Santana do Deserto e Rio Doce – Um erro construtivo ou, pior, a realização de obra usando material de qualidade questionável são causa apontadas como responsáveis por um atraso de três anos na remoção dos rejeitos de minério provenientes do desastre da Samarco, em Mariana, que ficaram depositados na Represa de Candonga, no município de Rio Doce. A situação empurrou para 2021 a previsão para que a Hidrelétrica Risoleta Neves volte a produzir energia. A expectativa inicial era 2018. O atraso ocorreu devido a uma trinca que fez ruir parte do maciço de mais de 15 metros de altura de um dique feito de rochas, areia e solo compactado projetado para receber 3 milhões de metros cúbicos dos rejeitos depositados pelo rompimento da Barragem do Fundão, em 2015. Além dos atrasos e da permanência da lama dentro dos remansos do lago – na prática, ainda dentro do Rio Doce – trouxe também pânico para a comunidade de Santana do Deserto, que vive abaixo do barramento e vê um drama do passado voltando à tona.
A Fundação Renova, responsável por lidar com os efeitos do desastre, sustenta que ocorreu uma “falha geológica (trinca)” e por causa disso o planejamento do dique na Fazenda Floresta (veja arte) foi abandonado. A ideia, agora, seria construir pequenas barragens para receber o material do rompimento. Contudo, a reportagem do Estado de Minas esteve na represa em companhia de um engenheiro e de um profissional de geotecnia, integrantes de empresas que trabalham nas obras. Eles têm uma outra explicação, menos eventual, para o que ocorreu. Pela avaliação dos profissionais, o que comprometeu a construção foi o uso de material proveniente de uma pedreira e de areia de baixa qualidade como insumos, por poderem ser extraídos de dentro do terreno dos canteiros de obras, o que os tornava mais baratos. O dique programado para receber os rejeitos vazados da barragem da Samarco cedeu no início do ano e comprometeu todos os processos de retirada de lama de minério.
O rompimento da Barragem do Fundão despejou 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos nos rios Gualaxo do Norte, do Carmo e Doce, obrigando a Hidrelétrica Risoleta Neves, na Represa de Candonga, a abrir suas comportas para ter capacidade de reter parte da onda de lama. Ao todo, 10 milhões de metros cúbicos se depositaram no fundo do lago, impedindo a geração de energia. A equipe do EM entrou em contato com o Grupo de Gestão de Candonga, mas não obteve informação sobre os prejuízos acumulados nesses quatro anos de interrupção.
Porém, em sua página na internet, que parece ter sido atualizada pela última vez em fins de 2016, o empreendimento informa que a usina tem potencial para gerar “140MW/h (megawatts por hora), que consegue suprir o fornecimento de energia de uma cidade com cerca de 400 mil habitantes, o que equivale a atender cidades como Ponte Nova, Viçosa, Guaraciaba, Ouro Preto, Mariana e Ubá, entre outras cidades da Zona da Mata, simultaneamente”. Potencial que está inoperante desde novembro de 2015.
O plano de recuperação ambiental proposto para Candonga pela Fundação Renova, em 2016, envolvia retirar cerca de 3 milhões de metros cúbicos de rejeitos para um dique na Fazenda Floresta. Naquele local, o material úmido seria drenado e a água resultante, que representa 80% da composição, seria tratada e devolvida ao Rio Doce. Após esse processo, o rejeito seco seria removido do dique para pilhas em áreas afastadas na mesma propriedade.
Mas isso não é o que está acontecendo. Na companhia dos dois profissionais que trabalham em empresas ligadas às obras, a reportagem constatou que o canteiro de obras foi abandonado. As dragas que bombeavam rejeitos do fundo foram desmobilizadas. Rejeito da parte alta do rio e dos remansos continuam a entrar no lago, mantendo o processo de concentração do material proveniente da mineração.
