De um lado, a necessidade de medidas para que produtores rurais do semiárido mineiro, que compreende o Norte do estado e o Vale do Jequitinhonha, possam enfrentar os longos períodos de estiagem que assolam a região. De outro, o alerta para riscos da construção de barramentos, diante de desastres como o rompimento da barragem do Quati, no município de Pedro Alexandre, no Nordeste da Bahia, que no dia 11 deste mês expulsou de suas casas mais de 3 mil pessoas, entre desabrigados e desalojados. Entre essas duas preocupações, uma decisão do Conselho Estadual de Recursos Hídricos multiplica por mais de 13 vezes o atual limite permitido para barragens de água na região mais vulnerável à seca em Minas.
O CERH aprovou a alteração na Deliberação Normativa 9, de 2004, que ajusta o volume máximo a ser considerado como uso insignificante de água (uso doméstico, consumo humano e animal e para pequena irrigação) para as acumulações superficiais em dez Unidades de Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos do semiárido mineiro. A mudança contempla 182 municípios mineiros que sofrem com a adversidades climáticas. Com ela, o limite de acumulação, que era de 3 mil metros cúbicos, foi ampliado para até 40 mil metros cúbicos.
A medida é comemorada por produtores do Norte de Minas, diante da maior possibilidade de “segurar a água da chuva” e atravessar o período crítico da estiagem, que vai de abril a outubro. Mas especialistas lembram que será necessário o reforço da fiscalização das construções, para evitar riscos de rompimento das estruturas, advertindo também que os barramentos de até 40 mil metros cúbicos, sem preservar vazão mínima ecológica dos rios, poderão deixar sem água moradores abaixo dos reservatórios, aumentando a possibilidade de conflitos.
O presidente da Sociedade Rural de Montes Claros, José Luiz Veloso Maia, afirma que a mudança no limite de acumulo de água vai trazer um grande benefício para os produtores rurais na convivência e no enfrentamento da seca. “O limite de 3 mil metros cúbicos de água é muito pequeno. Com o aumento para 40 mil metros, o produtor terá condições de fazer barramentos que realmente permitam ter água para atravessar a seca e manter a sua atividade. Essa mudança é um divisor de águas para a classe rural do Norte de Minas”, afirma Veloso Maia.
Na mesma linha, João Damásio Pinto, também produtor rural da região, considera que alteração na norma é de fundamental importância para a recuperação do lençol hídrico. “Nosso subsolo é cárstico e essa medida vai facilitar para que a água infiltre e abasteça o lençol freático. É um grande avanço que vivenciamos”, avalia.
O professor Flávio Gonçalves Oliveira, do Instituto de Ciências Agrárias (ICA) da Universidade Federal de Minas Gerais em Montes Claros, avalia como muito positiva a ampliação do volume de barramentos. “A medida permitirá ao produtor rural ou mesmo à comunidade ter mais segurança hídrica, tanto para dessedentação humana e animal quanto para produção agrícola. O volume anteriormente permitido era insuficiente para o atendimento das necessidades em nossa região”, afirma ele, também diretor de Recursos Hídricos da Sociedade Rural de Montes Claros.
Segundo o especialista, a mudança permitirá que se acumule mais água, “reduzindo de sobremaneira as enchentes, pois o escoamento superficial proveniente das chuvas mais intensas será em parte acumulado”. “Essa água acumulada também proporcionará uma maior quantidade infiltrada, aumentando o abastecimento do lençol freático e consequentemente alimentando os rios”.
CONFLITOS
Já o professor Flávio Pimenta de Figueiredo, do Departamento de Engenharia Agrícola da UFMG, pensa diferente. “Numa região de poucas chuvas, fazer barramentos até 40 mil metros cúbicos, sem deixar a vazão mínima dos rios poderá deixar moradores sem água e aumentar os conflitos por causa dos recursos hídricos”, alerta Pimenta. “Para mim, essa mudança pode ser um tiro pé”, alerta o especialista, chamando atenção para a necessidade do reforço da fiscalização. Ele salienta que os barramentos podem ser feitos nos rios, mas sempre respeitando a vazão mínima ecológica, que equivale a 70% da vazão do manancial.
