Em meio a uma polêmica entre a Polícia Civil e a Justiça de Minas Gerais, o assassinato de mais uma mulher apontada como vítima do ex-companheiro faz disparar as estatísticas associadas ao feminicídio em Belo Horizonte. Segundo dados oficiais, os casos do tipo na cidade deram um salto de 250% entre janeiro e julho deste ano na comparação com o mesmo período de 2018. A mais recente vítima foi Tereza Cristina Peres de Almeida, de 44 anos, executada ao lado do filho, Gabriel Peres Mendes de Paula, de 22, ao sair de uma academia no Bairro Ipiranga, na Região Nordeste da capital. O principal suspeito do duplo homicídio é o microempresário Paulo Henrique da Rocha, de 33, que havia tido um relacionamento com Tereza.
Pedidos de socorro ao poder público na tentativa de evitar o desfecho não faltaram: denúncias de agressões culminaram na abertura de cinco inquéritos por violência e em três pedidos de medidas protetivas contra o suspeito. Houve também pelo menos um pedido de prisão contra paulo Henrique, que a polícia diz ter sido negado pela Justiça. “O pedido de prisão foi feito, assim como foi informado à Justiça o descumprimento da medida protetiva. E, com certeza, a prisão do agressor seria importantíssima. A vítima também poderia ter aderido ao abrigo que foi oferecido a ela, para ficar mais bem protegida nesse momento”, disse a delegada Isabella Franca, da Divisão Especializada em Atendimento à Mulher, ao Idoso e à Pessoa com Deficiência e Vítimas de Intolerância. O Judiciário, porém, questiona a forma como o processo foi fundamentado.
De toda forma, o acusado, que está foragido, permaneceu solto e agora segue sendo procurado. O caso está inserido na estatística negativa da violência contra mulher na capital mineira. O número de feminicídios mais que triplicou nos primeiros sete meses, em comparação com o mesmo período do ano passado. Em 2019 foram sete registros, contra dois de 2018. A violência está disseminada pelo estado. No Sul de Minas, ontem, uma mulher foi assassinada a facadas pelo namorado, que suspeitava de traição.
No caso da morte de Tereza, os ataques atribuídos ao acusado nem mesmo foram as primeiras acusações de violência contra a mulher na trajetória de Paulo Henrique da Rocha. De acordo com a Polícia Civil, além dos inquéritos a que respondia por seu relacionamento com a vítima e dos pedidos de medidas protetivas, o suspeito teria ameaçado outras duas ex-namoradas, que fizeram denúncias contra ele em 2007 e em 2014.
Segundo a delegada Isabella Franca, o histórico de violência contra Tereza tinha dois anos. “Em novembro de 2017 ela procurou a unidade policial, representou pela medida protetiva. Um inquérito foi aberto para investigar. As medidas foram remetidas à Justiça, assim como o inquérito. Tudo indica que ela voltou a se relacionar com ele. Em 2019, procurou a unidade policial novamente e solicitou medidas protetivas. Também foram instaurados inquéritos para apurar tanto ameaça quanto lesão corporal, bem como divulgação de fotos íntimas dela”, explicou a policial.
Entre os delitos praticados contra Tereza estão ameaça, agressão, danos ao patrimônio e divulgação de imagens íntimas da vítima. Segundo a Polícia Civil, a última medida protetiva deferida contra Paulo Henrique ocorreu em abril. Ele chegou a ir à delegacia para assinar um termo em que demonstra estar ciente da providência.
Na cabeça
Mas denúncias e medidas não foram capazes de evitar uma tragédia que parecia anunciada. Tereza e seu filho Gabriel foram assassinados por volta das 22h de segunda-feira, próximo à Avenida Bernardo Vasconcelos, no Bairro Ipiranga, Região Nordeste de BH. Mãe e filho tinham acabado de sair de uma academia quando foram surpreendidos e baleados. Imagens de uma câmera de segurança da região mostram o momento em que o assassino atira contra as vítimas. Ele usava uma blusa escura de capuz e fugiu em um veículo sedã preto. Tereza foi atingida por quatro tiros – três no peito e um na cabeça. Já o filho dela morreu com um tiro no ouvido.
