A fiscalização de aeronaves e oficinas de manutenção em aeroportos Brasil afora, tida como medida capaz de garantir as boas condições dos aparelhos, está aquém do que deveria. Fora do eixo comercial, sem a presença constante da agência federal responsável por supervisionar a aviação civil, o terreno se torna fértil para donos e operadores de aviões de pequeno porte burlarem revisões obrigatórias e negligenciarem peças importantes para o funcionamento dos equipamentos, pondo em risco algo fundamental: a segurança. É o que afirmam três especialistas de diferentes áreas ouvidos pelo Estado de Minas. Segundo eles, enquanto voos internacionais e domésticos comerciais passam pelo crivo do órgão oficial, as outras rotas ficam numa zona de sombra que não permite, muitas vezes, aferir com propriedade a qualidade das manutenções. Ontem, o prefeito de BH, Alexandre Kalil (PSD), cobrou inspeção mais rigorosa no Aeroporto Carlos Prates, na Região Noroeste, mas avisou que não se pode fechá-lo.
“Tudo que é um desastre chocante. Choca o prefeito, choca o ser humano. No Anel Rodoviário, tivemos 40 mortos este ano. Seria uma boa ideia fechar o anel? Então, são coisas que têm de ser investigadas e pensadas de forma equilibrada. Não podemos radicalizar e tomar decisões precipitadas”, disse. Kalil mencionou que há indícios de que o avião que decolou do Carlos Prates e caiu 21 segundos depois, no Bairro Caiçara, na segunda-feira, estava acima do peso e em situação irregular, defendendo que deve haver mais fiscalização. Quatro pessoas morreram e duas continuam internadas. “Deveríamos aumentar a fiscalização no Aeroporto Carlos Prates, mas não podemos fechar aeroportos”, rebateu. Ele citou outros aeródromos que estão localizadas em região com grande concentração populacional. “Então, temos que fechar Congonhas, Santos Dumont, o aeroporto da Pampulha. Desde que avião voa, avião cai”, afirmou.
As vistorias são o ponto chave, na visão de especialistas. O major brigadeiro do ar reformado e ex-secretário-geral da Organização da Aviação Civil Internacional, Renato Costa Pereira, cobra pessoal, equipamento e dinheiro para a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) fazer seu papel de vigilância antes de o dano ocorrer. Nele, cabe verificar a situação de profissionais, aviões e de todo o aparato responsável por fazer aeronaves levantarem voo. “As investigações desse acidente não vão procurar quem é o responsável, mas o que ocorreu nesse voo que não era desejável, o que foi um erro, se 'forçaram a barra'. Os resultados sairão num relatório muito cuidadoso para que o mesmo problema seja evitado em outras ocasiões. Na cabeça do pessoal da segurança, isso é suficiente para não haver outro acidente igual ou derivado daquele”, afirma. “A organização internacional exige essa fiscalização do governo brasileiro, mas apenas para voos internacionais. A norma geral em outros países é aplicar a regra também para voos domésticos, mas no Brasil há esse hiato”, denuncia.
Apesar de os regulamentos aeronáuticos explicitarem a obrigação, falta pessoal, na opinião de Renato Costa Pereira. “Quando a Força Aérea era responsável por isso, designava militares para fazer essa fiscalização. A Anac assumiu e não tem contingente. O Brasil era admirado no exterior pelo serviço de prevenção de acidente aeronáutico. Dentro da Organização da Aviação Civil Internacional, era integrante do conselho dirigente. Continua, mas nossa credibilidade em relação a essa organização e esse conselho mudou, porque o que ocorre é reportado. As providências que o país toma são muito lentas e sem muita aplicabilidade. Quem faz a investigação dos acidentes faz muito bem-feito, mas, por que não se descobre antes pra evitar o problema?”, questiona.
Secretário-geral do Sindicato dos Aeroviários de Minas Gerais, o mecânico de aviação Dênis Araújo diz que essa é uma preocupação da entidade. Segundo ele, a Anac fiscaliza com rigor as empresas de aviação comercial e, no intuito de manter a qualidade e a segurança, elas mesmas fazem uma autoinspeção. Mas, nas pequenas empresas e nas aeronaves particulares, as vistorias não têm a mesma pontualidade. “Além da extensão territorial do país, há dezenas de milhares de aeronaves. Não tem pessoal para tudo. Entendemos que a principal responsabilidade é do dono e do operador, uma vez que a vida deles está em jogo”, afirma.