Um dos profissionais de engenharia viu de perto todo o processo de instalação do canteiro em Candonga. “Durante uns seis a oito meses, as obras eram feitas com material do mercado, de boa qualidade. Porém, enquanto isso, uma empresa foi contratada para fazer prospecção. Queriam encontrar rochas e areia no terreno da Fazenda Floresta, para baratear os custos e aumentar a velocidade (das obras)”, conta. De acordo com ele, para a construção do dique de rejeitos foram extraídos 70 mil metros cúbicos de areia e 60 mil metros cúbicos de pedras. “Quando acharam as rochas, viram que estavam a 16, 18 metros de profundidade. Foram seguindo o veio que só aflorava na fazenda vizinha, que foi comprada para poder fazer a extração”, conta o engenheiro. O local é considerado muito próximo do dique, a apenas 500 metros, e para ser feito, segundo o engenheiro, precisou desmatar área de proteção permanente (APP) e lançar detritos em um córrego da bacia.
ESTACA ZERO A extração de rochas parecia correr bem. Até que, após uma sequência de detonações para desagregar as pedras, os trabalhadores notaram abalos no dique projetado para recebimento de rejeitos. “As pedras e a areia eram muito ruins, de um material decomposto, considerado de segunda ou terceira qualidade, que é impróprio para construção civil, (para montagem de) drenos e contenções. Sua utilização comprometeu toda a obra”, indicou outro profissional, ligado à área de geotecnia. “Quando começaram as detonações, isso afetou o dique. Primeiro, trincou a estrutura e as laterais começaram a desbarrancar. Aí desceu tudo (a estrutura lateral do dique) e foi preciso paralisar a obra. A prefeitura e a comunidade entraram no meio. Ficaram com medo. Se está assim, (com o dique) vazio, imagina quando estiver cheio? Foram quase quatro anos mexendo e até agora não conseguiram sair do lugar”, critica o especialista.
Os dois profissionais ouvidos pela reportagem consideram que a extração desse material impróprio foi o que causou a paralisação das obras. “Para que abrir uma pedreira ineficiente, na pressa? Pagaram um dique de mais de R$ 90 milhões e precisaram gastar mais R$ 10 milhões a R$ 15 milhões para consertar tudo”, criticou um deles.
Mas o rompimento do dique não foi o único problema. Segundo os dois trabalhadores que estiveram envolvidos nas obras, a rocha encontrada é tão frágil que depois das detonações a própria jazida começou a ficar comprometida. “Depois que detonaram, detonaram e detonaram, surgiu uma trinca gigante em cima da pedreira. Aí, colocaram uma biomanta e fizeram revegetação para tampar aquilo lá. Só que aí um funcionário caiu no buraco. Aí, desmobilizaram a obra. É preciso que as autoridades fiqueem atentas. Parece que já estão procurando mais pedreiras no terreno para fazer o resto da obra”, denuncia o engenheiro ouvido pelo EM.
O medo em nova barragem
Rio Doce e Santana do Deserto – “Voltou o medo de arrebentar tudo aí para cima de novo e levar as casas da gente embora. Todo mundo está preocupado. Ninguém descansa a cabeça no travesseiro.” As palavras temerosas do lavrador João Ribeiro, de 68 anos, descrevem a volta de um fantasma que estava sendo esquecido em Santana do Deserto, município de 3.860 habitantes que fica à beira do Rio Doce, bem abaixo da Represa de Candonga. A comunidade viveu momentos de pânico em 2015, após o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, pois temia que os mais de 10 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro despejados sobre o reservatório provocassem o colapso de Candonga e a destruição da cidade. O medo, agora, é de que o dique construído a um quilômetro para receber os rejeitos removidos do fundo do lago volte a apresentar problemas e venha a ruir sobre as construções rio abaixo. Nas ruas da pequena comunidade mais próxima do Rio Doce as pessoas dizem que não foram alertadas sobre nada pelas autoridades ou executores das obras do dique. Enquanto isso, boatos circulam dando conta de riscos que apavoram os habitantes vizinhos.A equipe do Estado de Minas foi até a área do dique e constatou que lá também não vêm sendo feitos mais trabalhos. A estrutura de pedras e terra erguida para conter o material vazado de Fundão e bombeado do fundo do lago de Candonga não exibia as rachaduras denunciadas pelos funcionários que trabalham na obra e acompanharam o EM. “Foi tudo recoberto, mas os trabalhos pararam. O problema é que se avançar sobre uma estrutura feita com as pedras de má qualidade, da próxima vez que ruir pode ser pior, pode ser com rejeitos dentro. Então, fica a dúvida, se reforçam ou refazem o dique”, afirma o engenheiro integrante de empresa que trabalha nas obras e que mostrou o canteiro na condição de não ter sua identidade revelada.
