Um fantasma de quase duas décadas que volta a crescer na Região Metropolitana de Belo Horizonte alimentado pela crise econômica ganhou força ontem, em forma de manifestação que trouxe a lembrança do movimento que culminou em um dos episódios mais violentos da história recente da capital: a guerra dos perueiros, no início dos anos 2000 (veja memória). E desta vez, os transportadores “alternativos” ganharam o reforço de motoristas de escolares e de fretamento, que protestaram pela legalização do serviço e contra arrocho na legislação que, segundo os manifestantes, ameaça inviabilizar o sustento de milhares de famílias.
Em meio a essa disputa, transportadores não regulamentados fizeram manifestação na manhã de ontem, deslocando-se em carreata até a Cidade Administrativa, na MG-010. Participaram perueiros e condutores de vans e ônibus para fretamento e turismo da capital, região metropolitana e do interior. Os condutores se concentraram durante a madrugada e partiram de três pontos em direção à sede do governo do estado, em Venda Nova: da BR-040, em Ribeirão das Neves; da Refinaria Gabriel Passos (Regap), na BR-381, em Betim; e da Avenida Antônio Abrahão Caram, ao lado do Mineirão, na Pampulha.
Os manifestantes querem a revogação da Lei Estadual 19.445/11 e afirmam que a Lei Federal 13.855, de 8 de julho de 2019, que aumenta a punição para transporte clandestino, vai inviabilizar a prestação de várias formas de serviço. Conforme a lei estadual, motoristas flagrados no transporte irregular de passageiros estão sujeitos à apreensão do veículo e multa de R$ 1.625,70 (que dobra em caso de reincidência), além do pagamento das despesas referentes aos custos de transbordo de passageiros, guincho e permanência do veículo no pátio. “É uma lei inconstitucional, porque o estado começa a legislar sobre o transporte, sendo que é algo da competência do governo federal”, alega Abdiel Freitas, líder do movimento do transporte alternativo.
Já a lei federal determina que o transporte, seja de ônibus ou van escolar sem autorização, ou transporte remunerado de pessoas ou bens, passa a ser classificado de infração gravíssima, com multa (multiplicada por cinco, no caso do escolar) e perda de sete pontos na Carteira Nacional de Habilitação, além do reboque do veículo. As novas punições entram em vigor no início de outubro.
Abdiel afirma que a lei federal colocará muitos trabalhadores na irregularidade. “A Lei 13.855 vai entrar em vigor e transformar transportadores escolar e de fretamento em clandestinos. O motorista que faz fretamento para uma igreja, por exemplo, não vai pode mais fazer”, afirma. O transportador afirma que o movimento pretende sensibilizar o Departamento de Edificações e Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DEER-MG) para tornar o processo de regulamentação menos burocrático para os condutores que oferecem o serviço de fretamento.
Legião de motoristas
Segundo ele, cerca de 70 mil pessoas em todo o estado trabalham com transporte alternativo. “Queremos que regulamentem parte desses motoristas. Isso permitirá o recolhimento de impostos”, afirma. Os manifestantes reivindicam que seja liberado 5% de cada linha de ônibus para o transporte alternativo. Abdiel argumenta que a prestação desse serviço é fonte de renda para centenas de família e supre deficiência do transporte público, levando mais comodidade e conforto para o passageiro.
Abdiel destaca que é necessário a regularização do DEER para garantir mais segurança aos passageiros. “O Inmetro faz a avaliação do veículo, averiguando cinto de segurança, pneus, enfim toda a segurança do veículo”, diz, sobre a possibilidade e uma vistoria a ser feita pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). Já no campo da lei federal, segundo Abdiel, as regras dificultarão modalidades de transporte como o universitário. “O metrô não circula depois das 23h, e muitos universitários dependem do serviço das vans, que, com a entrada em vigor da Lei 13.855, entrarão na clandestinidade”, argumenta.
