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Aplicativos de transporte mudam relações de trabalho, com perdas e ganhos no mercado

Pedalando a serviço dos aplicativos de entrega, Altino Almeida perdeu cerca de 20 quilos em três meses percorrendo até 70 quilômetros por dia - Foto: Fotos: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press

Um dos pontos mais discutidos com a entrada dos aplicativos de transporte no mercado  diz respeito à questão das características do trabalho desenvolvido pelos motoristas e entregadores, interferindo diretamente na economia. Enquanto permitem aos condutores uma liberdade de atuação, com controle da própria jornada e se tornam opção de serviço em um contexto de corte de postos formais de trabalho, as empresas também praticam um preço considerado baixo pelos condutores e não têm nenhum tipo de vínculo com eles. Em consequência, quem dirige termina se expondo a longas jornadas para obter rendimentos almejados sem a proteção de benefícios trabalhistas. Em contrapartida, a chegada de apps de entrega, por exemplo, abre possibilidades para empresários elevarem o faturamento e manter a equipe de colaboradores sem sobressaltos.

 
Esse assunto é alvo de uma pesquisa comandada pelo professor Fábio Tozi, do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências (IGC) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), iniciada em 2016. No caso dos motoristas de carros de passeio, ele observou  uma precarização das relações de trabalho a partir do momento em que os altos custos de manutenção, aliados à baixa tarifa aplicada pelas empresas, pressionam os condutores a rodar por horas a fio sem descanso para conseguir o dinheiro suficiente para sobreviver.
 
Essa precarização se estende aos motociclistas e ciclistas que pilotam e pedalam por muito tempo para conseguir pagar as contas. “Concordo que as plataformas permitiram que as pessoas ganhem dinheiro para a sobrevivência, não resta dúvida. Mas isso é emprego? É esse emprego que queremos? Se o motorista fica doente, ele pode ficar sem trabalhar. E se não se programou para ter reserva nesse período? Ciclistas e motociclistas estão sofrendo acidentes.
Quem arca com esse custo? É o SUS”, diz o professor.
 
O motorista Rodrigo Alves, de 29 anos, concorda com as conclusões da pesquisa da UFMG, mas ressalta que o trabalho é uma chance em meio ao desemprego. “Bem ou mal, a gente consegue ganhar um dinheiro, sem passar dificuldades, mas não é fácil. Para ter uma renda boa com aplicativos, a pessoa tem que trabalhar de 12 a 14 horas por dia. Estou falando de um salário bom. E mesmo assim depende de vários fatores, como se o carro é do condutor ou de aluguel, entre outros”, afirma. 
 
Rodrigo diz que não pretende continuar no serviço depois de estabilizar sua sua vida financeira. Ele ainda trabalha como motorista em outra função que não pelos aplicativos. “Hoje tenho uma visão que o trabalho com os apps é meio que escravo.
Você usa seu carro, desgasta seu veículo, e o retorno é baixo. Se você colocar tudo na ponta do lápis, acho que não compensa. Mas você vê o dinheiro na sua mão todos os dias”, completa.
 
A opinião de Rodrigo é compartilhada pelo motorista Lainnio Soares de Oliveira, de 50. Ele trabalha com aplicativo desde 2014 e inicialmente atuava para complementar a renda. Quando foi demitido de uma empresa em que trabalhava como analista de sistemas, a função de motorista se tornou principal. “Tentei arrumar outro emprego, mas infelizmente, pela idade e a situação do país, tive que permanecer no aplicativo”, diz ele. Soares chegou a tirar R$ 12 mil quando tinha um carro que se enquadrava na categoria Uber Black, mas hoje tem dificuldades para arrecadar cerca de R$ 4 mil por mês. “O trabalho hoje de motorista de app tornou-se um trabalho escravo, porque os apps não escutam os motoristas.
Tivemos paralisação mundial e não fomos ouvidos. As empresas querem o lucro sem tanta preocupação com bem-estar dos motoristas”, completa.
 