Para a Polícia Civil, não há dúvida de que o crime foi cometido pelo ex-companheiro de Tereza. “Temos as câmeras e todo o histórico do relacionamento. Por meio do próprio histórico que ele criou, ameaçando, batendo, praticando todo tido de violência contra a mulher, ele assinou a própria sentença”, diz a delegada Ingrid Estevam, do Núcleo Especializado na Investigação de Feminicídios.
Tereza trabalhava como agente de combate a endemias no Centro de Saúde Dom Cabral, na capital. Em nota, o Sindicato dos Servidores e Empregados Públicos de Belo Horizonte (Sindibel) lamentou a morte. “O Sindibel se solidariza com a família, os amigos e os colegas da servidora, mas também chama atenção para o alarmante crescimento de 300% no número de mulheres mortas em Belo Horizonte, neste primeiro semestre, alvos de violência doméstica e familiar, segundo dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais”, afirmou.
O assassinato de Tereza entra para a estatística das mulheres mortas por menosprezo pela condição feminina, discriminação ou por violência doméstica, condição que, segundo a lei, caracteriza o feminicídio. E os crimes estão cada vez mais violentos. “Temos observado que esse tipo de crime está com a violência cada vez mais exacerbada”, disse o delegado Emerson Morais, titular da Delegacia Especializada de Crimes Contra a Vida. “Hoje a violência contra a mulher está em voga, e a repressão a esses crimes também tem tido atenção especial por parte do Estado, tanto pela Polícia Militar, quanto pela Polícia Civil”, disse.
Juíza decide mudar rotina
A juíza Maria Aparecida Consentino Agostini, do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, lamentou ontem o assassinato de Tereza. "Estamos consternados, porque esse foi o primeiro feminicídio da nossa Vara desde quando a assumi, em maio de 2016”, disse. A magistrada, porém, questionou a fundamentação da Polícia Civil para o pedido de prisão contra o acusado, que acabou sendo negado. Mas prometeu mudar a prioridade na avaliação de processos em que haja antecedentes graves, como o de Tereza.
A juíza informou que a vítima sofreu uma agressão física em janeiro deste ano, quando estava em um hotel em Natal, no Rio Grande do Norte. “Ela chegou a Belo Horizonte e registrou ocorrência, fazendo pedido de medida protetiva, que foi concedida imediatamente. Foi à polícia dia 22 de janeiro e no dia 23 as medidas já haviam sido concedidas”, disse. Posteriormente, ainda segundo a magistrada, a vítima foi a uma audiência de acolhimento e disse que a situação já havia sido resolvida. Já em março, de acordo com a juíza, ela procurou a delegacia para denunciar Paulo Henrique por divulgação de fotos íntimas.
"Poderia, sim, ter pedido prisão depois da nova agressão. Isso não foi feito. Mas, o Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Civil, o Estado não conseguem estar com os olhos em todos os lugares"
Maria Aparecida Consentino Agostini, juíza do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Segundo a juíza, a delegada responsável pelo caso pediu a prisão do agressor e a apreensão dos equipamentos eletrônicos, com base nesse crime. “O pedido de prisão foi baseado na divulgação de fotos intimas e de criação de perfil falso. Assim, foi concedida a medida judicial cabível – que era a busca e apreensão dos aparelhos. (…) Não é qualquer agressão que vai acabar em uma prisão. Para o juiz conceder a medida extrema, que é tirar a liberdade de uma pessoa, ele precisa de fundamentos na condição e fundamentos nos fatos do processo. Então, obviamente, quando a agressão é grave e o pedido chega embasado, a prisão é decretada”, afirmou.
Em maio houve nova ocorrência envolvendo o casal. “Depois de ter sido intimado, diante da medida protetiva que foi deferida no fim de abril, ele foi até a casa da vítima para ameaçá-la. Desesperada, ela procurou a delegacia. A partir daí, não teve nenhum pedido de prisão preventiva. O inquérito estava na Polícia Civil para apuração”, sustentou.
Ela acredita que, devido ao histórico de agressão do autor, a corporação poderia ter feito novo pedido de prisão. “Poderia, sim, ter pedido prisão depois da nova agressão. Isso não foi feito. Mas, o Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Civil, o Estado não conseguem estar com os olhos em todos os lugares”, disse.
