“Puxa vida! Tem mais de 50 anos que não chego perto de um bonde!” Com olhos curiosos e expressão no rosto marcada pela saudade, o aposentado Osmar Nunes Coelho, de 88 anos, morador do Bairro Lagoinha, reencontrou o transporte público da sua juventude no jardim do Museu Histórico Abílio Barreto, em Belo Horizonte.
Como seria se os bondes ainda existissem em Belo Horizonte
Como seria se os bondes ainda existissem em Belo Horizonte
Atento a cada detalhe do exemplar que saiu de circulação na capital em 1963, o bem-humorado Osmar lembrou do trajeto que mais gostava: nos fins de semana, seguia com os amigos do Centro até o ponto final, no Zoológico, na Pampulha, para pescar e tomar umas e outras. “Era muito divertido e útil, o bonde ia para todo canto”, relembra o aposentado enquanto admirava os antigos anúncios afixados no interior do veículo.
Em Minas, os últimos bondes saíram de cena – e dos trilhos – há exato meio século, em Juiz de Fora, na Zona da Mata. Deixaram rastros em alguns trechos, lutando contra o peso do asfalto, nostalgia em muita gente e uma pergunta no ar: Ainda poderiam estar em operação, mesmo de forma turística, como ocorre em outras cidades mundo afora?
O empresário Agenor Nunes Guerra, de 90, casado, acredita que os bondes fazem falta, ainda mais nessa época de caos urbano e transporte público deficitário: “Para fomentar o turismo, seria oportuno”. Viajante contumaz em outras épocas, ele cita como exemplo a cidade de São Francisco, na Califórnia (EUA), que mantém o bonde na Rua Powell. Também passageira dos bondes, a costureira Heloísa Motta Amorim, de 79, moradora do Bairro Luxemburgo, se recorda de algumas curiosidades.
- Foto: Você pode imprimir este código ou mirar a câmera de um telefone para esta tela
Diante do veículo que atrai visitantes no museu, ela lê anúncios de produtos ainda no mercado e outros bem distantes deste século. E mostra os bancos de madeira e os estribos. Os primeiros, tinham o encosto móvel, de forma a facilitar a volta do veículo ao “abrigo” inicial, enquanto, nos estribos, os cobradores se equilibravam passando atrás dos passageiros. Essa palavra, na filosofia popular, ganhou um ditado saboroso: “Tudo na vida é passageiro, menos o condutor e o motorneiro”.
Bondes de volta às ruas
Nesta proposta, referenciamos o passado a partir de uma provocação: como seria se os veículos sobre trilhos ainda subissem Bahia e descessem Floresta? BH era menor, menos populosa e a extensão da malha dos bondes (73km) superava o que hoje representa a soma das quilometragens alcançadas por Move e metrô.
Desse tempo, as lembranças de Osmar, Agenor e Heloísa ganham vida a partir do recurso tecnológico. Versões estendidas em áudio dos depoimentos deste especial integram a versão multiplataforma da reportagem. Este código é o canal. Ao apontar a câmera do seu smartphone para ele (é preciso instalar um app leitor de QRCode, se o celular não vier com o recurso), surgirá o bonde amarelo, de portas abertas e o áudio dos passageiros, que trazem a memória viva desse tempo na bagagem.
Para recriar o bonde em 3D, um modelo digital foi adaptado com base em extensa pesquisa de imagens produzidas durante décadas por fotógrafos do Estado de Minas, do Diário da Tarde e da revista O Cruzeiro, catalogadas no centro de documentação dos Diários Associados em Minas. Da primeira viagem, em 1902, à saída do último bonde, em 1963, Belo Horizonte alcançou os 73 quilômetros de linhas e teve 87 vagões no auge, segundo o pesquisador americano Allen Morrison (1934-2019), referência mundial no estudo desse meio de transporte.
“O maior desafio do projeto foi encontrar um equilíbrio entre a melhor representação possível do bonde e o máximo de compatibilidade entre navegadores e smartphones, permitindo que a experiência pudesse ser vivenciada por maior número de pessoas”, diz Ronaldo Gazel, game designer da Kriativar, parceira do Estado de Minas no desenvolvimento da realidade aumentada para o projeto Um bonde passou aqui.
Realidade 'melhorada'
Para se ter uma ideia da relevância que representou o sistema de bondes no cotidiano de Belo Horizonte, os 2.858 ônibus da frota de transporte informada pelas empresas à BHTrans foram usados por 372,7 milhões de pessoas em 2018, segundo os dados da transparência do transporte coletivo. Isso significa 130 mil pessoas por coletivo. No caso dos bondes, o resultado seria de 839 mil passageiros por veículo. A comparação com o metrô também ressalta a força que os bondes tiveram na capital no século passado. A Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) transportou 58,4 milhões de pessoas em 81,4 mil viagens no ano passado.