O motorista J. S., de 34, admite que há pontos positivos e negativos, mas se considera satisfeito ao trabalhar só com aplicativos. Rodando só pela Uber, ele se tornou membro da categoria diamante e por isso tem acesso a vantagens e benefícios financeiros quando consegue superar uma determinada quantidade de corridas por semana. “Hoje tenho mais a exaltar o aplicativo, porque me ajudou demais quando eu estava desempregado. Atualmente, só trabalho com isso. A  categoria diamante me deixa em uma situação um pouco melhor do que a maioria dos motoristas e aí a gente acaba querendo bater as metas para alcançar um rendimento melhor”, diz o motorista, que prefere não se identificar. J. faz cerca de R$ 5 mil por mês sem considerar eventuais gastos com manutenção.

SAÍDA LEGAL O presidente da Câmara dos Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL/BH), Marcelo de Souza e Silva, considera que os aplicativos abriram alternativa de trabalho e lembra que há opções para buscar proteção contra acidentes ou outros problemas. “Hoje as leis permitem que essas pessoas se formalizem, se tornem microempreendedores individuais com o pagamento de INSS e ainda acoplem um serviço de atendimento médico”, afirma ele.
Silva diz que não acredita em precarização se houver um acompanhamento de perto. “A relação do dono com o colaborador tem que ser pacífica. Se a empresa cresce, o colaborador cresce junto e conquista condições melhores. A gente sabe que existem abusos das duas partes, mas isso vai mudar a partir de evolução da cultura”, afirma.

Mais retorno e esforço


Um ponto importante a ser agregado à discussão a respeito das relações de trabalho geradas pelos aplicativos especialmente nas entregas de mercadorias (com destaque para os alimentos) é o retorno para as empresas que aderiram às plataformas de apps. No caso da empresária Natália Neves, dona de uma hamburgueria inaugurada há um ano e quatro meses na Savassi, Centro-Sul de Belo Horizonte, foi justamente a tecnologia dos apps que deu a ela a segurança para manter sem sobressaltos uma estrutura considerada grande de funcionários, com nove colaboradores. Natália primeiro aderiu à plataforma do iFood, o que possibilitou mais conhecimento da hamburgueria pelos clientes. Depois, fechou com a Uber Eats e viu seu faturamento aumentar 30%. Ela também fez um contrato com a Rappi, que durou pouco tempo e, por fim, ficou apenas com a Uber Eats. Foi a escalada no faturamento que garantiu estabilidade para manter sua equipe rodando o negócio sem sobressaltos.
 
Na avaliação dela, é importante criar regras que consigam manter a convivência harmônica entre o bem-estar dos entregadores e a inovação trazida pelo serviço, que já consolidou uma realidade do ponto de vista dos consumidores. A empresária avalia que é papel dos aplicativos um foco maior nos entregadores.
"São as empresas dos aplicativos que têm o contato maior com os motofretistas. É claro que a gente tem uma parcela a agregar, mas nosso contato com eles é muito efêmero. A gente recebe orientações até para saber como fazer e agir em caso de problema, mas quem precisa orientar um pouco mais é a empresa que contrata", afirma.


 
Ela cita exemplos de cursos para qualificação ou iniciativas similares que desenvolvam mais consciência entre os condutores quanto à necessidade de respeito às normas. Natália acredita que é importante o poder público encampar a discussão por regras que permitam uma convivência sem grandes problemas, mas defende que não sejam normas que venham a engessar as operações, pois os consumidores aprovam a inovação e dificilmente vão abrir mão dela. "Todo mundo tem que ter a sua contribuição. Tudo tem que ter a sua regra para conviver em harmonia. Precisamos de coisas pontuais, não pode ser burocrático ao ponto de inviabilizar a operação", completa.

rotina dura Pedalando a serviço dos aplicativos de entrega há cerca de três meses, Altino Almeida, de 37, perdeu cerca de 20 quilos percorrendo até 70 quilômetros por dia para garantir algo em torno de R$ 70 todos os dias. Quando não há tarifa dinâmica, o valor mínimo das entregas que ele faz fica na faixa dos R$ 3,50. Dependendo das condições do dia, esse valor pode aumentar, o que eleva também o montante ao fim do dia. O certo é que o esforço é tão grande que ele adaptou há uma semana um motor de dois tempos na bicicleta, movido a uma mistura de gasolina e óleo. “Facilitou bastante, principalmente nas subidas. Quando tem entrega em bairros como Santo Antônio e São Pedro você quase morre, não é brincadeira”, diz ele.
 