Somado à fiscalização deficiente, há o custo da manutenção, cujo valor de peças e insumos é em dólar, além de exigir mão de obra qualificada. Dênis Araújo explica que toda aeronave tem cronograma de revisões a ser cumprido – ditado pelo fabricante e homologado pela Anac. A mais básica delas, indicada para 50 horas de voo, pode custar, em média, US$ 1 mil a US$ 1,5 mil (cerca de R$ 4,08 mil a R$ 6,1 mil). Diante do cenário, há quem apele para peças não originais ou em desacordo com o preconizado pelo fabricante. “Esse não é um risco que possa ser descartado. Motorista de carro faz isso. Não compra original. A diferença é que o carro tem o acostamento (para parar em caso de necessidade)”, adverte. Para ele, a única saída é a conscientização de pilotos, operadores, donos e técnicos em manutenção. “Todos deveriam seguir padrões rígidos, como fazem empresas comerciais, mas, infelizmente, isso pode sair do eixo.”
Auditoria
O professor Márcio Suzano, coordenador do curso de pós-graduação em engenharia de manutenção e gestão de ativos na Universidade Veiga de Almeida (UVA), no Rio de Janeiro, ressalta que as manutenções programadas determinadas pelo fabricante previnem panes e evitam as revisões corretivas – documentos mostram que a aeronave modelo SR 20 Cirrus Design, que caiu em BH, estava em dia com a inspeção anual. Ele lembra que a Anac faz auditoria junto às empresas para comprovar a idoneidade das manutenções. “A Anac tem se preparado a cada ano para melhorar seu quadro de funcionários e também há profissionais contratados para fazer auditorias. Ela está presente o tempo inteiro, mas, se houvesse mais pessoal próprio ou especialistas credenciados, promoveria um trabalho mais próximo das aeronaves de pequeno porte”, diz o professor, que é militar da reserva e responsável técnico por empresa de fiscalização no aeroporto de Jacarepaguá.
De acordo com ele, uma fiscalização ineficiente pode provocar ainda falhas num processo de auditoria, embora essa hipótese seja difícil, dado que a manutenção nasce com mecânico, passa por inspetor de manutenção, por engenheiro responsável pela empresa, há o controle técnico de manutenção, fiscalização da documentação e auditoria de todos os processos.
Por meio de nota, a Anac rebateu as críticas, dizendo que “todos os aeroportos passam por fiscalização e só estão abertos ao tráfego aéreo porque são regidos pelos normativos da aviação civil, expedidos e fiscalizados pela agência”. Além disso, o operador aeroportuário é uma empresa que passa por auditorias constantes e zela pela operação dos aeroportos da sua rede. Pilotos do Aeroclube do Estado de Minas Gerais, localizado nas dependências do Aeroporto Carlos Prates, informaram que a fiscalização da Anac no local é constante.
Adeus ao piloto
Uma dor que já dura três dias, em especial para as famílias das vítimas do acidente com o avião SR 20 Cirrus Design, que explodiu ao cair na Rua Minerva, no Bairro Caiçara, na manhã de segunda-feira. Ontem, a dor foi da família do piloto Allan Duarte de Jesus Silva, de 29 anos, que passou todo o dia no Cemitério Belo Vale, em Santa Luzia, onde o corpo foi sepultado no final da tarde. O pai, Deusdedith, de 62 anos, se mostrava resignado. “A morte é um designo de Deus e não podemos fazer nada”, dizia, mas a irmã do piloto, Aline Souza, de 35, estava inconsolável. Chorava o tempo todo e pouco conversava. O pai comentava com amigos do filho sobre a paixão de Allan pela aviação. “Desde pequeno ele brincava de aviãozinho, de piloto. Dizia que pilotaria quando crescesse. Fez o que queria, o que desejava, o que escolheu para sua vida.”