Jornal Estado de Minas

Desastre em Brumadinho

Maquiagem de dados e interesse comercial: as relações por trás dos indiciamentos da Polícia Federal pela tragédia de Brumadinho

Território de buscas em Brumadinho: depois de quase oito meses de trabalhos, bombeiros ainda estão à procura de 21 pessoas que desapareceram após rompimento - Foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press - 27/4/19
O logotipo e selo de certificação da consultoria, o octógono azul, reconhecido como símbolo de competência técnica independente e imparcial de uma empresa de 153 anos de experiência: com essas credenciais, a alemã Tüv Süd entrou de cabeça no mercado brasileiro e em um lucrativo ramo: o de certificação de barragens. Mas, segundo investigações, uma das principais certificadoras do mundo ignorou normas, alterou relatórios e distorceu informações repassadas a órgãos públicos de fiscalização e investigação para abocanhar essa fatia de mercado junto de uma das gigantes da mineração. A primeira resposta a essas práticas veio ontem, quando a Polícia Federal anunciou o indiciamento de sete funcionários da Vale e outros seis da própria Tüv Süd por falsidade ideológica e falsificação de documentos previstos na Lei de Crimes Ambientais, por causa do rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.


De acordo com o delegado da Polícia Federal (PF) Luiz Augusto Pessoa Nogueira, os crimes foram cometidos três vezes, uma em junho e duas em setembro de 2018, quando as empresas assinaram documentos que atestavam a estabilidade da barragem. Os indiciados ainda serão investigados por crimes ambientais e contra a vida. “A tragédia poderia ser evitada. Primeiro, porque a barragem deu sinais. Os estudos realizados apresentavam segurança abaixo do que era recomendado pelos painéis de especialistas que a própria Vale adotou”, disse o delegado responsável pelo caso. Segundo ele, apesar de estudos apontarem que o fator mínimo de segurança aceito por boas práticas internacionais era de 1,3, a barragem da Mina do Córrego do Feijão apresentava 1,09.

“Na minha visão, houve pressão por parte dos funcionários da Vale para conseguir os laudos (de estabilidade).
A empresa queria dizer que tinha 100% das barragens estáveis. Queria apresentar para a sociedade e para o mercado que se tratava de uma empresa segura”, completou. Chamou a atenção o fato de que o valor do bônus pagos a esses funcionários da mineradora ser calculado proporcionalmente ao nível de segurança das barragens. Ou seja, quanto maior o nível de segurança, maior o bônus.

Do lado da Vale, os funcionários são o gerente-executivo de Geotecnia Corporativa, Alexandre de Paula Campanha, as integrantes da Gerência de Geotecnia Marilene Christina Lopes de Oliveira Araújo e Andrea Leal Loureiro Dornas, a integrante do setor de Gestão de Riscos Geotécnicos Cristina Heloise da Silva Malheiros, o especialista em liquefação Washington Pirete da Silva, o assessor técnico do Setor de Gestão de Riscos Geotécnicos Felipe Figueiredo Rocha e o geólogo César Augusto Paulino Grandchamp.

Da Tüv Süd estão na mira da Justiça os engenheiros Makoto Namba e Marlísio Cecílio de Oliveira, o consultor Arsênio Negro Júnior, a especialista em geotecnia e liquefação Ana Paula Toledo Ruiz e o executivo da empresa na Alemanha Chris-Peter Mayer. Nenhum diretor da Vale foi responsabilizado nessa etapa do inquérito. A mineradora se manifestou afirmando que continuará colaborando com as investigações.

O relatório da PF não pediu prisões, mas entrou com pedido de medida cautelar contra os indiciados. O objetivo é que sejam impedidos de prestar consultorias ou fazer novos trabalhos na área de barragens.
O inquérito será encaminhado ao Ministério Público, que vai avaliar as provas produzidas. A partir daí, o MP decide se faz ou não a denúncia. Em caso de condenação, cada um dos envolvidos pode ter pena entre 9 a 18 anos. Não há prazo para que isso ocorra.