E dúvida sobre o futuro da intervenção reverbera na comunidade de Santana do Deserto, que fica a apenas um quilômetro do dique por uma estradinha de terra que vai margeando o Rio Doce alguns metros à frente das comportas abertas da Barragem de Candonga. “Sempre morei na beira do Rio Doce e quando esse trem (a lama da Barragem) passou aqui ficamos assustados, sem saber se a represa ia aguentar ou se ia jogar tudo para cima da gente. Depois mudou tudo. Antes mexia com roça e pescava nesse rio. Agora a água não pode mais usar nem na roça, não tem condição de pescar mais, porque o peixe está ruim, cheio de minério”, conta o lavrador João Ribeiro, que vive a poucos metros das margens do rio com a mulher e a sogra.
“A gente fica muito preocupada, porque não sabe se o pior pode acontecer quando a gente estiver dormindo”, afirma a dona de casa Auxiliadora Arlindo de Souza Alves, de 41 anos. A falta de informações concretas é o que mais aflige ela e os três filhos, de 23, 22 e 21 anos, que moram com ela a menos de cinco metros do Rio Doce. “A gente escutou falarem que o dique tinha rompido e que tinha de desmanchar para fazer um outro de novo, em vez de arrumar esse. Mas não veio ninguém da Renova aqui para falar sobre isso com a comunidade”, conta, em referência à fundação criada para lidar com os reflexos da tragédia de Mariana.
Após o rompimento da Barragem do Fundão, várias placas orientando sobre rotas de fuga da comunidade em caso de novos rompimentos foram instaladas. Mas, de acordo com pessoas ouvidas na comunidade, não ocorreu um treinamento nem uma orientação das autoridades competentes, como a Defesa Civil, sobre como agir em caso de desastre. Com isso, no caso de uma emergência já há pessoas com planos alternativos em mente, como a família da dona de casa Auxiliadora Arlindo. “Se romper, as placas mandam a gente correr para baixo (no sentido da igreja central da comunidade), na direção de onde o rio corre. A gente não confia nisso, não. Combinamos de fugir morro afora, no meio do pasto, porque se vier a lama descendo em cima da gente, ficamos num lugar mais alto”, disse.
Recuperação para na 1ª fase
O dique na Fazenda Floresta seria a segunda fase do programa de recuperação da Barragem de Candonga, responsável por receber quase 3 milhões de metros cúbicos de rejeitos depositados do fundo do lago de Candonga. Essa dragagem é a primeira fase. Depois do dique, o rejeito seria drenado na terceira fase e o material seco seguiria para ser empilhado, na quarta fase. Os problemas no dique fizeram com que tudo parasse ainda na etapa inicial. Com isso, o rejeito removido dos primeiros 400 metros antes do barramento acabaram sendo depositados em barramentos nos remansos do lago, o que na prática significa que ainda estão dentro do Rio Doce.
Acompanhada de dois profissionais que trabalham nas obras, a equipe de reportagem do EM chegou a dois desses depósitos que em tudo lembram barragens. Em um desses remansos foi construído o chamado Dique 4, erguido sobre outro represamento, que recebeu milhares de metros cúbicos de lama e rejeitos de mineração. A estrutura criada para ser provisória já está há mais de um ano com o material, que deveria seguir para o dique planejado originalmente.