Por ter sido escolhida capital do estado, Belo Horizonte foi a cidade que mais implementou linhas de bonde em um período de 61 dos seus 121 anos. Juiz de Fora, último município mineiro a encerrar a atividade dos bondes, em 1969, teve 34 veículos de passageiros e 16 quilômetros de linhas. De um período histórico em que os tempos eram outros (e isso significa muita coisa), fica neste especial a reflexão para uma potencial realidade melhorada - afinal, esta é outra tradução possível para augmented reality, o nome em inglês para a tecnologia que usamos nesta reportagem.
COMO FUNCIONA
Aqui passou um bonde
Aponte a câmera do seu celular para o código e boa viagem! (*)
Divulgação/ Kriativar - Foto: O bonde em 3D foi criado à semelhança dos que circularam em BH
Você vai ouvir as histórias de pessoas que viveram uma época memorável no transporte público de Belo Horizonte. E ver como eram os bondes que passaram aqui, quando a capital mineira chegou a ter 73km de linhas.
(*) Se a câmera do seu aparelho não tem a função QRCode, você precisa ter um aplicativo leitor de QRCode instalado.
Que tecnologia é essa?
Celulares mais novos já vêm com o leitor de QRCode como um dos modos da câmera. No caso de outros aparelhos, é preciso ir até a loja de aplicativos do seu sistema e procurar por ‘Leitor de QRCode’. A ferramenta abre o navegador de internet (é preciso ter conexão) e pede acesso à câmera. A partir daí, faz surgir na tela do aparelho a imagem do bonde. Acione o áudio e ouça as histórias.
Locais da ação com os popcards em lojas da Drogaria Araujo - Foto:
Além do código impresso na edição de domingo (4/8/19), o Estado de Minas distribui popcards com o QRCode em lojas da Drogaria Araujo, patrocinadora da ação, que ocorre entre 4/8/19 e 11/8/19 para os seguintes endereços de lojas: Rua Tupinambás, 748; Rua da Bahia, 1070; Rua Paraíba, 9; Av. Amazonas, 686 e Rua Rio de Janeiro, 337)
Além do código impresso na edição de domingo (4/8/19), o Estado de Minas distribui popcards com o QRCode em lojas da Drogaria Araujo, patrocinadora da ação, que ocorre entre 4/8/19 e 11/8/19 para os seguintes endereços de lojas: Rua Tupinambás, 748; Rua da Bahia, 1070; Rua Paraíba, 9; Av. Amazonas, 686 e Rua Rio de Janeiro, 337)
Trilhos modernos
Especialistas destacam a importância histórica dos bondes em BH e defendem modelo semelhante para o futuro
Cinco décadas depois de a eficiência dos bondes ter sido abandonada em Minas Gerais, especialistas avaliam os impactos que esse modelo de transporte público teria sobre a vida dos passageiros, o trânsito e a economia de Belo Horizonte.
A capital, atualmente estrangulada por uma frota de mais de 2 milhões de veículos para uma população estimada de 2,5 milhões de pessoas, chegou a ter 73 quilômetros de linhas de bonde em operação no fim da década de 1940. Naquela época, éramos 350 mil habitantes.
- Foto: Divulgação/Prefeitura do Rio de Janeiro
Ou seja, a capital mineira chegou a ter na primeira metade do século passado uma malha ferroviária para passageiros maior que os atuais 68,7 quilômetros de pistas para ônibus, somando aí todos os corredores próprios e faixas exclusivas ou preferenciais.
Especialistas ouvidos pelo Estado de Minas afirmam que a manutenção, mesmo parcial, das linhas de bondes na capital teriam refletido em grandes benefícios hoje. Na avaliação do engenheiro civil e conselheiro da Organização Não Governamental (ONG) Transporte e Ecologia em Movimento (Trem), Nelson Dantas, esse modelo teria impacto positivo direto no custo de vida da cidade. “Se o sistema existisse até hoje, a cidade teria crescido mais em torno das suas linhas, aumentando o adensamento no entorno delas e, consequentemente, reduzindo o custo urbano.”
Dantas acrescenta que os pólos de atração não se dispersariam tanto, o que fortaleceria o comércio e provocaria maior desenvolvimento, conforme estudo do economista norte-americano Douglass North (1920-2015), vencedor do prêmio Nobel de economia em 1993. Dantas, porém, afirma que a convivência do bonde com o automóvel não é pacífica. “A adoção do bonde é a segregação do automóvel. Politicamente, significa que o individual seria preterido pelo coletivo”, explica.