Autoridades defendem ampliação dos limites
A diretora-geral do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), Marília Carvalho de Melo, afirma que a mudança na dimensão dos reservatórios foi feita pelo Conselho Estadual de Recursos Hídricos exatamente para garantir a segurança hídrica na região do semiárido. “Em regiões com pequena disponibilidade de água, uma das poucas soluções para segurança hídrica é a reserva”, disse.
Questionada sobre a razão do aumento em mais de 13 vezes do limite máximo da quantidade de água armazenável em propriedades rurais, Marília Melo afirmou que o Igam fez uma avaliação do cenário de escassez hídrica e incertezas envolvidas acerca da disponibilidade futura de água, considerando as alterações no regime de chuvas já observadas. Além disso, pesquisou os tamanhos dos barramentos do chamado “uso insignificante” nos estados nordestinos. Foram verificados limites de barragens de 50 mil m3 (Sergipe e Piauí), de 200 mil m3 (Pernambuco) e até de 300 mil m3 (Rio Grande do Norte).
Marília Melo destaca que os reservatórios com até 40 mil metros cúbicos representam uma ação importante no enfrentamento da seca. “Uma barragem com 40 mil metros cúbicos de água é suficiente para atender a uma comunidade de 600 habitantes durante 17 meses com um consumo per capta de 130 litros por dia”, observa.
Segundo a presidente do Igam, com o reforço da fiscalização será afastado o risco de que barragens com volume ampliado venham deixar completamente secos os leitos dos rios a partir dos pontos que forem construídos os barramentos. “Todo produtor que fizer algum barramento em qualquer curso d'água é obrigado a deixar uma vazão mínima, a chamada descarga de fundo do rio. Para que essa vazão seja respeitada, é feita a fiscalização”, assegura Marília Melo.
O secretário de estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, Germano Vieira, enalteceu a decisão do Conselho Estadual de Recursos Hídricos. “A sensibilidade dos conselheiros foi fundamental para compreender o problema e deliberar por uma solução concreta que, certamente, mudará os paradigmas da reservação de água, beneficiando milhares de mineiros e mineiras daquela região”, considerou.
Projetos e fiscalização serão indispensáveis
O professor Evandro Moraes Gama, do Departamento de Engenharia de Minas da Universidade Federal de Minas Gerais, salienta que a construção de barragens para o acumulo de 40 mil metros de água nas propriedades rurais do semiárido mineiro, autorizadas pelo Conselho Estadual de Recursos Hídricos, necessita de projetos bem elaborados para evitar riscos de rompimento. “Acumular água em barragens requer projeto e construção muito bem elaborados e executados”, alerta. O especialista também lembra da importância da fiscalização e do monitoramento dos barramentos: “Deve haver fiscalização dos órgãos competentes para a aprovação dessas barragens”.
“Risco sempre existira em qualquer obra realizada pelo homem. E com barragem não é diferente”, afirma. Mas o professor acredita que é preciso assumir o risco para melhorar a irrigação. “Esses barramentos melhoraram a quantidade de água para favorecer a população. Toda engenharia tem risco. Mas, é totalmente diferente de uma barragem de rejeitos, pois são projetos (barramentos em rios) em prol da vida”, avalia.
Por sua vez, o professor Ricardo Mota Pinto Coelho, do Departamento de Biologia Geral da Universidade Federal de Minas Gerais e atualmente docente do Departamento de Geociências da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), afirma que as barragens necessitam de planejamento. “Uma barragem pequena, mal planejada, sem o necessário apoio técnico, não vai aliviar sede e não vai aliviar a seca de ninguém. A ideia pode ser boa, mas se tiver dentro de uma política pública, em que a construção dessa barragens seja feita de acordo com critérios técnicos e bem definidos”, acentua.
O especialista ressalta que a construção dos reservatórios deve ser fiscalizada para evitar problemas ambientais. “Se o produtor constrói uma pequena barragem em um pasto e não faz nenhuma proteção contra a erosão superficial, não faz nenhuma proteção contra o desmatamento, essa barragem passa a ser uma bacia de decantação de sedimentos. Isso implica, entre outras coisas, no aparecimento de brejos onde não deveria haver. E quando aparecem brejos de uma hora para outra, podemos ter a invasão de vetores de doenças tropicais”, ressalta Pinto Coelho. Entre as doenças ele cita a dengue, febre amarela, chikungunya e esquistossomose.