Como essa remoção ainda não ocorreu, as chuvas e o próprio curso do riacho que deságua em Candonga reintroduzem o material depositado no lago. O dique é uma estrutura de cerca de 10 metros de altura, construída com rochas empilhadas e uma armação de concreto. Grandes mangueiras espiraladas que foram usadas para tirar os rejeitos dragados do fundo da represa ainda estão expostas nos barramentos construídos para reter esse material, mas não estão mais ligadas às dragas, que foram desmobilizadas.
Com isso, o Dique 4, que era um remanso da represa de Candonga, se tornou um reservatório de 4.300 metros quadrados de rejeitos, erguido a 10 metros de altura sobre um outro dique de material dragado, de 5.800 metros, soterrando completamente o afluente que traz água das montanhas para o Rio Doce. “Cada vez vai descendo mais barro. O lago tem 14 quilômetros. Desses 14 quilômetros, não se conseguiu dragar 400 metros. Ainda está tudo na área do lago, nos remansos. E a lama não para de vir”, aponta o engenheiro que acompanhou a reportagem. “Se a Renova veio aqui para resolver um problema, não podem piorar a situação com mais impactos”, afirma o geotécnico que também participou da visita.
Punida, fundação vê normalidade
A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Semad) informou que a Fundação Renova “não possui licença ambiental para a retirada de material da Pedreira Corcini (Fazenda Floresta)”. “As ações ali desenvolvidas foram informadas como emergenciais, para abastecimento, com material a ser utilizado em construção civil, em obras emergenciais na Fazenda Floresta, e serão regularizadas no processo de licenciamento corretivo da Fazenda Floresta”, acrescentou, em nota.
A Fundação Renova, segundo a Semad, também não tem autorização para supressão de vegetação em área de preservação permanente (APP) ou na região da Fazenda Floresta como um todo. “O que se executou foi baseado em ofício de emergencialidade”, contudo, a Renova “recebeu dois autos de infração, por intervenção em APP sem autorização”.
O Comitê Interfederativo (CIF) criado pelo poder público para ordenar as ações de reparação do rompimento da Barragem do Fundão emitiu multa à Fundação Renova referente à não retomada das atividades da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, ratificada em 28 de maio de 2019. Caso haja nova repactuação de prazos e obrigações, a contagem da multa diária poderá ser suspensa, considerando-se como data final o futuro protocolo de documentação da Fundação Renova. O valor da multa aplicada pelo CIF era de R$ 36 milhões, em maio de 2019.
A Fundação Renova informou que “a pedreira foi explorada para produzir agregados (pedras) que foram aplicados nos projetos de contenção das margens e no enrocamento do dique principal”. “A qualidade do agregado para a utilização no enrocamento foi aferida e aprovada conforme laudos de caracterização geotécnica elaborados por laboratório certificado (Solocap). A exploração foi realizada por meio de detonação de baixa escala, conforme norma vigente, e não houve registro de anormalidades. As atividades da pedreira supracitada foram encerradas em janeiro de 2019 e os projetos de descomissionamento e Plano de Recuperação de Áreas Degradadas (Prad) já estão em andamento”, informou, em nota.
Sobre as trincas e a queda de parte do dique, a Renova caracteriza como “uma possível anormalidade no dique de recebimento de rejeitos”, indicando que “não foi apresentado nenhum problema construtivo ou geotécnico”. Sobre o abandono do projeto, afirma que “em função dos avanços dos estudos de engenharia, no início de 2019 foi revisto o conceito geral do processo e o dique principal também foi extinto, com a adoção de estruturas menores e com menor risco operacional”.
Sobre os temores da população ribeirinha, destaca a Renova que “concomitante às obras, são realizadas visitas periódicas da comunidade de Santana do Deserto e circunvizinhas, representantes das comissões de atingidos, nas instalações e obras. Nessas visitas são explicados conceitos, condições de segurança geotécnica e operacional das estruturas e status dos serviços”.