimentos para determinar onde as buscas devem ser feitas para ser efetivas.
O condicionamento tem objetivo de preparar os militares para lidar, tanto do ponto de vista físico quanto do emocional, com situações extremas. “A capacitação é a mesma para agentes masculinos e femininos. Em todas as equipes, temos militares com treinamento e qualificação em cursos como os de buscas em locais soterrados ou em enchentes”, afirma. As especificidades das mulheres são levadas em conta apenas na montagem de infraestrutura para recebê-las. “O que a gente tem que observar são as questões normais, de banheiro e alojamento, para dar o mesmo conforto a todos”, diz a capitã.
Elas podem tudo
Em Brumadinho, as bombeiras afirmam que não perceberam diferença de tratamento entre elas e os homens. “A população está bem-acostumada. Aceitou bem a presença feminina na corporação. Nós encontramos o nosso lugar. Estamos presentes e somos indispensáveis. Não existe nenhum tipo de estranhamento e insegurança relativos à presença das bombeiras”, afirma Thaise Rocha.
Depois de protagonizar diversas reportagens, a major Karla ressalta que as mulheres podem atuar em todos as áreas, inclusive pilotando. “Aviação é para mulher, sim. Na verdade, é para mulher qualquer profissão que ela disponha fazer, à qual ela se dedique com qualidade. Desde que haja treinamento, envolvimento, amor pelo que se faz, acho que é possível qualquer coisa”, afirma.
E elas sabem que precisam realizar o trabalho com excelência. Sabem da responsabilidade que têm, que estão sendo vistas e observadas, inclusive por meninas que também sonham em ser bombeiras. “Ser bombeiro e mulher é buscar seu lugar constantemente. Como todas nós, em todas as áreas. É se fazer útil, se fazer presente. Trazer leveza para o local de trabalho, força e alegria”, completa a capitã Thaise.
Lotada no Corpo de Bombeiros em Uberaba, no Triângulo Mineiro, a soldado Andréa Veloso foi deslocada para acompanhar as buscas. Enquanto um trator removia a terra, ela se mantinha atenta a qualquer indício de presença de vítima. “Além de formar uma estrada para dar acesso às novas buscas, fazemos paralelamente buscas no material retirado”, afirma a militar, há dois anos na corporação. “Ser bombeiro é minha paixão, minha vida. Se tornou minha razão de viver. É um exemplo do que é ter força. Uma força que eu mesmo não conhecia. Vai muito além do que eu achava que era capaz”, define.
FAMÍLIA As bombeiras dividem o tempo entre a carreira e a vida pessoal. Um dos desafios é deixar os filhos em casa. “Para estar aqui é um pouco complicado para entenderem, mas explico que estou vindo ajudar pessoas que estão sofrendo. Aí elas me dão um abraço bem apertado e falam: ‘Vai lá, mamãe, ajudar quem está precisando’. Assim, me sinto muito realizada, porque faço o que eu amo e tenho o apoio da minha família. Não posso desejar mais nada na vida”, diz a cabo Lilian Tatiane Araújo Pereira, há nove anos na corporação, sobre a despedida das filhas.
A cabo Karina sabe que é necessário deixar a família para ir para campo, mas conta que não é fácil. “O momento mais difícil para mim é ter que largar minha família e ter que ficar uma semana longe. Mas é muito gratificante atuar para ajudar a sociedade. Fazer o nosso trabalho, e fazer o melhor”, diz a militar, com 17 anos de corporação.
As bombeiras se sensibilizam, fazem exercício de empatia ao se colocar no lugar das famílias que esperam por seus entes queridos. “O momento mais difícil é quando a gente sabe da história dos familiares. Ficamos imaginando e aplicando aquilo na hora do resgate”, afirma a bombeira Karla Silva Mota. As militares também ficaram surpresas com o número de vítimas em Brumadinho, muito superior ao de Mariana. “O momento mais difícil foi quando a gente soube do rompimento da barragem e a quantidade exorbitante de vítimas em comparação com Mariana”, constata a soldado Adryelly Ribeiro Severo. Até ontem, chegava a 241 o número de mortos identificados e 29 pessoas prosseguiam desaparecidas.