A juíza afirma que se sente tranquila e considera que a Justiça “fez o melhor, com agilidade”. “Mas, com certeza, é necessário maior empenho do Estado”, admitiu. “A Lei Maria da Penha é uma das melhores, mas precisa ser mais efetiva. Precisamos ter mais políticas públicas que unam todas as instituições a favor da defesa da mulher”, disse.
A juíza afirmou que, depois do assassinato de Tereza, decidiu mudar a forma de trabalho da vara: “Os casos em que temos antecedentes graves vão receber uma faixa amarela no processo, para correr com mais urgência e prioridade.”
A Polícia Civil apurou que João Cândido já tinha histórico de violência contra mulheres. “Há 12 anos, ele tentou matar uma namorada, mas não conseguiu. Ficou detido por 15 dias e foi colocado em liberdade. Como o registro é antigo, não temos mais detalhes, mas a tentativa de homicídio foi confirmada pelo próprio autor”, detalhou o delegado Daniel Leme, responsável pelo caso.
Uma história que se repete
Feminicídio no Sul de Minas ontem repetiu o enredo de crimes praticados por homens com histórico de violência contra mulheres. A vítima, de 54 anos, foi assassinada a facadas na madrugada em Santa Rita do Sapucaí, no Sul do estado. O namorado dela, João Venceslau Cândido, de 68, foi preso e confessou o crime. Ele disse que estava com ciúmes da companheira, que estaria conversando com outro homem. Depois de deixar o local do crime, o agressor tentou tirar a própria vida. Ele foi levado para o hospital. Mais tarde, recebeu alta e foi encaminhado para a delegacia. Segundo a Polícia Civil, João Cândido já tinha sido preso há 12 anos por tentativa de homicídio contra outra namorada e terminou em liberdade 15 dias depois.
O crime ocorreu por volta das 5h. De acordo com a polícia, João Cândido contou que, como fazia todos os dias, foi até a casa de Cleide Maria Gomes, no Bairro São Roque, para levá-la ao trabalho quando os dois se desentenderam. “Durante a discussão, ele pegou uma faca e deu vários golpes nela”, contou o tenente Elias Daniel da Motta Yanase. O crime ocorreu na rua, a aproximadamente 30 metros da residência da vítima.
Os militares fizeram os levantamentos inicias e encontram imagens de câmeras de segurança que mostravam o veículo do autor. Também obtiveram informações de testemunhas de que o automóvel pertencia a João Cândido. Diante das apurações, um cerco foi feito na cidade e em municípios vizinhos para prender o homem, encontrado horas depois na BR-459, em Brasópolis, na mesma região. “Ele deu três facadas no próprio peito com o intuito de se matar. Depois, jogou o carro contra uma árvore”, informou o tenente. O homem foi socorrido no Pronto-Socorro de Santa Rita do Sapucaí e prestou depoimento depois de receber alta do hospital.
De acordo com a PM, ao ser preso, João Cândido confessou o crime e creditou o ato a ciúmes devido a uma suposta traição da mulher. O suspeito contou que questionou a namorada no domingo e que ela assumiu ter conversado com outro homem mas negou que tivesse saído com ele.
Investigações
A Polícia Civil apurou que João Cândido já tinha histórico de violência contra mulheres. “Há 12 anos, ele tentou matar uma namorada, mas não conseguiu. Ficou detido por 15 dias e foi colocado em liberdade. Como o registro é antigo, não temos mais detalhes, mas a tentativa de homicídio foi confirmada pelo próprio autor”, detalhou o delegado Daniel Leme, responsável pelo caso.
Na delegacia, João Cândido permaneceu calado. Ele estava na presença de um advogado. O inquérito está quase concluído. A polícia aguarda os resultados da perícia na faca usada no crime e dos exames do Instituto Médico-Legal (IML). Imagens de câmeras de segurança também serão usadas nas apurações.
“As imagens estão um pouco distorcidas, mas dá para ver que é ele”. De acordo com o delegado, as imagens mostram o suspeito prensando a vítima contra o muro e a segurando pelo pescoço, como uma esganadura. Depois, a câmera perde um pouco o foco e não mostra o momento em que ela é esfaqueada. Na imagem seguinte, ele é visto fugindo do local.