Outro especialista que reforça que a cidade teria ganhado muito com a permanência dos bondes é o diretor-adjunto de Planejamento de Transportes da Associação de Engenheiros e Arquitetos de Metrôs (Aeamesp), Ayrton Camargo e Silva. Ele diz que, se BH tivesse mantido uma estrutura de bondes na Avenida Afonso Pena, com ligação entre seus extremos, esse poderia ser um eixo estruturante de entrada na área de maior movimento da capital.
“Seria uma espinha dorsal da mobilidade e acesso ao Centro, de forma a não estrangulá-lo. Essa região foi estrangulada quando a rodoviária se instalou ali. Se existisse um corredor limpo dando acesso, e, quem sabe, até conectado por uma perimetral da Avenida do Contorno, tenho certeza de que seria uma cidade com impacto menor.”
Segundo ele, não seria necessário ter mantido toda a extensão das linhas, que chegaram a totalizar 73 quilômetros. “Bastava ter o corredor de acesso ao Centro, articulado com a perimetral da Avenida do Contorno, que já garantiria acessibilidade eficiente, para depois esse sistema ser melhorado e expandido”, afirma Camargo.
Trilhos do futuro
Especialistas apontam que os bondes do futuro, os veículos leves sobre trilhos (VLT), podem ser um caminho para a capital. BH já tem as chamadas canaletas de ônibus em 21 quilômetros, onde hoje passa o BRT, o que é considerado a parte mais difícil na hora de se abrir caminho para um transporte que use vias exclusivas. Por outro, a cidade aprovou recentemente seu novo plano diretor, que prevê a chamada outorga onerosa.Com esse mecanismo, empresas poderão negociar títulos para construir acima do coeficiente de aproveitamento de lotes em determinadas regiões, valor que poderia ser revertido para desatar os nós de transporte, na visão de estudiosos do assunto. Segundo o diretor-adjunto da Aeamesp, com raras exceções, o Brasil não aplica a relação necessária entre uso do solo e mobilidade. Segundo Camargo, parte da arrecadação com a outorga onerosa poderia ser usada para financiar o sistema VLT e “evitar o colapso dessas áreas no futuro”.
Custo-benefício
Por meio de nota, a Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte (BHTrans) informou que a capacidade de transporte máxima dos VLTs é de 12 mil passageiros por hora em um único sentido, com custo de implantação que pode atingir US$40 milhões/km. O sistema de ônibus BRT/Move, por exemplo, chega a transportar 45 mil passageiros por hora/sentido pelo preço máximo de US$14 milhões/km.Na avaliação do secretário executivo do Comitê Municipal sobre Mudanças Climáticas e Ecoeficiência, Dany Amaral, pensar em mobilidade alternativa ou energia renovável no transporte são estratégias fundamentais para mitigar a emissão de gases e, consequentemente, poder reduzir nossas áreas de vulnerabilidade. “Em BH existe estudo de vulnerabilidade climática, publicado em 2016, que demonstra que se nada for feito, seja com ações de mitigação ou adaptação, teremos um aumento da áreas com risco inundação, deslizamento, ondas de calor e casos de dengue até 2030”, afirma. Segundo dados de 2015, 54% das emissões de gases em BH que agravam o efeito estufa são originárias dos meios de transporte.
Histórias vivas
Tudo na vida é passageiro, menos o motorista e o trocador. A frase tem uma origem que dá mais ritmo à ideia e faz rima com sabor de passado: tudo na vida é passageiro, menos o condutor e o motorneiro. Vem lá do tempo dos bondes, o “vovô” do Move, e muita gente boa de memória entende do assunto e vai além... ao tempo em que um grande problema tinha “o tamanho de um bonde”, ou, então, entrar numa conversa alheia, sem saber do tema em questão, era pegar “um bonde andando”.
Morador do Bairro Lagoinha, na Região Noroeste de Belo Horizonte, o aposentado Osmar Nunes Coelho, de 88 anos, dá risada das lembranças e conta que, na juventude, usou muito o antigo transporte público para se deslocar até o trabalho, na Praça Sete, ou pescar no fim de semana na Lagoa da Pampulha.
Para Osmar, as linhas de bonde não fariam sentido hoje em BH, pois a quantidade de carros não permite, “mas, na época, resolvia bem a situação do transporte na capital”. Em visita ao histórico exemplar em exibição no jardim do Museu Histórico Abílio Barreto, no Bairro Cidade Jardim, na Região Centro-Sul, o homem nascido em Guanhães, no Vale do Rio Doce, volta a meados da década de 1950, quando chegou à cidade para servir no 12º Batalhão de Infantaria do Exército. Na sequência, decidiu ficar e trabalhar.