Contraponto
Confira cinco prós e contras do transporte não regulamentado, segundo apontamentos do movimento do transporte alternativo e de especialista do setor
Por que o transporte alternativo é positivo
» Dá direito de escolha ao passageiro, que pode optar pelo serviço por querer viajar sentado
» Comodidade e conforto: permite que o usuário embarque na porta de casa e desembarque no local do compromisso
» É fonte de geração de renda para famílias em momento de crise
» É uma forma de pressão indireta para que gestores e operadores do transporte público regular revejam a qualidade do serviço
» Pode oferecer tarifa menor e mais opções de horários aos usuários
Por que o transporte alternativo é negativo
» Os veículos não passam por vistoria periódica. Não há nada que garanta que itens como pneus e freios estejam com manutenção adequada
» Não é possível saber se o condutor tem habilitação, se está em boas condições de saúde para trabalhar e há quanto tempo está conduzindo
» Não contribuem para a geração de impostos, ao contrário de empresas e prestadores regulares
» Não há proteção trabalhista e para usuário: motoristas trabalham sem salvaguarda de direitos e passageiros não contam com seguro
» Concorrência desleal com o sistema regular de transporte público, sujeito a uma série de normas e encargos que encarecem o serviço
"Ou o pode público dá a concessão ou coíbe"
O transporte clandestino – ou alternativo, como defendem representantes dos motoristas – é problema antigo, cuja solução vem sendo adiada há anos, embora seja urgente. A avaliação é do coordenador do Departamento de Engenharia de Transporte do Cefet-MG, Renato Ribeiro. Segundo ele, os órgãos que regulamentam o setor precisam resolver o desafio, que tem sido colocado embaixo do tapete. “O transporte é um serviço público. Ou o poder público dá a concessão ou fiscaliza e coíbe. Não pode ficar nessa de que não existe. Quem não é operador concedido não pode prestar esse serviço. Da forma como está hoje, só traz dano ao sistema regular”, argumenta.
O especialista, que pesquisou o movimento do transporte alternativo no início da década de 2000, ressalta que a crise econômica – que se assemelha à de 20 anos atrás – faz com que as pessoas busquem alternativas de mobilidade, como ocorreu há duas décadas. No entanto, ele lembra que se trata de um mercado público regulado, e que o serviço prestado de maneira indiscriminada traz desequilíbrio. “Quando falo de mercado público regulado, quero dizer que é preciso manter o serviço em todos os locais da cidade, com tarifa acessível. Atacar esse sistema com outro serviço representa perda de demanda e perda de receita, o que pode levar ao aumento da passagem. O mercado é regulado em função do interesse social”, diz.
Ele também destaca os riscos em termos de segurança, já que em caso de veículos não regulamentados não há garantia sobre as condições do veículo e da habilitação dos condutores. O especialista lembra que os passageiros sabem dos riscos. “Mesmo assim, por que o usuário continua usando o transporte irregular? Por uma falha no serviço concedido. É importante investigar qual é essa falha”, ressalta.
A perda de passageiros do serviço de ônibus convencional para o transporte alternativo tende a gerar desequilíbrio na principal fonte de receita do sistema público de transporte, alerta o professor. Ele lembra ainda que as linhas escolhidas pelos perueiros são as de alta demanda. “Não estão nas linhas de baixa procura, na madrugada. Estão no pico e nas melhores linhas. E são exatamente essas linhas grandes e de alta demanda que mantêm o sistema público, pagando pelas linhas de baixa demanda, sustentando as pequenas. Se tiramos receita dos trajetos mais atrativos prejudico a sustentabilidade econômica de todo o sistema”, explica Renato Ribeiro.
Para o especialista, embora tenha origem semelhante ao transporte por aplicativos, do qual o Uber é o representante mais conhecido, o transporte alternativo deve ser entendido na sua especificidade. Ambos crescem na esteira da falta de regulamentação do setor, mas operam de maneiras distintas, segundo o professor. “Ambos afetam o serviço de transporte público, mas a forma como cada usuário acessa é diferente. Os públicos são diferentes. O público do Uber vem de região mais central e de poder aquisitivo melhor, não busca o transporte coletivo regular. No transporte clandestino, a faixa de renda é menor. Não há acesso via celular, as pessoas aguardam no ponto. São usuários do transporte por ônibus e, geralmente, não têm vale-transporte”, afirma. (Com Cristiane Silva)
Memória
Uma guerra na Praça 7
O Centro de Belo Horizonte se transformou em praça de guerra na tarde de 19 de julho de 2001. Bombas de gás, tiros, explosões, pancadaria, agressões e quebradeira tomaram conta da Praça Sete durante conflito entre a Polícia Militar e perueiros. Conforme mostrou na época o Estado de Minas, o saldo foi de 69 prisões e 35 pessoas feridas. Na época, o comandante-geral da PM, coronel Álvaro Nicolau, garantiu que seria pedida a prisão preventiva dos líderes dos manifestantes que colocaram os veículos em torno do famoso Pirulito, na confluência das avenidas Amazonas e Afonso Pena (foto). O fechamento de 150 quarteirões na região central foi o ponto alto e a mais violenta de uma escalada de manifestações e enfrentamentos entre autoridades e transportadores. Na véspera, o então prefeito, o médico Célio de Castro (1932-2008), havia deixado claro que não haveria mais diálogo com os donos de vans. Desde a batalha, o serviço foi reprimido até ser quase banido na Grande BH. Agora, lentamente, o desafio volta a se instalar.