Mariana – A casa de Rosa Maurília Gomes, de 81 anos, em Bento Rodrigues, assim como a da professora Elizete Aparecida Mol, de 39, em Paracatu de Baixo, foram desintegradas pela onda de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro que se desprendeu com o rompimento da Barragem do Fundão, operada pela Samarco na cidade da Região Central do estado. Às vésperas da data que marca os quatro anos da tragédia, ocorrida em 5 de novembro de 2015, a vida em área de risco ainda é realidade para as famílias das duas. Elizete mora a apenas 15 metros do Rio do Carmo, dentro da área de várzea do manancial, um local suscetível a alagamentos.
Rosa recebeu da Fundação Renova – criada pela mineradora e suas controladoras para lidar com os efeitos do desastre – um lote no reassentamento, que é construído para abrigar o chamado “Novo Bento Rodrigues”, justamente em uma área sujeita a enchentes. Não são casos isolados. De acordo com levantamento do Ministério Público Federal (MPF) ao qual o Estado de Minas teve acesso, 56% das 232 famílias de atingidos monitorados foram retiradas de suas casas, mas continuam no caminho de situações de risco geológico, ambiental ou vivem em precariedade.
Entre os atingidos que tiveram de se mudar, 73% dos que alugaram casas em Barra Longa e 52% dos que encontraram imóveis em Mariana acabaram em áreas inadequadas, que podem sofrer com enchentes, desmoronamentos, problemas de ventilação, falta de acabamento, expondo sua saúde e a de seus familiares a perigos diversos, sem falar na tensão diária, sobretudo em épocas de chuva. Os dados foram levantados pela consultoria Ramboll, contratada pelo MPF para acompanhar a situação dos atingidos, que atualmente vivem em 329 imóveis alugados, dos quais 232 foram vistoriados. “A gente tem medo e está inseguro, principalmente por causa das chuvas. Tem, também, os riscos de mais barragens se romperem em Ouro Preto e vir de novo um mar de lama pelo rio, justamente para a minha casa”, afirma a professora Elizete.
As vidas dela e do marido mudaram completamente na tarde de 5 de novembro de 2015, quando autoridades avisaram que a lama do rompimento atingiria Paracatu de Baixo, escoada pela calha do Rio Gualaxo do Norte. “Ninguém esperava aquele mar de lama. A nossa casa foi tampada e a nossa identidade estava lá. Ficamos meio perdidos. Meu marido queria ver no outro dia o que tinha ocorrido. Então, passamos a noite numa beira de estrada, mas não conseguimos nem chegar perto de onde era a nossa casa”, lembra. O fato de continuar morando numa área de risco agrava a angústia da professora. “Estamos tentando retomar a vida, trabalhando. Mas, são muitas incertezas. Tanto aqui, onde moramos hoje, quanto sobre onde vamos morar depois”, disse.
O medo para a doméstica Maria Vera Batista da Silva, de 65, e para a filha dela, Flávia da Silva, de 19, vem do alto. As duas também deixaram o vilarejo atingido de Paracatu de Baixo e foram morar em Mariana, mas a casa que conseguiram fica aos pés da Serra da Serrinha, ao Sul do município. A moradia simples, de três cômodos, está a apenas 30 metros de uma pedreira desativada. Grandes blocos de rochas amareladas costumam cair de até 100 metros de altura e o risco de um desabamento arrasar com a construção é alto. “A gente está aqui porque não tinha outro lugar para ir. Temos medo de acontecer um desabamento. De rolar uma pedra sobre a cabeça da gente, mas tem de pegar com Deus mesmo. A vontade Dele é o que vai ser”, disse a doméstica.
De acordo com o dossiê elaborado para o MPF, 131 das moradias temporárias vistoriadas apresentam algum tipo de inadequação, sendo que aproximadamente 39 delas (17%) estão em áreas consideradas como de risco geotécnico ou de inundação pelo Plano Municipal de Redução de Risco de Mariana ou pelo Serviço Geológico do Brasil/Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), em Barra Longa. Cerca de 54% das moradias apresentam problemas de habitabilidade relativos à iluminação, ventilação inadequada ou à falta de acabamento.
Angustiados, os atingidos que vivem em locais com riscos para suas vidas sofrem ainda mais pela demora para o reassentamento definitivo. A própria consultoria do MPF considera que esses processos não transcorrem em ritmo adequado. “O processo de reassentamento tem sido muito demorado. No mês de dezembro de 2018, somente o projeto de Bento Rodrigues havia sido licenciado, tendo suas obras sido iniciadas em agosto de 2018. O projeto de Paracatu de Baixo foi protocolado para análise na Prefeitura de Mariana em janeiro de 2019, tendo sido emitido o licenciamento urbanístico apenas em junho de 2019. Já o projeto urbanístico conceitual do reassentamento de Gesteira está sendo elaborado com a comunidade, em oficinas iniciadas no mês de junho de 2019.”
