Jornal Estado de Minas

Bastidores da restauração: conheça a ciência que brilha na via-sacra de Portinari

Equipe reunida: Luiz Costa; Cláudia Amorim; Alessandra Rosado; a diretora do Cecor, Bethania Veloso; Rita Lages. De pé: Amanda Cordeiro, Tereza Moura e Moema Queiroz (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)

Foram quatro anos de trabalho divididos entre pesquisas documentais e prática no laboratório, equipe multidisciplinar dedicada, busca de exames sofisticados e muito amor pela arte e sua conservação. Os 14 quadros da via-sacra de autoria de Cândido Portinari (1903-1962), retornaram à Igreja São Francisco de Assis, na Pampulha, em Belo Horizonte, no dia 4, data da reabertura do templo, mas o processo de restauro das obras-primas vale um livro daqueles que surpreendem, encantam, emocionam e revelam descobertas para valorizar ainda mais o conjunto moderno reconhecido como patrimônio da humanidade.



O serviço realizado no Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (Cecor/EBA/UFMG) transcorreu no maior sigilo e em segurança – e só agora os detalhes e bastidores são revelados. “Entregamos à sociedade o resultado de atividades que a universidade proporciona com a união de pesquisa, ensino e extensão ligada à ciência e à arte”, diz a diretora do Cecor, Bethania Veloso. Criado há mais de 40 anos, o centro se tornou referência internacional e foi escolhido pela Arquidiocese de BH, via Memorial, para a restauração das telas recriando os passos da Paixão de Cristo.

No laboratório localizado no câmpus da Pampulha, Bethania reuniu parte da equipe técnica que coordenou e falou do projeto iniciado bem antes da retirada dos quadros da igreja. Esse, aliás, consiste em um capítulo especial. Em 18 de setembro de 2017, sob escolta da Polícia Militar do Meio Ambiente, o acervo foi conduzido à reserva técnica e, desde então, nunca mostrado. “A intervenção foi minimalista, sem aplicação de produtos químicos e com o mínimo possível de interferência. Respeitamos os originais, a técnica elaborada de Portinari e mantivemos, por exemplo, as microfissuras e o borbulhamento encontrados em todas as telas, bem como a porosidade por serem da época da criação”, explica Bethania.

Em 2015, nas primeiras negociações com a Arquidiocese de BH, à qual a igreja está vinculada, os especialistas do Cecor começaram os estudos sobre a via-sacra, cientes da complexidade do trabalho e por se tratar de um bem cultural de Belo Horizonte – no ano seguinte, o conjunto moderno da Pampulha foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (Unesco) como patrimônio da humanidade. Ao ser batido o martelo sobre a restauração, a equipe se debruçou sobre os diagnósticos feitos pelas três instâncias de tombamento dos monumentos: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG) e Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), via Fundação Municipal de Cultura. De posse de seu próprio diagnóstico, a equipe do Cecor viu que as informações estavam em sintonia – “batiam”, resume a diretora.


Quadro passa por exame nos laboratórios do Cecor, onde o trabalho foi realizado (foto: Cláudio Nadalin/Cecor/UFMG)


SARRAFIADO 


Na lista de degradação do acervo, havia manchas causadas por umidade, modulação do suporte, descolamento da pintura e muita sujeira causada por excrementos de insetos, fato que surpreendeu a coordenação da equipe formada por professores de conservação-restauração, alunos de graduação e pós-graduação da área, e, na sequência, de profissionais da Escola de Medicina da UFMG. Curiosamente, o que poderia ser compreendido como deterioração se revelou característica da obra, por isso foram mantidas as microfissuras, os borbulhamentos e a porosidade. Como os quadros medindo 62cm x 62 cm tinham sido restaurados no Cecor em 1991, e toda a memória estava disponível, a equipe recorreu aos documentos a fim de entender melhor todo o processo e enfrentar os desafios.

No laboratório do Cecor, que mudou a dinâmica para receber a obra de Portinari e ainda exibe resquícios da mobilização, um equipamento portátil de raios X entrou em ação, norteando caminhos. Depois, na Faculdade de Medicina, o aparelho de tomografia completou o serviço, especificamente no quadro nº 9, Jesus cai pela terceira vez. Por meio das chapas de raios X, a equipe detectou o suporte usado pelo artista, o compensado sarrafiado, e não o do tipo naval, comum na década de 1940. Nesse trabalho do Cecor, o compensado sarrafiado é mencionado pela primeira vez nos quadros da via-sacra, informa Bethania.

