A candidatura está no forno, a mesa está pronta para a festa e a sala de jantar não poderia ser mais apropriada ao tema: em Paris, uma das mecas da gastronomia mundial, Belo Horizonte põe seus pratos em jogo para conquistar pelo paladar o título de Cidade Criativa concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Depois de deixar para trás outras 26 cidades brasileiras, a capital mineira ficou entre as quatro finalistas, que disputam duas indicações. Cada uma delas se candidata a partir de um ramo que lhe concede identidade cultural.
Para concorrer à segunda fase, foi elaborado e entregue dossiê apresentando as potencialidades de BH. As concorrentes da capital mineira são Cataguases, na Zona da Mata mineira, pela produção cinematográfica, Fortaleza, pela moda e design, e Aracaju, pela música.
As quatro candidaturas já venceram uma etapa: foram indicadas pelo Ministério das Relações Exteriores à Unesco, na capital francesa. O resultado é esperado para outubro. Minucioso, o processo se assemelha ao de concessão do título de Patrimônio cultural da humanidade, recebido pelo complexo arquitetônico da Pampulha em julho de 2016.
“Nosso grande trunfo é a singularidade de nossa gastronomia. O Brasil tem três grandes gastronomias: a mineira, a baiana e a do Norte. Estamos confiantes em nossa singularidade. A gastronomia faz parte da vida do mineiro, o cozinhar, a cultura dos sabores e saberes”, afirma o presidente da Belotur, Gilberto Castro. O órgão municipal liderou o processo ao lado de chefs da Frente da Gastronomia Mineira e da Associação de Bares e Restaurantes (Abrasel).
As candidaturas devem estar em consonância com os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), que visam estimular ações para o desenvolvimento sustentável, até 2030, com foco em cinco princípios: pessoa, planeta, prosperidade, paz e parceria. “As ações precisam acontecer de verdade, o que pressupõe um alinhamento do poder público e do setor privado em prol da gastronomia. Precisam ser projetos coerentes e voltados para os ODS”, diz o chef Edson Puiati, coordenador do curso de gastronomia do Centro Universitário Una e integrante da Frente Mineira da Gastronomia.
Sintonia
Puiati lembra que, há algum tempo, o governo de Minas tem fomentado a cadeia produtiva da gastronomia no estado e que o poder público municipal, liderado pela Belotur, encampou também a culinária como parte da identidade da cidade e setor capaz de expandir a economia.
“No passado, Belo Horizonte fez outras apostas, como cidade de aventura, com a campanha Eu Amo BH Radicalmente, e o turismo de negócios. Agora o foco mudou para gastronomia, mais forte e que ficou coerente com o que o estado já faz”, afirma. Em sua avaliação, diversas ações demonstram que o município está se reposicionando para fortalecer a identidade de cidade da gastronomia, como a realização dos festivais gastronômicos, a inclusão da gastronomia no Arraial de Belo Horizonte e abertura de linhas de financiamento na lei de incentivo municipal.
Os festivais gastronômicos fazem parte do calendário oficial da cidade, entre eles o Comida di Buteco, pioneiro, realizado há 20 anos; o Botecar, criado em 2014 com o objetivo de retomar as raízes da cultura tradicional de botecos; o Fartura e a Semana da Gastronomia Mineira, eventos que constituem espaço para elaborar estratégias para o setor.
Também engrossam a identidade gastronômica da capital os festivais de rua, como o Made in Minas Gerais, realizado em maio, na Savassi, dedicado à culinária mineira. Outro patrimônio são as cozinheiras de Minas e restaurantes tradicionais, como o Dona Lucinha e o Xapuri.
Meta
O presidente da Abrasel e da Frente Mineira da Gastronomia, Ricardo Rodrigues, lembra que Belo Horizonte já se candidatou ao título há dois anos, mas diz que a capital não estava tão preparada quanto agora, em que há sinergia entre diversos setores e o poder público. “É muito importante para a economia mineira esse reconhecimento. Não enviamos um dossiê com páginas de informação. Enviamos a realidade e o calor que Minas tem de acolher. Mostramos quem somos e como fazemos”, pontua Ricardo.
Três cidades brasileiras têm o título de Cidade Criativa pelo valor da gastronomia: Belém, no Pará, Florianópolis, em Santa Catarina, e Paraty, no Rio de Janeiro. “A identidade gastronômica mineira é muito forte e superior à de qualquer outro estado brasileiro. Todos os estados têm restaurante de comida mineira”, defende o chef Edson Puiati. Ele lembra que um bom indicativo, que o faz ficar confiante, é fato de Belo Horizonte ter vencido São Paulo na primeira etapa da seleção. “Ganhamos de São Paulo. Foi uma briga boa”, diz, lembrando que a candidatura do estado vizinho teve importantes defensores, como o chef Alex Atala, que figura entre os melhores do mundo.
O título de Cidade Criativa pode se tornar um selo reconhecimento da culinária feita na capital mineira, o que é importante para fomentar o turismo e toda a cadeia produtiva da gastronomia. “Um ganho é o próprio reconhecimento e o que ele traz para a cadeia produtiva da gastronomia. Outro ganho é participar da rede de cidades criativas. Ao todo são 180 cidades em 72 países, o que permite uma troca de experiências que é muito rica”, diz Gilberto Rodrigues.
Mercado Central
Um dos equipamentos turísticos destacados no dossiê de Belo Horizonte é o Mercado Central, que completa 90 anos em setembro. O espaço é um paraíso para quem busca produtos mineiros e de qualidade. Lá se encontra de tudo, do queijo fresco aos temperos mais elaborados, passando pelas verduras de quintal.
O mercado também tem um dos mais tradicionais restaurantes de comida mineira, o Casa Cheia. Há 40 anos em funcionamento, não houve um dia sequer que o estabelecimento não tenha feito jus ao nome. As mesas estão sempre lotadas e a fila de espera é grande.
O carro-chefe é o Mexidoido Chapado, mexido feito com arroz, repolho roxo, brócolis, abobrinha, cenoura, finalizado com ovo de codorna e servido em panelinhas de pedra. “Belo Horizonte merece, com certeza, o título. A criatividade do mineiro é muito grande, os pratos são muito bem elaborados, de acordo com os ingredientes que temos, como o ora-pro-nóbis”, afirma a proprietária, Eliana Batista Luzia.
Ela perdeu a conta, mas costuma vender mais de 300 pratos por mês. “Muita gente brinca que temos que trocar o nome para 'Casa lotada'”, diz. Os irmãos belenenses Hermes Bahia, de 25 anos, e Hélder Bahia, de 22, aprovaram o tempero mineiro. Eles experimentaram o prato almôndegas exóticas. “Os ingredientes são do meu agrado. Adoro carne de porco. Um prato muito bom é o feijão-tropeiro”, diz Hermes, com a autoridade de quem vem de Belém, cidade que já conquistou o título de Cidade Criativa exatamente pela qualidade da gastronomia.