Sob ameaça de mais uma fuga
Mariana – Quem vê a dona de casa Rosa Maurília Gomes, de 81 anos, mãos trêmulas e pouco mais de 1,50 metro, não imagina a força que ela demonstrou para escapar da avalanche de rejeitos que destroçou sua casa em Bento Rodrigues após o rompimento da Barragem do Fundão, em 2015, em Mariana. “Atrás de mim vinha aquela poeira e a onda de lama carregando carro, casa, bicho... Achei que era o fim do mundo. Nem olhei mais para trás. Só parei para pensar quando cheguei a Santa Rita (a oito quilômetros). Agora, eu queria sossego”, afirma. Passados praticamente quatro anos, o risco volta a perseguir a dona de casa. O lote designado pela Fundação Renova para que ela more no reassentamento de Novo Bento Rodrigues fica na área de talvegue de um dos afluentes do Córrego da Lavoura. Na avaliação de consultoria contratada pelo Ministério Público Federal, um local que corre risco de alagamento, obrigando a senhora a fugir novamente.
“Não resolveram até hoje. A Renova disse que tinha um outro lote, me mostraram um que é longe demais da casa da minha filha, que cuida de mim. Não dá para ter uma casa num lugar que vai virar um rio com a chuva, nem viver isolada aos 81 anos”, reclama. A situação dela é igual à de outras quatro famílias que vivem em Mariana e receberam no reassentamento lotes que a consultoria Ramboll considera estarem em áreas de risco geológico. A previsão da fundação é de que o Novo Bento Rodrigues seja entregue no fim de 2020.
De acordo com o documento, ocorreram falhas de concepção no projeto do Novo Bento Rodrigues. “Foi possível verificar que há áreas de preservação permanente que não foram assim reconhecidas, nem no projeto urbanístico aprovado nem no licenciamento ambiental”, observa a consultoria do MPF. O resultado foi que lotes acabaram em áreas consideradas de risco. “Vários lotes privados e a Área de Disposição de Material Excedente (ADME) estão sobre linhas de talvegue (a área mais profunda de um curso de água)”, aponta o documento.
A consultoria avaliou que o projeto aprovado prevê a implantação parcial ou total de 42 lotes privados sobre APPs não reconhecidas, contrariando as legislações urbanísticas vigentes e comprometendo aproximadamente 17% dos 240 lotes do reassentamento (além de duas das 10 áreas públicas), já que a probabilidade de ocorrência de processos erosivos é muito alta em situações em que os caminhos da água são alterados e ocupados. “Da área do loteamento, 50,2% têm restrições ambientais e, a princípio, não deveriam ser ocupadas. No atual contexto de mudanças climáticas, com a concentração da pluviosidade média do local em poucos eventos, respeitar o caminho da água é premissa fundamental para garantir o equilíbrio ambiental e a segurança da população”, indica a Ramboll.
De acordo com a consultoria, as recomendações para que esses locais não sejam ocupados foram feitas e transmitidas à Fundação Renova, encarregada de lidar com os efeitos da tragédia da Samarco. “É importante monitorar periódica e sistematicamente as obras do referido reassentamento, principalmente as áreas de drenagem natural, onde os 42 lotes serão implantados, já que são as áreas de maior vulnerabilidade e que não estão sendo devidamente tratadas como áreas de preservação permanente (APPs)”, informa texto da empresa.
Muitas dessas áreas já sofrem com degradação, segundo a Ramboll. “Hoje, pode-se verificar a ocorrência de eventos erosivos significativos, desde sulcos, ravinas e início de voçorocas em alguns pontos da gleba”, acrescenta.
Renova vê 17% das moradias em risco
A Fundação Renova informa que “o principal aspecto observado para definição do imóvel temporário é a escolha da família, que poderá mudar de residência toda vez que julgar necessário”. “Durante a permanência no imóvel temporário, são realizadas visitas de acompanhamento social, vistorias cautelares e inspeções diversas para avaliação física dos imóveis, bem como intervenções necessárias para promover condições de saúde, segurança e acessibilidade às famílias”.
A Renova afirma que já foram feitas mais de 120 mudanças das famílias e aproximadamente 450 intervenções de reparos nos imóveis. Acrescenta que “a determinação das áreas de risco, bem como a classificação desses riscos, em qualquer município, é realizada pela Defesa Civil e necessariamente não quer dizer que as áreas não possam ter edificações e permanência de pessoas”. A Renova informou que apoia e incentiva as iniciativas da Defesa Civil, a fim de levar a correta orientação à sociedade. “Um exemplo disso é a campanha orientativa realizada em Mariana e Barra Longa, quanto aos cuidados no período chuvoso, que se iniciou recentemente.”
Sobre os lotes em áreas de risco do reassentamento de Novo Bento Rodrigues, a fundação informou que todas as nascentes existentes na região foram mapeadas e consideradas nos estudos que subsidiaram o processo de licenciamento ambiental, bem como no desenvolvimento dos projetos urbanísticos. “Os locais não apresentam ocorrência de nascentes. Parte do terreno está localizada em uma área de talvegue (linha sinuosa em fundo de vale). Assim, quando chove, a drenagem da água de chuva escoa pelo fundo do vale, podendo dar a impressão de existência de nascentes”, sustenta a entidade. “Destaca-se que essa área foi devidamente estudada por três empresas distintas, que confirmaram a inexistência de nascentes no local de intervenção para a construção das casas e demais estruturas do loteamento”, acrescenta. Contudo, na mesma nota, informa que “os projetos foram remanejados para outra área do reassentamento com a aprovação das famílias”.