A partir dos exames, os especialistas decidiram não retirar as molduras, pois ficam tão integradas às pinturas, algumas com pregos, que seria um risco separá-las. Também com a tecnologia, identificaram-se as várias técnicas usadas por Portinari, entre elas têmpera a óleo, basicamente artesanal. “Houve muitos desafios, os quais foram superados com a reunião de metodologias de conservação. Do restauro, para se ter uma ideia, derivaram uma dissertação de mestrado e um trabalho de conclusão de curso (TCC) da estudante de conservação-restauração Tereza Moura, que se declara feliz pela oportunidade de trabalhar na pesquisa histórica e depois aliá-la à prática.



Reunida no laboratório e com o calhamaço de informações no caderno em espiral, a equipe não tem dúvida de que o resultado do restauro deve virar um livro – “só falta o patrocínio”, confessa Bethania, ao lado da estudante Tereza Moura, dos professores do Cecor Luiz Souza (químico), Alessandra Rosado (autora de tese de doutorado sobre Portinari) e Amanda Cordeiro; da doutora em história da arte Rita Lages, e das restauradoras Moema Queiroz e Cláudia Amorim. Na conversa com cada um deles, a emoção permeia as frases. Se para Cláudia o trabalho tem muito de lição e privilégio, para Moema, foi duplamente especial, pois atuou, em 1991, no primeiro restauro da via-sacra.

Alessandra Rosado ressalta que a intervenção ampliou o conhecimento sobre o artista e, com orgulho, lembra que são “obras mineiras, de grande importância para o Brasil”. Ao lado, Rita considera o trabalho “instigante e emocionante”, tanto pelo caráter transdisciplinar quanto pela troca de informações entre os vários profissionais envolvidos. Já Amanda observa sobre a oportunidade de estar tão próxima do trabalho de Portinari, e Luiz Souza afirma que os quadros ganham sentido quando de volta ao templo. No final, todos concordam que o mais relevante do trabalho é poder devolver a obra ao acervo da Igreja da Pampulha e à comunidade.

O quadro número 9, Jesus cai pela terceira vez, foi 'periciado' e revelou material usado pelo artista como suporte (foto: Cláudio Nadalin/Cecor/UFMG)

HISTÓRIA 

Na Igreja São Francisco de Assis, Portinari foi responsável, além da via-sacra, pelos principais obras de ornamentação: internamente, o painel central, em têmpera sobre argamassa, e os demais, em azulejos, e, na parte externa, dos painéis, também azulejos, com base na vida do santo padroeiro da natureza. Os quadros foram pintados no ateliê do artista, no Rio de Janeiro, em 1945, e chegaram a BH dois anos depois. “Este é um trabalho que ainda não terminou, sempre vai ter continuidade”, acredita Bethania. Os serviços de restauro foram custeados pela Arquidiocese de BH.



FESTA DA REINAUGURAÇÃO

Primeira igreja em estilo modernista do país, a São Francisco de Assis, reaberta em 4 de outubro durante cerimônia presidida pelo arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, dom Walmor Oliveira de Azevedo, estava fechada desde novembro de 2017. As obras duraram um ano e três meses. Os recursos federais, no valor de R$ 1,07 milhão, vieram do PAC das Cidades Históricas, com repasse do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) à Prefeitura de BH. O acompanhamento técnico da obra ficou a cargo da autarquia federal, responsável pelo tombamento de todo o conjunto moderno da Pampulha, também protegido pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha) e Conselho Deliberativo Municipal do Patrimônio Cultural de BH. Um dos maiores desafios durante a obra, conforme os engenheiros, foi conter as infiltrações que acometiam o interior da igreja e incidiam sobre as obras de arte. O problema já se manifestava havia muitos anos e houve intervenções anteriores em busca de soluções. A identificação exata dos pontos de infiltração só pôde ser feita depois da remoção do forro – após o início da obra, e apresentou pontos não previstos, que levaram à alteração da proposta inicial de intervenções.

1943-1945
Construção da Igreja São Francisco de Assis, que teve projeto do arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012)

1945
Os 14 quadros da via-sacra são pintados no ateliê de Cândido Portinari, no Rio de Janeiro. Dois anos depois, o acervo chega a BH

1991 
 Quadros são restaurados no Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (Cecor/EBA/UFMG)

2017
Em 18 de setembro, sob escolta da Polícia Militar do Meio Ambiente, os quadros são retirados e levados para a reserva técnica do Cecor, na Pampulha, em BH

2019 
Em 4 de outubro, a Igreja São Francisco de Assis é reinaugurada, e moradores e visitantes podem ver o acervo