Uma decisão inevitável e natural aos olhos de vários educadores, mas que chega trazendo mais perguntas que respostas. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, anunciou ontem que a aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ocorrerá no formato digital a partir do ano que vem, quando essa opção estará disponível a um leque de 50 mil alunos em caráter de teste. A substituição do papel já havia sido considerada em governos anteriores, mas agora que teve sua adoção anunciada vem recheada de dúvidas. Sem detalhamento de como o processo ocorrerá e sem explicação sobre pontos essenciais, como a segurança sobre o sigilo das questões, o futuro da redação e da correção via teoria de resposta ao item (TRI), professores enxergam na novidade mais ansiedade do que um sentimento real de melhoria.
Leia Mais
Enem vai se tornar exame digital, e Belo Horizonte terá aplicação em fase de teste em 2020Tecnologia: opções de curso para ingressar com a nota do EnemMinas Gerais tem 534 mil participantes confirmados no Enem 2019Enem inaugura versão 'sem partido' e prepara teste digital para 2020Estudante posta no Facebook desperdício de água da vizinha e tem que pagar indenizaçãoPor meio do computador, a ideia do governo federal é fazer várias edições do exame ao longo do ano, por agendamento.
Integrante do Conselho Nacional de Educação (CNE) e ex-presidente do Inep, o professor José Francisco Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), enumera uma série de preocupações despertadas pelo anúncio. A primeira delas é a ordem dos testes. “O primeiro grupo (digital) poderá ser favorecido, pois o outro gasta muito tempo para fazer a redação à mão”, diz. Segundo ele, deve ser avaliado ainda o nível de informação que cada questão traz ao aluno em cada um dos formatos, considerando que o computador tem uma vasta gama de ferramentas que não estão disponíveis aos que resolverão as provas com caneta e papel.
“O Enem engessa o ensino médio.
O professor ressalta que o objetivo de uma prova pelo computador é demandar do aluno nuances que não se consegue pedir nem medir em questões fechadas. Mas, para isso, é preciso que o formato esteja inserido no projeto pedagógico, o que faz o prazo de um ano ser curto para tantas adaptações, acredita. Francisco Soares ressalta ainda as novas bases do ensino médio, estabelecidas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que exigem raciocínio crítico.
INCERTEZA Por causa dessas questões ainda sem respostas, a professora de biologia Pollyana Fantini, da Salinha Bioquímica, considera este primeiro momento muito mais de incertezas, o que traz mais ansiedade, tanto para quem está à frente da sala de aula quanto para os estudantes. “Qualquer novidade deveria ser discutida com quem é protagonista nesse processo, ou seja, os professores e os próprios alunos. Houve uma conversa que ficou nos bastidores e, mais uma vez, vão mudar as regras do jogo com a partida já no meio do caminho”, critica. Ela também cobra mais explicações.
Outra preocupação é com a redação, cuja avaliação não foi assunto da apresentação feita ontem pelo ministro. “Duvido que universidades sérias aceitem estudantes sem testar a parte escrita”, diz. “A consequência imediata desse anúncio é mais ansiedade. Estou querendo selecionar aluno que saiba ler. Corro risco de não ter treinamento de escrita e, agora, risco de não ter treinamento de leitura. Está todo mundo perdido e no escuro”, afirma a professora.
CAMINHO SEM VOLTA A mudança traz mais dúvida que certeza, embora seja um caminho natural, também na opinião da assessora de gestão e desempenho do Bernoulli Sistema de Ensino, Vanessa Santos. Ela lembra que a logística sempre foi um ponto sensível do Enem e, no formato digital, é preciso garantir que problemas do passado, como vazamento de provas, não voltem a ocorrer. Entre os desafios, está a adesão de participantes que foram treinados para fazer prova no papel e que estejam dispostos a fazer a prova um mês antes.
A Teoria de Resposta ao Item é outra preocupação. “Não falou se a correção continuará sendo pela TRI.
A incerteza não é só de professores. Estudante do 2º ano do Colégio Padre Eustáquio, no bairro homônimo da Região Noroeste de Belo Horizonte, Rafael Cyrne Santos, de 16 anos, também quer mais explicações. Ele fará ano que vem a prova que o credenciará para o ensino superior. Diz já ter decidido que não vai participar do piloto da prova digital. “Tudo na escola está programado para fazer o Enem em formato físico. Além disso, um mês antes, quando estaremos ainda em pré-prova na escola, não é interessante. Se eu já estivesse na faculdade e quisesse fazer um teste, gostaria de tentar para ver como é”, diz.
Para Rafael, um problema estrutural pode inviabilizar o formato digital, uma vez que grande parte das escolas públicas brasileiras não tem laboratório de informática. “Falta intimidade desses alunos com o meio digital, diferente do que ocorre em colégios particulares.
O QUE JÁ SE SABE
Questões abertas
O QUE JÁ SE SABE
Enem 2020
» Uma aplicação-piloto do modelo digital
» 15 capitais participam (incluindo Belo Horizonte)
» 50 mil provas digitais
» Opcional para os participantes (opção no ato da inscrição)
» Aplicação em dois domingos,
quase um mês antes do tradicional – 11 e 18/10/2020
» Duas aplciações em papel
Enem regular – 1º e 8/11/2020
lReaplicação para os dois modelos (dezembro/2020), para candidatos prejudicados por algum problema logístico ou de infraestrutura na prova digital
» Cada uma das três provas terá questões diferentes
» Em caso de problemas logísticos na aplicação digital, o participante poderá participar da reaplicação
» Estimativa de custo inicial do projeto-piloto: R$ 20 milhões
Enem 2021
» Duas aplicações digitais (em datas distintas)
» Aprimoramento dos moldes da aplicação-piloto/2020
» Opcional para os participantes (opção no ato da inscrição)
» Duas aplicações em papel:
l Enem regular
l Enem reaplicação para os dois modelos
Enem 2022 a 2025
» Até quatro aplicações digitais (em datas distintas)
» Opcional para os participantes (opção no ato da inscrição)
» Duas aplicações em papel:
l Enem regular
l Enem reaplicação para os dois modelos
Enem 2026
» Totalmente digital
» Diversas aplicações regulares, distribuídas ao longo do ano
» Reaplicação também em modelo digital
Fonte: Inep/MEC
E O QUE AINDA É PRECISO ESCLARECER
» Como se dará a segurança digital para impedir o vazamento de questões e provas?
» Como será a produção da redação (manuscrita ou digitada)?
» A correção por Teoria de Resposta ao Item (TRI) vai permanecer?
» A questão digital terá o mesmo nível de informação para o candidato em relação àquelas aplicadas em papel?
» Como será o treinamento de alunos que não têm computador ou acesso a laboratórios de informática?
» Como serão garantidas máquinas e internet para que os alunos façam as provas, já que há deficiência nesse tipo de infraestrutura em várias escolas públicas pelo país?