A rotina de Altino começa por volta das 11h e o primeiro turno de trabalho vai até as 14h30. Depois ele almoça e descansa, retomando o trabalho perto das 19h, encerrando a jornada às 2h praticamente todos os dias. Antes de pedalar, ele chegou a trabalhar como motorista de carro a serviço dos apps. “Quando teve a greve dos caminhoneiros, não consegui renovar meu contrato com a empresa em que eu alugava o carro para trabalhar e aí o que me restou foi a bike. Acho que as pessoas estão partindo para isso pela necessidade, porque em relação aos ganhos não é vantagem. É mais para tirar o pão de cada dia. Você trabalha fim de semana, com sol e chuva e não tem tempo de lazer”, afirma.

A tecnologia dos aplicativos gerou aumento de 30% no faturamento da hamburgueria da empresária Natália Neves, que garantiu a manutenção da equipe de nove funcionários que ela tem na empresa sem sobressaltos - Foto: Fotos: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press

Opção para 5,5 milhões


As empresas que operam aplicativos de transporte no Brasil trouxeram uma alternativa de trabalho em um contexto de mais de 13 milhões de desempregados no país. Esse é o ponto destacado pelo diretor da Associação Brasileira Online To Offline, Marcos Carvalho. O representante da entidade, que agrega empresas de economia colaborativa e plataformas digitais, lembra que um estudo do Instituto Lokomotiva aponta que 5,5 milhões de pessoas ganham dinheiro apenas com os apps de transporte. 
 
Segundo Carvalho, pesquisa encomendada por empresas conveniadas à ABO2O e que ouviu 1,5 mil entregadores a serviço dos apps em centros urbanos do Brasil indica que os apps vieram para facilitar a vida das pessoas.
 
O levantamento foi feito entre fevereiro e março pela Fundação Instituto de Administração (FIA) e apontou que 72,3% dos entrevistados preferem trabalhar com entregas de forma autônoma do que com vínculos CLT. Mais de 90% relataram que os apps permitem maior liberdade para composição da renda e a maioria declarou que ela aumentou. 
 
Em nota, a empresa Uber destacou que cerca de um terço dos motoristas de BH dirigem menos de 20 horas por mês com a plataforma. A companhia também informou que seus motoristas parceiros têm liberdade para escolher suas horas online. “A plataforma permite que eles aceitem ou cancelem viagens, sem qualquer tipo de penalização”, informou a empresa. A Uber também destacou que acaba de iniciar os testes de recurso que mostra o destino do usuário antes do início da viagem.
 
Por fim, a Uber destacou opções para seus parceiros que contribuem para melhoria das condições de trabalho. Entre elas, seguro para condutores e passageiros para acidentes, que pode chegar a R$ 100 mil em caso de morte, desconto de 5% em combustíveis da rede Ipiranga, microcréditos para instalação de kit gás natural, cobrança do usuário de cada minuto que ele faz o motorista parceiro esperar, parado, diante do seu endereço (após cinco minutos de espera) e cobrança do usuário das viagens que ele cancela cinco minutos depois da solicitação.
 
Série de reportagens

O Estado de Minas publica desde domingo a série “Para onde vamos”, na qual discute os impactos positivos e negativos dos aplicativos de transporte de passageiros e mercadorias no cotidiano dos belo-horizontinos. No primeiro dia, especialistas, usuários e empresas falaram sobre a popularização dos patinetes elétricos e a necessidade de se criarem leis para regulamentar o uso nas ruas de BH. A edição de segunda-feira abordou os gargalos criados por serviços como Uber, Cabify e 99pop no trânsito da capital, em contrapartida à simplificação dos deslocamentos. Ontem, o foco foi a popularização das entregas na cidade e seus efeitos para a segurança do trânsito com a maior circulação de motos e bicicletas a serviço dos aplicativos.



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