Jornal Estado de Minas

'Ideologia de gênero'? Sexualidade e temas associados abrem batalha no ensino de BH

 

Quatro palavras de robusto parágrafo em um dos 71 artigos da resolução que norteia a organização da rede pública de ensino de Belo Horizonte deram origem a um cabo de guerra que opõe, de um lado, o Conselho Municipal de Educação e, de outro, a bancada cristã da Câmara de Vereadores da capital. O documento terá de voltar à mesa dos conselheiros, com pedido expresso de reanálise da parte que inclui nas diretrizes curriculares temas ligados a sexualidade, gênero e orientação sexual, responsáveis pelo levante de parlamentares e que levou à revogação do documento. O assunto flerta desde 2015 com a pauta escolar, mas a pressão de um setor do Legislativo que alega tentativa de “doutrinação” nas escolas tem feito a Prefeitura de BH recuar nesse período e retirar do texto final os termos considerados controversos.


A Resolução 02/2019, publicada no Diário Oficial do Município (DOM) em 30 de agosto, é um documento extenso que prevê toda a organização e o funcionamento do 1º ao 9º ano do sistema municipal de ensino na capital. Foi concebida pelo Conselho Municipal de Educação e homologada pela Secretaria Municipal de Educação (Smed).

Em seu artigo 19, o texto prevê que “além da base nacional comum e da parte diversificada, devem ser incluídos, permeando todo o currículo, de forma interdisciplinar, temas transversais relativos a saúde; sexualidade, gênero e orientação sexual; moradia; vida familiar e social; direitos das crianças e dos adolescentes; inclusão da pessoa com deficiência; mobilidade urbana; pessoas em situação de rua; direitos dos idosos; preservação do meio ambiente; educação em direitos humanos; ética; justiça social; educação para o consumo; trabalho; ciência e tecnologia; diversidade cultural; alimentação saudável; bem como a pessoas, povos e comunidades historicamente excluídos”.

No fim do mês passado, foi publicada no DOM a revogação da resolução pela Smed e o pedido ao Conselho de reexame do artigo 19 e também do 18. Este trata dos componentes curriculares obrigatórios do ensino fundamental, que integram as áreas de conhecimento – português, matemática, ciências da natureza, história, geografia e outras disciplinas obrigatórias. Por meio de nota, a Smed informou que a alteração tem caráter técnico, uma vez que outros dois artigos (16 e 17) já salientam as referências da política curricular nacional – no entanto, sem qualquer menção a questões de gênero ou diversidade. A secretaria disse ainda que “a retirada dos artigos 18 e 19 não interfere na proposta curricular das escolas nem nos respectivos projetos pedagógicos”.



Integrante da bancada cristã, o vereador Fernando Borja (Avante), diz que o recuo ocorreu depois de reunião dos parlamentares com a secretária Municipal de Educação, Ângela Dalben. “O currículo fala de sexualidade na biologia.
Temos dois gêneros: masculino e feminino. Temos estudos sobre doenças sexualmente transmissíveis e reprodução humana. Isso em momento algum é problemático. Mas, quando se chega a doutrina de gênero, diversidade e orientação sexual, é direito dos pais que os filhos recebam educação religiosa e moral de acordo com suas convicções”, defende Borja.

O cabo de guerra já dura pelo menos quatro anos. Depois de debates acirrados no ano anterior, o Plano Municipal de Educação entrou em vigor em 2016 sem fazer referência ao termo “gênero”, mas apenas à “diversidade”, entendida pela Secretaria de Educação de BH, na época, como respeito às diferenças e combate a qualquer tipo de preconceito. Em 2017, novo capítulo acirrou os ânimos. Em setembro daquele ano, caiu por terra a criação de gerência e diretoria que atuariam na orientação sobre diversidade sexual e gênero.
Decreto do Executivo mudou o nome da diretoria e retirou a menção ao termo “gênero”.

Fernando Borja acusa o Conselho de manobra para tentar incluir o tema na pauta “sem respeitar o direito de pais e da população de BH que não concorda”. “Queremos preservar o direito de todas as pessoas. Não somos contra a sexualidade de nenhum adulto, não temos preconceito contra ninguém, mas os pais têm direito sobre a educação dos filhos”, diz.

Questionada sobre o pedido de reexame do artigo 19, a assessoria da Secretaria de Educação reiterou que se trata de decisão por caráter técnico, uma vez que outros pontos da resolução contemplam o disposto nessa parte. Sobre a questão da retirada dos termos ligados a “gênero”, não houve resposta. Procurado, o Conselho Municipal de Educação informou que a nova gestão, que tomou posse no início do mês, vai se debruçar sobre a questão, mas, como os novos conselheiros ainda estão em fase de formação, não havia ninguém capaz de falar sobre o assunto.

Reação


A vereadora Cida Falabella (PSOL), conselheira municipal de Educação da última gestão (por indicação da Câmara) e vice-presidente na Casa da Comissão de Educação, Ciência, Tecnologia, Cultura, Desporto, Lazer e Turismo, espera que os termos do artigo 19 sejam debatidos pelos novos conselheiros e mantidos no texto. “Nós, junto dos vereadores do campo progressista, temos combatido o (movimento) 'Escola sem partido' em todas as suas variações sobre o mesmo tema. Há uma tentativa de criminalização dos professores, das atividades da escola e desrespeito a várias instâncias que constroem norteadores e currículos da educação, como essa resolução”, diz.



“Está nas mãos do governo manter esse debate”, afirma, lembrando que a Resolução 02/2019 trata do funcionamento das escolas em diversos aspectos, do horário de entrada e saída dos alunos até os temas transversais que serão abordados. “O artigo 19 vai muito além de gênero e diversidade e aborda temas diversos, inclusive temas que são de interesse deles (da ala conservadora).
A resolução foi definida e delimitada dentro de um espaço democrático que é o conselho. Espero que os novos conselheiros reafirmem esses valores como direito de jovens e crianças”, ressalta. “Escola é espaço onde o aluno pode aprender sobre seu corpo e sexualidade, num ambiente afetivo e seguro, porque, muitas vezes, o abuso, por exemplo, ocorre dentro de casa.”

Na opinião de Cida, a exclusão dos termos significa tirar do sistema de ensino “a educação para a liberdade, para a democracia e para a diversidade”. Apesar do recuo da Smed, a vereadora acredita numa reação. “BH tem dado mostras de reagir à censura. Temos que cobrar essa coerência da prefeitura. Isso não é pauta de eleições. O que está em jogo é a vida de crianças e jovens.”
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