JUSTIÇA O resultado do rompimento da barragem foi a morte de 249 pessoas, além das 21 que continuam desaparecidas. Como uma das consequências do desastre, a Tüv Süd foi proibida pela Justiça em maio de exercer ações ligadas à segurança de barragens e teve suspenso contratos de mais de R$ 19 milhões com a Vale. Assim como há indícios de que a cúpula da mineradora soube dos problemas em Brumadinho, do lado da consultoria tudo indica que as informações também chegaram até a direção da empresa, na Alemanha.

A Tüv Süd foi pega pela Justiça em ação proposta pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e pela força-tarefa que investiga o caso. Os promotores enquadraram os braços brasileiros da consultoria, a Tüv Süd Bureau de Projetos e Consultoria Ltda e a Tüv Süd SFDK Laboratório de Análise de Produtos Eirele, numa ação ainda incomum, com base na Lei Anticorrupção – uma lei de natureza cível, que imputa ato de corrupção às empresas.

“A atuação dela corrompeu o modelo de fiscalização e investigação, dificultou aos órgãos públicos saber a real situação para adotar medidas imediatas. Dissimulou a criticidade das estruturas, que era de conhecimento interno”, afirma o promotor de Justiça de Brumadinho, William Garcia Pinto Coelho, integrante da força-tarefa.

Dois órgãos pelo menos foram abastecidos com informações duvidosas.
Em setembro do ano passado, a Vale entregou à Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) a declaração de estabilidade assinada pela Tüv Süd, empresa de renome internacional. Com isso, tirou do radar a necessidade de fiscalização, pois, tendo a segurança atestada, o poder público passou a se preocupar com as estruturas sem declaração ou com aquelas não estáveis.

Risco debatido um ano antes do desastre


Em outubro de 2018, a equipe técnica do Ministério Público solicitou documentos complementares em relação à Barragem 1 da Mina Córrego do Feijão. Em 6 de novembro, a Vale apresentou não só a mesma declaração que havia sido enviada à Feam, como também um pedido de arquivamento do processo. Os geólogos do MPMG recusaram. “Poderia ter sido diferente se não fosse sonegada ou dissimulada a informação. Ainda que não houvesse tempo hábil para reforçar a estrutura, ao menos as pessoas poderiam ter sido retiradas do local de risco”, ressalta o promotor de Brumadinho.

As investigações indicam que a situação crítica de segurança e estabilidade da barragem era conhecida e debatida por consultores técnicos, representantes da mineradora e, especialmente, por representantes da Tüv Süd, mais de um ano antes do rompimento. “Apesar da existência e ciência de elementos técnicos que apontavam anomalias e fator de segurança para liquefação alarmante da Barragem 1, os responsáveis pelo empreendimento optaram por manter as operações ativas, não realizaram medidas suficientes para estabilização das estruturas e não adotaram providências para evitar mortes no caso de rompimento”, afirma a ação proposta pelo MP contra a consultoria.

VALOR De fevereiro de 2017 a setembro de 2018, cinco contratos foram assinados entre a consultoria e a mineradora, segundo as apurações. Os trabalhos incluíam a aplicação na gestão de risco para estruturas de 13 barragens e diques, revisão periódica de segurança e classificação de barragens, estudos de condição de liquefação da Barragem 1, implantação do sistema de monitoramento remoto com transmissão de dados via rádio para barragens, alternativas e projeto conceitual da alternativa escolhida para fechamento da Barragem 1. O valor chegou a R$ 19.197.041,70.

Sobre as investigações da PF, a Vale informou, em nota, que vai avaliar o relatório policial detalhadamente “antes de qualquer manifestação de mérito, ressaltando apenas que a empresa e seus executivos continuarão contribuindo com as autoridades e responderão às acusações no momento e ambiente oportunos”. A Tüv Süd não se manifestou.
A defesa do engenheiro Makoto Namba e de outros funcionários da consultoria afirma que o relatório da PF “falha ao interpretar conceitos básicos sobre a engenharia de barragens e chega, portanto, a uma conclusão equivocada”, o que pretende demonstrar caso seja oferecida denúncia.