Dois meses antes da Copa do Mundo de 1950, a primeira linha de bondes cobertos começou a correr nos trilhos de BH – e foi aí que Osmar fez sua estreia, indo e voltando do quartel localizado no Bairro Barro Preto. O próximo passo foi trabalhar como vendedor, e chegou a gerente, na loja de departamentos Mesbla, “que tinha de alfinete a avião”.
Pegava o bonde perto de casa e descia no abrigo da Praça Sete, no coração da capital. Abrigo, é bom lembrar, era o nome dos pontos de embarque e desembarque dos passageiros; e motorneiro, o homem que, na definição do Novo Dicionário Aurélio, se traduz por “encarregado do motor de um bonde”.
Ao falar dos fins de semana, os olhos de Osmar brilham de saudade. Com os colegas de trabalho, pegava o bonde no Centro e seguia até o Jardim Zoológico (hoje Fundação de Parques Municipais e Zoobotânica), na Pampulha. “Eram fins de semana fantásticos. Íamos sábado, passávamos a noite à beira da lagoa e voltávamos só no domingo. A água era limpa, cristalina, dava até para beber”, revela Osmar fazendo uma pausa. Ao continuar, confessa, bem-humorado: “A gente bebia mesmo da água”.
Aventuras urbanas
Recém-chegado aos 90, com aniversário comemorado em 8 de julho, entre um cálice de vinho do porto e abraço dos familiares e amigos, o empresário Agenor Nunes Guerra, morador do Bairro Funcionários, gosta de compartilhar suas lembranças e sente certa nostalgia das priscas eras. As lembranças estão vivas, e Agenor viaja agora no tempo para falar da aventura de pegar traseira do bonde que seguia do Bairro Santo Antônio, onde morava “numa chácara na Rua Carangola, nº 152”, em direção ao Centro. No caminho, surgiam as primeiras namoradas de um flerte inocente e, dependendo do olhar, poderiam evoluir para algo mais sério.
De acordo com os estudiosos, até 1950, os bondes eram veículos abertos, com dezenas de passageiros de pé nos estribos, sem segurança. Assim, quando os caminhões e ônibus ganharam as ruas em maior intensidade, era muito comum os passageiros serem atropelados, pois os veículos passavam rente aos bondes e derrubavam as pessoas. Puxando pela memória, o empresário que gostaria de ter sido diplomata diz que, no interior do veículo, eram afixados anúncios de remédios, um deles para tirar tosse. Risonho, Agenor confessa que a peraltice de pegar traseira nem sempre acabava bem.
“Quando chegava em casa, mamãe já estava me esperando com o cinto de borracha.” Na sala de casa, ele rememora detalhes, como o nome do condutor, “seu” Chico, que conhecia a meninada do bairro ainda tomado por quintais enormes. “O lá de casa tinha 6,9 mil metros quadrados de área.”
Capítulo da vida
Mais jovem dos três, a costureira Heloísa Motta Amorim, de 79, moradora do Bairro Luxemburgo, andava de bonde, mas apenas nos tempos de criança. Mais velha de 11 irmãos e então residente na Avenida Pasteur, em frente ao Colégio Arnaldo, Heloísa ajudava a mãe indo fazer comprar num estabelecimento de “secos e molhados”, no Bairro Santa Efigênia. Uma particularidade nunca saiu da cabeça: o bonde ia até o fim da linha, mas não virava. O que virava era o encosto do banco, que era móvel, e, assim voltava para o abrigo de onde partira. Era muito interessante”.
No veículo em exposição no Museu Histórico Abílio Barreto, perto de onde passa diariamente durante a caminhada matinal, Heloísa refresca a memória e recorda um episódio que presenciou quando tinha cerca de 10 anos. Uma criança ficou parada nos trilhos, mas o condutor ligou o sinal e conseguiu frear a tempo. “Foi assustador, mas não houve acidente”. Outra imagem está na movimentação dos cobradores, “verdadeiros malabaristas”, ao fazer seu trabalho passando por fora dos passageiros pendurados nos estribos. Um pedaço que ficou gravado na história da cidade é o abrigo da Avenida Afonso Pena, na esquina da Rua da Bahia, onde, muitos anos depois, funcionou o mercado das flores.
Sem saudosismo, mas com gosto pelas recordações, Heloísa, viúva, mãe de três filhos e avó de duas meninas, está certa de que a viagem nos bondes representa um capítulo da sua vida. “Estudei no Instituto de Educação, fui bancária, casei em 1964 e mudei para Uberaba (Região do Triângulo). Com certeza, tínhamos uma capital mais tranquila, bem diferente da atualidade. Hoje, seria impossível ter bondes por aí.”
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