Índice 'adaptado' por conveniência


E-mails com as iniciais de oito funcionários da Tüv Süd mostram, segundo as investigações da força-tarefa encarregada de apurar a tragédia de Brumadinho, a dinâmica para alcançar a declaração de estabilidade da Barragem 1 da Mina Córrego do Feijão. Como tentativas de aumentar o fator de segurança da represa de rejeitos não surtiram efeito desejado, a solução encontrada pela consultoria para dissimular o fator crítico de segurança foi simplesmente desconsiderar o valor mínimo de 1,3 e passar a considerar, de forma inédita e contrária à própria recomendação da Vale, o valor mínimo de 1,05, apontam as investigações.

“Ainda no mês de maio, uma sequência de e-mails circulada entre representantes da Tüv Süd com o assunto 'Declaração de Estabilidade – Barragem 1 – Córrego do Feijão' é reveladora e compromete profundamente a credibilidade da declaração da empresa. Evidenciam (as mensagens) que a Tüv Süd tinha o conhecimento da impossibilidade técnica de declarar a segurança da barragem e, mesmo assim, foi tomada a decisão empresarial ('corporativa') de emitir a declaração”, afirma a força-tarefa. “Ao que tudo indica, a ilícita certificação tinha como objetivo o estreitamento das relações comerciais com a Vale, de forma a garantir melhor posicionamento no mercado e ampliar o crescente portfólio contratual com a poderosa mineradora”, acrescenta.

Responsáveis pelo caso não têm dúvida de que a possibilidade de rompimento por liquefação era admitida pela Tüv Süd e que argumentos técnicos nas revisões e auditorias serviram apenas para dar aparência de regularidade para a Barragem 1. Em e-mail para o diretor e consultor Arsênio Negro Júnior, o engenheiro da consultoria Makoto Namba diz que “a rigor, não podemos assinar a Declaração da Condição de Estabilidade da barragem, que tem como consequência a paralisação imediata de todas as atividades da Mina Córrego do Feijão”. “Mas, como sempre, a Vale irá jogar contra a parede e perguntar: e se não passar, irão assinar ou não? Para isso, teremos que ter a resposta da Corporação, com base nas nossas posições técnicas. Não para amanhã, mas precisamos discutir internamente, com urgência”, concluiu Makoto.

NA ALEMANHA Os e-mails que circularam entre funcionários da Tüv Süd não se restringiram ao Brasil. Logo depois da tragédia em Brumadinho, os executivos da consultoria para assuntos das Américas, John Tesoro e Fabian Schober, e o diretor de Desenvolvimento e Negócios na Alemanha, Chris-Peter Mayer – um dos indiciados pela PF – foram alertados pelo então presidente da empresa no Brasil, Marcelo Pacheco. Ele explicava que a Barragem 1 tinha se rompido e que havia outras três menores – B6, B4 e B4A – com riscos mais baixos.

Em seguida, Marcelo Pacheco escreve a Makoto Namba e Vinícius Wedekin: “Recomendo que vocês comecem a ler os relatórios e buscar possíveis divergências que podem ser apontadas durante as investigações”. Em resposta, ele é informado de que a Tüv Süd emitiu as declarações de estabilidade também para as três estruturas menores, com obrigação de revisão periódica.
Ao que é acrescido, por Makoto Namba: “Mas não se preocupe. Todas essas três barragens foram afetadas pelo rompimento da Barragem 1”.

Para os promotores, os e-mails reforçam o aprofundamento da adesão da empresa Tüv Süd, em diversos níveis hierárquicos, à maquiagem de dados técnicos; a postura da mineradora de pressionar contratadas; e reforçam a motivação mercadológica e financeira “para aderir ao conluio ilícito que culminou na atividade que dificultou as atividades de investigação e fiscalização dos órgãos do estado de Minas Gerais”. O MP conseguiu judicialmente a interrupção das atividades da consultoria na área de barragens no país e tenta aplicar à empresa multa de R$ 60 milhões.

A Tüv Süd informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não tem comentado as apurações e que está conduzindo uma “aprofundada investigação interna sobre o caso”. Também procurada, a Vale manteve a posição quanto a contribuir com as autoridades e responder às acusações em momento e ambiente oportunos.

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